|
O
pensamento do intelectual francês antecipou e pode revitalizar
o atual debate filosófico
(29/8/1999)
A
filosofia seminal de Bergson
Reprodução |
|
O filósofo
francês Henri Bergson (1859-1941), autor de "Matéria
e Memória" |
BENTO PRADO JR.
Quando
resolvi finalmente publicar, há dez anos, meu livro sobre
Bergson (escrito em 1964), ouvi de Gérard Lebrun o seguinte
comentário: "Pena! Você o deveria ter publicado
de imediato". O que estava implícito na observação
era o quanto o livro era "datado", impregnado pela atmosfera
dos anos 60, como estava distante do debate filosófico dominante
no fim dos anos 80: no fundo, um tiro na água. Essa circunstância
não me escapava, como se pode ver nas
duas frases que encerram a nota preliminar que abre meu texto: "Se
me abalanço, no entanto, a publicá-lo hoje, a despeito
de tudo, é porque me parece justificado convidar à
leitura dos grandes filósofos. Se meu livro levasse o leitor
a reler Bergson particularmente nestes tempos de carência
eu me consideraria absolvido de meu pecado de juventude".
Não se tratava para mim, na ocasião, de um simples
gesto retórico: com a última frase queria exprimir
um mal-estar efetivamente vivido, a sensação fortemente
desagradável de uma banalização crescente da
filosofia, de uma escolarização ou tecnificação
asfixiantes do pensamento, de que o desinteresse por Bergson seria
um dos sintomas.
Um exemplo dessa atmosfera que se dissipara: em 1959, Merleau-Ponty
apontava, num discurso de homenagem ao filósofo (em "Éloge
de la Philosophie et Autres Essais"), no Congresso Bergson,
a fortuna paradoxal da obra no século, bem como o esquecimento
progressivo da sua importância e de sua virulência.
Distinguia na verdade três etapas: o bergsonismo "en
se faisant", militante, que inquietava católicos e radicais,
provocando resistência universal, o momento da glória
e do reconhecimento e, finalmente, a reconciliação,
pela via dos herdeiros espiritualistas, com o establishment.
Merleau-Ponty mostra como foi possível, ao pensador que revolucionou
a filosofia e as letras, tornar-se canônico, perdendo o olor
de enxofre que emanava de seus livros. Nas entrelinhas, Merleau-Ponty
apresentava a filosofia da existência como a verdadeira herdeira
do espírito vivo do bergsonismo. Leiamos apenas a última
frase do discurso de Merleau-Ponty: "Seu esforço e sua
obra, que recolocaram a filosofia no presente e mostraram o que
pode ser, hoje, uma aproximação ao ser, ensinam também
como um homem de outrora permanecia irredutível, que não
se deve dizer nada que não se possa "mostrar"..."
De lá para cá, dos anos 70 até muito recentemente,
um eclipse recobriu a obra de Bergson, assim como a filosofia viva
do pós-guerra francês. No entanto, uma mudança
radical de perspectiva parece estar ocorrendo neste fim de século,
que traz novamente as figuras de Bergson e de Merleau-Ponty para
o proscênio, satisfazendo minha esperança na revitalização
da filosofia. Na França, é claro, onde se multiplicam
trabalhos acadêmicos e publicações sobre Bergson
(deixemos para o "Jornal de Resenhas" desta Folha a consideração
do seminal "Le Bergsonisme", de Deleuze, que aqui não
poderia caber), mas um pouco por toda parte, mesmo nos países
de língua inglesa, que nem sempre lhe reservaram a melhor
acolhida.
Para dar apenas um exemplo, F.C.T. Moore, discípulo de Gilbert
Ryle e de Michael Dummett, empenhou-se em livro recente por mostrar,
como veremos, a importância e a atualidade de Bergson para
leitores da "tradição analítica",
demonstrando a incompreensão e os mal-entendidos que impregnavam
o duro ataque de Bertrand Russell.
Numa palavra, parece que o pensamento contemporâneo, percorrendo
linhas diferentes (fenomenologia, análise lógica,
teoria das estruturas cognitivas), veio encontrar em seu limite
último, lá onde cada uma delas se confronta consigo
mesma e com seu "outro", algumas das idéias fundamentais
de Bergson. Arriscando uma fórmula: é a efígie
de Bergson que aparece nos horizontes emergentes da filosofia da
mente "pós-computacional", da "pós-fenomenologia"
e da "filosofia pós-analítica".
É o que se pode ver, começando pelas "ciências
cognitivas". Em "Bergson, Thinking Backwards", F.C.T.
Moore, que se empenha a justo título em "déniaiser"
(digamos, "desasnar") os leitores de formação
estritamente "analítica", não explora suficientemente
as pistas que dá sobre a atualidade de Bergson nesse campo.
É o que me sugeriu meu colega João Teixeira, da pós-graduação
de filosofia da Universidade Federal de São Carlos, em comunicação
pessoal que me servirá de guia neste item.
Com efeito, se Moore mostra bem como Bergson, pensando em outros
problemas, antecipou literalmente as razões reutilizadas,
no final da década de 80, em combate à concepção
computacional da mente (na qual a cognição é
visada como manipulação simbólica desvinculada
da ação), não chega a levar sua observação
às suas consequências mais sugestivas.
Mais positivamente poderia, por exemplo, mostrar o paralelismo evidente
entre a teoria bergsoniana da inteligência e as teorias cognitivas
mais recentes, que reconstituem sua gênese a partir da ação
e da percepção (como é o caso da "Nova
Robótica", de R. Brooks, e da "Escola Chilena",
de Maturana e Varella -cf., de João Teixeira, "Mentes
e Máquinas"). O mesmo poderia ser dito a respeito da
idéia da estrutura do organismo e da natureza seletiva dos
dispositivos sensoriais, valorizada por cientistas cognitivos bem
atuais (como Andy Clark, "Being There",1996), que criticam
a idéia de representação; Clark reporta-se
explicitamente a Merleau-Ponty, mas poderia ou deveria reportar-se
a Bergson, como recomendaria o próprio autor da "Fenomenologia
da Percepção".
Ou ainda, a respeito da idéia bergsoniana da consciência
como "campo estruturado em termos de ações potenciais",
pois é exatamente essa idéia que é retomada
e desenvolvida por neurocientistas contemporâneos importantes
como William Calvin ("The Cerebral Symphony", 1990, e
"How the Brain Thinks", 1996). Finalmente, o mesmo João
Teixeira, que trabalhou nos EUA com Daniel Dennett, aponta, na crítica
que este endereça à sociobiologia de Wilson como reducionismo
que deforma os princípios da psicologia evolucionária
e da gênese do juízo moral, a retomada inconsciente
das análises da "Evolução Criadora"
e das "Duas Fontes da Moral e da Religião". Em
"Darwin's Dangerous Idea", Dennett reencontraria, de algum
modo, o espírito crítico do bergsonismo.
No campo da fenomenologia a relação com Bergson é
mais complexa, já que alguma cumplicidade estava dada desde
início.
Husserl, ao ler "Os Dados Imediatos da Consciência",
teria aí reconhecido sua própria filosofia (segundo
o testemunho, se não me engano, de Roman Ingarden). Mas é
sobretudo com Heidegger (para quem, todavia, em "Ser e Tempo",
Bergson emparelha com Aristóteles e Kant, nas etapas da desconstrução
da significação vulgar e metafísica do tempo)
que se esboça desde cedo uma distância polêmica,
mais que crítica. No caso de Heidegger é o "biologismo"
de Bergson que se constitui como a "bête noire"
a ser abatida, como pude verificar detalhadamente em 1963, lendo
uma tese alemã sobre (ou contra?) Bergson por ele orientada.
Algum eco desse antibergsonismo se encontra, sem a mesma hostilidade,
até mesmo na obra de existencialistas franceses (Sartre,
por exemplo, que todavia confessa ter descoberto a filosofia lendo
os "Dados Imediatos"). Sublinha-se o hiato que separa
o "vital" do "existencial". Já o texto
do discurso de Merleau-Ponty em homenagem a Bergson, acima referido,
é justamente significativo de algo como uma tentativa de
resgate e reaproximação, de indicação
de correntes profundas de cumplicidade, sob a aparência superficial
de oposição radical entre o "naturalismo"
de Bergson e o estilo transcendental da fenomenologia. "Matéria
e Memória" não era justamente uma análise
"transcendental" que tentava evitar os escolhos da filosofia
da representação, abrindo caminho para o pensamento,
além ou aquém da alternativa idealismo/realismo?
Era bem o que reconhecia o último Merleau-Ponty, com o lugar
reservado a Bergson em "O Visível e o Invisível"
e com sua idéia de uma nova filosofia da Natureza, que implica
repensar a clara distinção anterior entre as três
ordens: a física, a vital e a humana (na qual é visível
também a marca daquele outro bergsoniano que era Whitehead).
É bem seguindo a trilha de Merleau-Ponty, na direção
de uma versão não "idealista" da fenomenologia
husserliana (isto é, que evita o, digamos, "objetivismo
de segundo grau" implícito no privilégio não
refletido dos atos objetivantes da vida da consciência, no
privilégio do "Cosmothéoros"), que caminham
alguns filósofos contemporâneos, reencontrando e reativando
a empresa bergsoniana. Penso aqui, em particular, na obra de Renaud
Barbaras, especialmente em seu último livro, "Le Désir
et la Distance - Introduction à une Phénoménologie
de la Perception" (Ed. Vrin).
Para refazer, assim, a fenomenologia da percepção,
recuando mais que a fenomenologia clássica para aquém
da partilha entre a coisa e seu "aparecer" (que reitera
a oposição objetivo/subjetivo), reencontramos a iniciativa
bergsoniana ou a sua versão da Redução Transcendental:
a crítica da idéia de Nada. Redução
que é a abertura de um campo a um só tempo pré-subjetivo
e pré-objetivo, operação que consiste em "buscar
a experiência em sua fonte ou, antes, abaixo dessa "viragem"
("tournant') decisiva, onde, infletindo no sentido de nossa
utilidade, ela se torna propriamente a experiência humana"
("Matiére et Mémoire", Ed. du Centenaire,
pág. 321). Frase de Bergson que seria, talvez, a melhor expressão
do projeto de uma fenomenologia da percepção de Renaud
Barbaras.
Não faltam, tampouco, os herdeiros de Wittgenstein que, reivindicando
o retorno à esquecida dimensão moral ou terapêutica
do novo método, reencontram, talvez sem o saber, um dos vetores
essenciais do bergsonismo. É o caso de Gordon Baker, um dos
maiores conhecedores de Wittgenstein, para quem essa dimensão
essencial (bem exposta, segundo ele, por Waisman em "How I
See Philosophy") "não tem lugar na sofisticada
tecnologia da moderna filosofia analítica". Essa convergência
na definição do "télos" e do estilo
da filosofia transparece de modo luminoso na maneira como ambos
enfrentam a "questão fundamental da filosofia",
ou seja, a pergunta: por que há o Ser e não o Nada?
Os textos cruciais são a "Conferência sobre a
Ética" (1929) de Wittgenstein e "Le Possible et
le Réel" (1930) de Bergson (atenção às
datas!). Para Bergson essa pergunta "fundamental" remete
a um falso problema, que deriva de uma confusão entre os
domínios da teoria e da prática. A suposição
da problematicidade do Ser pressupõe a possibilidade de se
representar o Nada absoluto, isto é, uma impossibilidade
lógico-psicológica, que nada mais exprime do que um
déficit ao mesmo tempo teórico e vital. A busca do
fundamento ou da certeza absolutos não é índice
de rigor teórico, mas cegueira diante da impossibilidade
da dúvida absoluta, doença da vontade. Wittgenstein,
na sua conferência, desqualifica do mesmo modo a questão
do fundamento do Ser: "Mas é um não-sentido dizer
que me espanta a existência do mundo, pois não
posso imaginar que ele não existe".
Em todo caso, para ambos os filósofos, a filosofia é
uma atividade que consiste essencialmente em análise conceitual;
melhor, uma análise que visa ao descarrilhamento dos conceitos
por um mau uso do entendimento ou da linguagem ou, ainda, por uma
espécie de paralisia da imaginação teórica,
que nos torna prisioneiros de imagens hipnóticas e enganadoras.
Análise que, dissolvendo os falsos problemas da metafísica
(da filosofia entendida como posse teórica do mundo), restitui-nos
uma visão mais clara das coisas (visão sinóptica
ou intuição) e uma vida mais saudável e limpa.
Tudo se passa como se os dois filósofos, talvez os maiores
do século 20, nos lembrassem da vocação essencialmente
ética da filosofia. De que, implicando necessariamente a
tecnicidade da análise, não pode se converter em mera
atividade técnico-profissional sem perder a sua essência.
Podemos encerrar nosso comentário endossando, assim, o desejo
expresso por Gordon Baker na última frase de seu ensaio:
"A renovação da visão da filosofia de
Waisman transformaria seguramente a totalidade da cena intelectual
pós-wittgensteiniana tanto as auto-imagens dos "soi-disants"
filósofos analíticos quanto seu "être pour
autrui'!".
Leia mais: A
morte, uma vida
|
|