Quitute do senhor era o
“mata-fome” do escravo


da Redação

“...tal a crioula Simoa, vendedora de bolinhos, negra fula, bem falante, estatura regular, que um belo dia do ano de 1837 fugiu dos Aflitos, no Recife, da casa de um senhor Pimentel.”
Gilberto Freyre (1900-1987), em "Açúcar"

A fuga da negra Simoa, anunciada em um jornal recifense, diz algo sobre a vida dos escravos nos meados do século 19 e um pouco sobre a alimentação dos brasileiros das grandes cidades, então em transformação.

Um negro escapa com um tabuleiro de doces, imagem que recupera o drama da resistência à escravidão ao mesmo tempo em que dá a um dos frutos da cultura do engenho, o doce caseiro, o título de tesouro, a ser carregado e escondido por aquele que o porta.

O quitute doce requintado, nascido no Brasil nas casas-grandes dos engenhos ao longo do período de exploração da cana-de-açúcar, era feito por mãos negras, misturando técnicas africanas, portuguesas e mouras.

Nas casas-grandes, o açúcar era sinal de opulência, como contam os relatos das festas dos engenhos, contabilizando no cardápio quase uma centena de variações de receitas de doces. Além dos quitutes finos, feitos à base da mistura do açúcar com frutas e ingredientes locais (goiabada, doce de banana, de abóbora, cocada), havia os bolos que eram consumidos em diferentes horas do dia.

A base da receita desses bolos era a mistura de ovos, açúcar e farinha, com a adição de outros elementos específicos dependendo do costume regional e da disponibilidade de material. Entravam então o leite-de-coco, a goma de mandioca, o milho e o amendoim, entre outros.

Os bolos recebiam nomes que satirizavam costumes, como o bolo busca-marido e o de beata. Levavam também nomes de personagens históricos, como o bolo Santos Dumont e o Luís Felipe. Havia ainda os divertidos bolos nomeados com conceitos políticos, como o republicano e os bolinhos legalistas.

Para ricos e pobres
No Nordeste colonial, o açúcar era não só um item básico na dieta das famílias donas de engenhos, mas também na de escravos, forros e brancos pobres.

A rapadura, a cachaça, a garapa e o pé-de-moleque difundiram-se no período colonial como artifícios culinários de negros e pobres para “matar” ou “enganar” a fome, complementando refeições quando, frequentemente, faltavam elementos importantes como a carne, o arroz ou o feijão.

O açúcar chegou trazido pelos portugueses, inicialmente vindo da Ilha da Madeira e do Cabo Verde. O introdutor do cultivo na Colônia foi Martim Afonso de Souza, em São Vicente, em 1532.

A culinária indígena e a africana já conheciam o mel de abelhas, o que fez com que os doces com mel de engenho e melado também se difundissem durante a Colônia.

O engenho foi o espaço onde se fundiram o mel, o açúcar, as frutas tropicais e outros ingredientes locais, como a macaxeira, o cará, o inhame e a fruta-pão. Nas outras cozinhas regionais, os doces brasileiros continuaram surgindo a partir da mistura do açúcar e do mel de engenho com ingredientes de cada área.(SC)

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