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O
acerto crítico atingido pela geração da revista
"Clima" resultou mais da presença de uma filosofia
viva do que de uma distância em relação à
teoria
(7/3/1999)
O novo estilo do pensamento
BENTO PRADO JR.
"Não há muitos prosadores, entre nós,
que tenham consciência do tempo, e saibam transformá-lo
em matéria literária."
Carlos Drummond de Andrade
Lendo só agora, muito tardiamente, o ensaio que Gilda de
Mello e Souza consagrou a Paulo Emilio Salles Gomes em "Exercícios
de Leitura" (Ed. Duas Cidades, 1980), topei com uma frase que
me surpreendeu e me deu a refletir. Caracterizando o estilo de Paulo
Emilio, dona Gilda escrevia: "O seu diálogo é
sempre uma relação privada com a imagem, cuja palpitação
profunda procura acolher com humildade. Mas desta imagem, deste
filme, deste autor, feito nestas condições e nesta
época" (pág. 213). Cada uma das frases aponta
para um dos pólos do "juízo crítico":
o sujeito solitário que o enuncia (relação
privada) e o objeto que ele busca acolher, com todas as mediações
históricas que o impregnam e o transcendem.
O que me surpreendeu na leitura desse texto foi encontrar sob a
pena de dona Gilda, em sua caracterização do estilo
de Paulo Emilio, a mesma frase que eu escrevera tentando definir
o estilo da autora do ensaio que lia no momento. Num ensaio escrito
em 1988 ("As Filosofias da Maria Antonia (1956-1959) na Memória
de um Ex-Aluno", em "Maria Antonia - Uma Rua na Contramão",
org. M.C. Loschiavo dos Santos, ed. Nobel, 1988), eu escrevia sobre
minha antiga professora: "Arrisco a seguinte fórmula
para definir esse estilo inigualável de escrita e de docência
que (para além do fascínio imediato do talento) exigiria
muito tempo para ser compreendido, em todo seu interesse teórico,
pelos jovens alunos de então. Digamos: um espécie
de vaivém constante entre o imediato fenomenológico
das obras de arte e o aprofundamento de suas pré-condições
históricas e sociais. (...) Eram especialmente as "análises
concretas" (este quadro, este poema, este filme) que provocavam
frisson na audiência".
Paixão
do concreto
Como o leitor há de notar, não faltarão nem
os itálicos para sublinhar os pronomes demonstrativos que
exprimem a atenção pelo singular ou pelo concreto
("haecceitas", palavra criada por Duns Scot para o que
faz com que um indivíduo seja ele mesmo e se distinga de
qualquer outro, "this-ness" em inglês). Juro que
não havia lido o ensaio sobre Paulo Emilio -não sei
por que razão- até poucas semanas, que minha memória
não pode me enganar, que não se trata de mímese
involuntária. Como que então, ao tentar definir o
estilo de dona Gilda, em sua "haecceitas", eu havia apontado
para o estilo de uma geração? É o que a autora
deixa entrever, quando situa a obra de Paulo Emilio no quadro da
vocação comum da geração da revista
"Clima", toda ela animada pela "paixão do
concreto", na definição de Antonio Candido.
Mas o curioso é que, ao fazê-lo, fornece uma razão
por assim dizer "negativa", como se a fecundidade do exercício
da crítica fosse efeito de falta de "cabeça teórica",
na expressão de dona Gilda.
Desinteresse pela teoria pura (ou pela mera teoria?), que explicaria
porque a geração não produziu nenhum filósofo.
Mas quem é, o que é o filósofo? Será
que, de fato, filosofia e crítica opõem-se dessa maneira?
De que valeria uma filosofia que não iluminasse nossa experiência
atual da cultura e da sociedade, isto é, que não se
completasse justamente em crítica? Deve-se falar de fuga
à teoria ou de descompartimentação do pensar?
Mais curioso ainda é que no mesmo livro, falando das idéias
estéticas de seus professores franceses (Lévi-Strauss,
Roger Bastide e Jean Maugüé), dá um pista que
caminha em direção diferente. J. Maugüé,
o menos notório dessa santíssima trindade, justamente
o "filósofo" (embora todos proviessem de formação
filosófica, os outros dois escolheram os caminhos da sociologia
e da antropologia), recebe algum privilégio na memória
de seus antigos alunos do "Clima".
Lembro apenas uma frase de dona Gilda: "A influência
de Alain, de quem fora aluno, revelava-se no desprezo pela vida
universitária e na habilidade de desentranhar a filosofia
do acontecimento, do cotidiano, da notícia de jornal. Foi
com Jean Maugüé que, em 1940, por ocasião da
grande exposição de pintura francesa, aprendemos a
olhar um quadro" ("Exercícios...", pág.
11). Por outro lado, reproduzo aqui outra frase de meu ensaio: "Um
estilo vivo de falar da coisa mesma ("die Sache selbst'), ao
contrário dos longos e enfadonhos prolegômenos metodológicos
("teóricos", diria eu hoje, em 1999), em voga em
outros departamentos da Faculdade de Filosofia. Não é
assim por acaso que foi no curso de estética que tivemos,
com dona Gilda, não o primeiro contato com a fenomenologia,
mas algo como uma primeira visão efetiva de seu interesse
como método. Ou, ainda, da fenomenologia como atividade,
mais do que como teoria ou doutrina".
O
coleguinha Sartre
O fato, ao que me parece, é que esse vaivém entre
teoria e crítica, entre a França e o Brasil, é
mais um sintoma de uma feliz confluência motivada, em última
instância, pelas duas grandes tragédias de nosso século:
as duas Grandes Guerras. Logo após a primeira, a melhor parte
da filosofia francesa descobria o "concreto" -Sartre,
o "coleguinha" de Maugüé ("mon camarade,
Sartre", dizia ele para seus alunos brasileiros, referindo-se
a um autor então perfeitamente desconhecido no Brasil), dizia
de si mesmo que era um fruto provinciano da violência desencadeada
pela Primeira Guerra e pela revolução bolchevique.
Nada mais concreto que uma guerra para despertar a atenção
à realidade forte do acontecimento e limitar a fé
na dominação puramente teórica do mundo.
Era bem, portanto, esse novo estilo de filosofia, engendrado nas
décadas de 20 e 30 na França, que criava raízes
na geração dos jovens críticos da revista "Clima",
permitindo-lhes inaugurar entre nós "a crítica
moderna de teatro e de cinema, retomando em bom nível os
estudos anteriores de música, literatura e artes plásticas"
("Exercícios...", pág. 213).
É o que podemos verificar, lendo o programa de uma revista
que foi criada logo depois da guerra, na França, depois da
revista "Clima".
Falo da revista "Temps Modernes" e de sua apresentação
por
Sartre, onde reencontramos os demonstrativos sublinhados em itálico
a que nos familiarizamos neste texto: "Não queremos
nada perder de nosso tempo: talvez haja mais belos, mas não
seriam o nosso; temos apenas esta vida para viver, ao meio desta
guerra, talvez desta revolução".
Se não estou enganado, portanto, o notável acerto
crítico atingido por essa geração era mais
o efeito da presença de uma filosofia viva do que de uma
distância em relação à teoria. De um
"clima" que, infelizmente, não mais respiramos
neste fim de século. O mesmo clima que podemos sentir vivamente
no texto de Drummond de que extraímos nossa epígrafe
e que se abre com a seguinte frase: "Escrevo estas linhas em
agosto de 1943, depois da batalha de Stalingrado e da queda de Mussolini".
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