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A
essência da filosofia oscila conforme fazemos oscilar a essência
da linguagem
Dois
estilos de Hegel
(10/10/1999)
BENTO PRADO JR.
Dois
juízos de valor, rigorosamente opostos, podem, no entanto,
ser convergentes, não apenas na identificação
do objeto do julgamento, mas também de seu próprio
sentido. O que pode parecer paradoxal: como convergir na circunscrição
do "sentido", divergindo na atribuição de
valor? É o que podemos ver comparando dois julgamentos opostos
a respeito do valor da filosofia de Hegel.
Em primeiro lugar, o julgamento duro de Hans Reichenbach: "Hegel
se diferencia de Platão e de Kant na medida em que não
partilha a admiração que ambos têm pelas ciências
matemáticas; mas se diferencia deles, também, porque
não alcança a profundidade na consideração
dos problemas. Embora repita, isso sim, todos os erros deles, desenvolve-os
de uma forma tão ingênua que se pode estudar seu sistema
como um exemplo do que a filosofia não deve ser. O sistema
de Hegel depende, para seu êxito, de sua estranha linguagem".
Em segundo, o de Kierkegaard: "Enquanto os filósofos
precedentes haviam quase chegado à idéia de que a
língua existe para esconder o pensamento (de tanto que eram
incapazes de exprimir "das Ding an sich"/a coisa em si),
Hegel tem ao menos o mérito de mostrar a imanência
do pensamento na linguagem, que ele se manifesta nela -a outra filosofia
limitava-se a tatear em torno da coisa...".
O curioso na justaposição desses dois textos é
como transparece, por sob a oposição dos juízos
de valor, uma mesma estrutura na maneira de situar o objeto julgado.
É a mesma razão que fundamenta num caso o mérito,
e no outro, o demérito da obra.
Mais ainda, essa razão reside numa maneira semelhante de
situar a obra de Hegel, como desvio da (ou na) tradição
da filosofia. Ao criarmos este imaginário diálogo,
inventamos uma situação particularmente dialética
que é preciso compreender.
Num caso, é por transgredir os limites de um certo modelo
tradicional da Razão (que se guia pelo paradigma da matemática)
que Hegel é acusado de abandonar o campo da filosofia. E
essa degradação da filosofia, de que se acusa a dialética,
passa despercebida aos olhos do leitor desatento por ser revestida
por uma linguagem obscura que simula a profundidade. Numa palavra,
a falta de clareza da linguagem e a falta do rigor lógico
se ajustam como as duas faces de uma moeda.
No outro, é por mergulhar diretamente na "coisa em si",
isto é, por transgredir os limites do entendimento matemático,
que Hegel devolve dignidade à filosofia. E essa restauração
da filosofia aparece como a superação da consciência
que visa a linguagem e o pensamento como instância distintas,
como a descoberta da imanência do pensamento na linguagem.
Numa palavra, a complexidade da linguagem é signo da redescoberta
da própria linguagem como a pátria da filosofia, mesmo
quando parece delirar.
Mas o diálogo imaginário que criamos entre Reichenbach
e Kierkegaard -e a discordante concórdia que estabelece-
não é muito misterioso e pode ser facilmente compreendido.
Uma mesma descrição e valorização diferente
só podem provir de concepções diferentes da
filosofia, de sua história ou, mais precisamente, do que
significa ter sentido. É claro que espíritos tão
desiguais só poderiam descrever de modo parecido a "heresia"
de Hegel (contra o próprio, que provavelmente se consideraria
pouco desviante da tradição e da Razão, ele
que se sentia tão bem na história da filosofia, disciplina
que ajudou a construir), dando-lhe "notas" muito diferentes,
porque partiam de concepções muito diferentes da filosofia,
da linguagem e do significado da expressão "ter sentido".
Mais radicalmente, nosso diálogo imaginário põe
em cena dois personagens que usam a linguagem e fazem filosofia
de modo diferente. Quer dizer, contrapõe dois estilos de
filosofia, que se tornam um pouco mais visíveis e comparáveis
na discordante concórdia que os liga numa situação
muito precisa: no julgamento de uma obra singular. Esqueçamos
Hegel e tentemos visar o ponto de onde divergem os juízos
dos nossos dois personagens.
Digamos que há, pelo menos, duas maneiras de compreender
o "sentido do sentido". Uma, digamos, descritivista, outra
expressivista. No primeiro caso (Reichenbach), uma proposição
é significativa (ou pode sê-lo) caso, tendo forma lógica,
refira-se a um fato possível; por exemplo: "Está
chovendo". No segundo (Kierkegaard), um enunciado terá
sentido caso consiga exprimir para alguém o que se quer dizer;
por exemplo: "Creio em ti".
Num caso, a boa linguagem é a película mais transparente
possível, que separa ou une um sujeito cognoscente a um fato.
Na outra, ela é essa mesma película, mas interposta
agora entre duas subjetividades. Digamos que a linguagem oscila
entre dois pólos: descrição de objetividades
e expressão da subjetividade: podemos entendê-la à
luz de um e de outro pólo e, segundo nossa escolha, perderemos
e ganharemos espaços diferentes. Assim como a linguagem será
boa ou má segundo critérios diferentes: como instrumento
descritivo ou expressivo.
É claro que a filosofia não tem nada a ver com a descrição
de fatos ou com a expressão de estados de alma: a ciência
empírica e as artes desempenham essas tarefas. Mas é
claro, também, que a própria essência da filosofia
oscilará conforme fizermos oscilar a essência da linguagem
entre esses pólos.
Num belo ensaio publicado logo após a Segunda Guerra Mundial,
sob o título de "Os Filósofos e Sua Linguagem",
Yvon Belaval terminava sua "estilística do discurso
filosófico" (termos que são meus e não
do autor) detectando duas linhas "que respondem a dois tratamentos
da linguagem: uma vai em direção às coisas
e usa as palavras como signos; a outra, na perspectiva de outrem,
ou se se prefere, da dialética, serve-se das palavras como
de expressões do pensamento".
É bem a disjunção aí descrita que reencontramos
na raiz do diálogo imaginário entre Reichenbach e
Kierkegaard. Visto como sistema de signos que se candidata a descrever
fatos, o Logos hegeliano é lamentável (o que é
suficiente para que alguns grandes espíritos tendam a excluí-lo
da esfera da filosofia). Visto de outras maneiras -mesmo quando
discordamos dele, como é o caso de Kierkegaard-, não
é possível negar o seu estatuto legitimamente filosófico.
Com estes parágrafos fizemos pouco mais do que convidar o
leitor a ler o livro de Belaval. Mas talvez, além disso,
eles nos permitam encerrar, como numa fábula, com uma espécie
de "moral" ou, menos pretensiosamente, uma interrogação:
há muitas concepções filosóficas das
condições da significação, todas respeitáveis,
mas a filosofia não fica um pouco empobrecida quando uma
delas nos leva a perder a filosofia de Hegel?
Leia mais: A
filosofia seminal de Bergson
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