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Irrompendo
do futuro, a morte esculpe um indivíduo irrepetível
A morte, uma vida
(4/7/1999)
BENTO
PRADO JR.
"Entre sa vie et sa mort, il y a un moment qui n'est plus
que celui d" "une" vie jouant avec la mort."
(1) Gilles Deleuze
Cada
uma à sua maneira, a história das mentalidades e a
psiquiatria tentam circunscrever e analisar a estrutura da subjetividade
ou o laço de si a outrem, a comunicação entre
a vida e a morte. Penso aqui em dois livros, "O Homem Diante
da Morte" (vols. 1 e 2), de Philippe Ariès (Francisco
Alves, 1983), e "O Tempo Vivido", de Eugène Minkowski
(tradução mexicana, FCE, 1973). Um historiador, mas
guiado nesse livro pelo ensaio de um filósofo ("La Mort",
de W. Jankélévitch), e um psiquiatra, desde sempre
inspirado pela filosofia, Husserl, mas sobretudo Bergson. Penso,
ainda, no último escrito de Deleuze, também bergsoniano.
O primeiro consagrou-se a esse tema depois de escrever uma monumental
arqueologia da infância no mundo moderno, descrevendo a nova
grade das "idades da vida" instaurada pela burguesia,
que interrompe a integração e a circulação
imediata da criança no mundo social, sequestrando-a no espaço
fechado da escola e da família conjugal, cancelando o modelo
arcaico do "aprendizado" dominante na Idade Média,
tanto entre nobres como entre artesãos. Início, digamos,
de um longo processo de privatização da vida social
e de "psicologização", digamos, da existência.
É o mesmo processo que é agora descrito com toda a
riqueza de enorme erudição histórica na transformação
da relação vivida com a morte; não pertenceria
a hora da morte à grade das idades da vida (como veremos
adiante, é bem esse o problema, em epígrafe assinalado,
que nos interessa)? Aqui também a mutação essencial
é a que dá lugar a um eclipse do público pelo
privado.
A morte arcaica (de longuíssima duração: Antiguidade,
Idade Média até o séc. 19) ou a "bela
morte" é uma morte antecipada ou "domada",
reconhecida, ritualizada, culminando em cena perfeitamente pública:
trata-se de despedir-se deste mundo, preparar-se para outro, edificar,
destinar seus bens, receber a extrema-unção etc. O
melhor exemplo em nossa língua (a acrescentar aos textos
escolhidos por Ariès) é sem dúvida a belíssima
página do padre Bernardes: "Destemor da morte. Estando
em artigo de morte um padre antigo do famoso deserto de Scithis,
os outros monges rodeando-lhe a pobre cama ou esteira em que jazia,
choravam amargamente. Neste ponto abriu os olhos, e sorriu-se; dali
a pouco tempo tornou a rir, e depois de outro breve intervalo, terceira
vez deu a mesma mostra de alegria. Causou isto nos circunstantes
não pequeno reparo, por ser austera a pessoa, e formidável
a hora. Perguntaram a causa, e respondeu-lhes: "A primeira
vez me ri, porque vós outros temeis a morte; a segunda, porque,
temendo-a, não estais aparelhados; a terceira, porque já
lá vai o trabalho, e vou para o descanso". Tornou então
a cerrar os olhos, e destacou-se seu espírito".
No fim do século 19 algo muda, que culminará, no século
seguinte, no que Ariès chama de "a morte americana"
ou asséptica e hospitalar. E é na Rússia arcaica
de Tolstói (onde os mujiques continuam a morrer segundo os
padrões eternos fixados desde o Egito) que vai aparecer a
primeira fulguração na nova figura da morte. Trata-se
da morte de Ivan Illitch, que lhe é escondida por parentes
e médico e que ele descobre por acaso (ouve seu irmão
dizer à mulher: "Você não vê que
ele está morto?"). O moribundo vê doravante sua
morte sonegada por outrem, ele deve ser poupado desse saber. À
medicalização da morte (Ivan Illitch não pensa
na morte, mas no seu "rim flutuante", que a medicina poderá
ancorar novamente) segue-se a sua hospitalização,
hoje imperante. Não se morre mais em casa, junto aos parentes,
amigos e vizinhos. Não é apenas o moribundo que é
protegido da morte, mas também seus familiares mais imediatos.
Na segunda metade do século 20, observa Ariès, tudo
se passa como se morte e sexualidade trocassem de lugar, o exposto
entrando em eclipse e o reprimido retornando à tona. É
a morte do Vovô que deve ser escondida da criança,
há muito tempo iniciada na sua educação sexual,
virando ao avesso, por assim dizer, a estrutura do universo vitoriano:
em vez do mito da cegonha, a fictícia viagem inesperada do
velho avô.
Em todo caso, o certo é que Ariès descreve essa relação
com a morte como uma forma de alienação ou falsificação
da consciência de si (Walter Benjamin falaria de esvaziamento
da Experiência); são os próprios moribundos
que o dizem, como o padre F. Dainville a seu confrade Ribes, em
1973: "Frustraram-me a minha morte" ("O Homem Diante
da Morte", vol. 2, pág. 620). O recobrimento da morte
iminente pelo véu do pudor (Jankélévitch) não
significaria também o apagamento dos limites (do perfil)
de toda uma vida?
Lembremo-nos da bela frase de Malraux: "Só a morte transforma
a vida em destino", isto é, em "uma" vida.
É bem essa idéia de "uma" vida, cuja forma
só se desenha na sua articulação com uma morte
não confiscada, que encontramos no coração
do belo livro que Minkowski consagrou à fenomenologia do
tempo subjetivo, passando da ótica da história para
a da psiquiatria. Que significa, aqui, o sublinhado artigo indefinido?
Perguntemos, para começar, como pensar numa relação
"vivida" com a morte? De Epicuro ao "Tractatus"
de Wittgenstein, ensinam-nos que a morte "não é
um acontecimento da vida". Trata-se, é claro, da eliminação
do fantasma do "além", mas que implica talvez,
paradoxalmente, a eliminação do próprio Tempo,
pelo menos daquele que não se limita à mera sucessão
e que implica, com a tripartição entre Presente/Passado/Futuro,
o "X" nuclear em que se cruzam esses "êxtases
temporais", raiz da subjetividade originária do Sujeito.
Para Minkowski, a dimensão do "além" tem
de receber alguma consistência (sem implicar a tese de um
"outro" mundo, transcendente), pelo menos como esse futuro,
a própria morte que retroativamente dá estrutura à
minha vida como a vivo, na primeira pessoa do singular do presente
do indicativo. A morte não é apenas um evento objetivo
que separa, numa série, um antes de um depois. Irrompendo
do futuro, do que não é ainda, define presente e passado,
desenha na superfície da Imanência uma trama e uma
"biografia", UMA VIDA, esculpe um indivíduo irrepetível,
reúne "numa única unidade sintética tudo
o que precedeu a morte".
Talvez Deleuze tivesse em mente esse ensaio de Minkowski (certamente
lido também por Jankélévitch), ao escrever
as últimas páginas de sua vida "L'Immanence -Une
Vie...", em que comenta mais uma figuração literária
da relação umbilical que liga a vida à morte:
"Que é a imanência? Uma vida... Ninguém
melhor que Dickens contou o que é "uma" vida, tomando
o artigo indefinido como transcendental. Um canalha, um mau sujeito
desprezado por todos é trazido agonizante, e eis que todos
que dele cuidam manifestam uma espécie de zelo, de respeito,
de amor pelo menor signo de vida do moribundo. Todos se empenham
em salvá-lo, a ponto de que no mais profundo de seu coma
o mau homem sente, ele próprio, algo de doce penetrá-lo.
Mas, à medida que retorna à vida, seus salvadores
tornam-se mais frios e ele reencontra toda sua grosseria, sua maldade.
Entre sua vida e sua morte, há um momento que é apenas
o de "uma" vida jogando com a morte".
"Morte: "Uma" Vida", seja a minha, no futuro,
ou a de outrem, no presente e no passado. "Uma vida/Imanência",
tema a que retornaremos, aqui na Folha, ainda uma vez a propósito
de Deleuze e de Bergson.
Nota:
1. "Entre sua vida e sua morte, há um momento que é
apenas o de "uma" vida jogando com a morte."
Leia mais: Descartes,
esse cavaleiro
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