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Reivindicações
regionais foram fenômeno dos últimos anos da monarquia
(15/8/1999)
Bairrismo no Império
EVALDO CABRAL DE MELLO
Na
história do Império, o aparecimento de reivindicações
provinciais e regionais de natureza econômica constituiu um
fenômeno dos derradeiros decênios do regime. Isso teve
a ver, em primeiro lugar, com a mutação ocorrida nos
próprios objetivos perseguidos pelo governo central. Até
os anos 50, fase que José Murilo de Carvalho caracterizou
como a de "acumulação primitiva do poder",
os gastos públicos responderam sobretudo ao propósito
de organizar o aparelho do Estado e garantir um módico controle
sobre o território brasileiro, na esteira da repressão
dos levantes da Regência e dos primeiros anos do Segundo Reinado.
A partir dos 50, excetuados os anos da Guerra do Paraguai, o papel
do Estado passou a ser crescentemente o de fomento das atividades
produtivas mediante investimentos de infra-estrutura, especialmente
em portos e caminhos de ferro. Ademais, tratou-se de algo relacionado
à transformação dos grupos dirigentes do Império
e à crescente diluição da sua homogeneidade
inicial, processo também descrito por José Murilo
como sendo a passagem do predomínio dos magistrados para
o dos profissionais liberais. As diferenças de formação
e de profissão entre ambos os grupos condicionaram sua atuação
política, pois, ao passo que o magistrado tendia a ser míope
para os interesses setoriais, sob a fascinação da
generalidade, do formalismo e da impessoalidade da regra jurídica
e da ordem institucional de que ela deriva, o advogado era preeminentemente
o procurador desses interesses diante do e, eventualmente, contra
o Estado.
Nesse particular, como em tantos aspectos da política imperial,
a Conciliação representou o ponto de inflexão.
Ao promover a transação entre os partidos, ela permitiu
a acomodação das influências provinciais, integrando
as oligarquias nortistas ao jogo do poder, o que não se verificara
durante o primeiro decênio do Segundo Reinado, nem, a fortiori,
durante o Primeiro Império.
De 1840 a 1843, malgrado o papel desempenhado nas combinações
ministeriais pelos pernambucanos Holanda Cavalcanti e Araújo
Lima ou pelo baiano Alves Branco, a luta política girara
em torno da corte e do Rio, polarizados entre os "áulicos"
e os "saquaremas", que só recorriam às influências
das outras províncias para reforçar suas próprias
posições, reservando-lhes, por conseguinte, papéis
subsidiários. Dada a natureza inautêntica do nosso
sistema representativo, as reivindicações regionais
visavam sobretudo ao rateio dos cargos ministeriais.
Martinho Campos, que foi um ator perspicaz da política imperial,
datava do gabinete Paraná a tendência de as grandes
províncias fazerem-se sistematicamente representar nas composições
ministeriais. "Na maior parte da minha vida (recordava em 1881),
não vi exigida esta necessidade, esta obrigação
de meter no ministério por força deputado de uma certa
e determinada província. (...) Não sabia-se no Brasil
de que província eram Paraná, Olinda, Montealegre,
Vasconcelos, Uruguai, Itaboraí, Paula Souza, Alves Branco
e tantos outros."
Contudo, a despeito da integração política
das oligarquias regionais, a concepção unitária
do Império continuou a operar no sentido de inibir a representação
dos interesses econômicos. As influências provinciais
eram apenas parte da fachada representativa e como tal eram toleradas.
Só em raras ocasiões a oposição de uma
grande bancada revelou-se fatal às ambições
de um candidato a presidente do Conselho que tivesse a preferência
de São Cristóvão, como aconteceu na primeira
tentativa do visconde de Paranaguá de formar gabinete, devido
à impossibilidade de conseguir os votos da deputação
baiana.
Via de regra, o aspirante bafejado pelo imperador não tinha
dificuldade em recrutar duas ou três bancadas importantes,
a que se agregavam as deputações de províncias
satélites ou mesmo as dissidências das bancadas que
permaneciam hostis. A despeito de toda a sua importância,
Rio, Minas e São Paulo não puderam evitar que D. Pedro
2º designasse Rio Branco para fazer a reforma do Ventre Livre
e que este, graças à Bahia e Pernambuco, governasse
sem as deputações das províncias cafeeiras
e, no caso da lei do Ventre Livre, até contra elas.
Reivindicar abertamente interesses regionais ou provinciais era
um comportamento que raiava à obscenidade e que podia comprometer
as ambições de carreira. O político da monarquia
timbrava, por conseguinte, em projetar a imagem de estadista nacional,
pairando acima do que pejorativamente era designado por "bairrismo",
para em teoria só enxergar os interesses superiores do país.
Um trecho de discurso do futuro visconde de Ouro Preto ilustra muito
bem a hipocrisia dominante a respeito. Após confessar que
sempre escutava "com muito desgosto" falar-se em interesses
particulares do norte e do sul, algo "inconvenientíssimo",
que só servia para "despertar idéias que felizmente
não existem, nem devem existir", Afonso Celso protestava
desconhecer "onde começa o norte, nem onde acaba o sul;
só conheço o Império", que era "a
pátria comum". Quando as motivações locais
agiam sobre o ânimo dos políticos do Império,
elas eram, via de regra, de natureza clientelística, só
excepcionalmente tendo a ver com objetivos de política econômica,
como concluiu Richard Graham do exame da sua correspondência.
Desse pudor unitário para inglês ver, só escaparam,
a bem dizer, o barão de Cotegipe, dos raros ou raríssimos
políticos da monarquia a serem tachados do pecado capital
do "bairrismo"; e os gaúchos, cujo comportamento
era por isso mesmo alvo frequente das críticas. Cotegipe
foi mesmo acusado de prejudicar ativamente os interesses econômicos
de províncias do sul. Marginalizados das combinações
ministeriais até os anos 70, eles não estavam inibidos
pelos valores centralistas, graças ao que demonstraram uma
eficácia especial em obter investimentos do governo imperial,
explorando a fundo a posição estratégica da
província e as
preocupações de segurança no Prata.
A pretexto do combate ao contrabando, obtiveram a tarifa especial
no tempo do ministério Sinimbu. Havendo conseguido do gabinete
Rio Branco duas ferrovias com o argumento da sua utilidade estratégica
em caso de nova guerra, alegaram posteriormente que elas haviam
incrementado a dependência da província relativamente
aos mercados platinos, com o que arrancaram verbas para a construção
do porto de Rio Grande. Ministro da Agricultura do gabinete Paranaguá,
Henrique d'Ávila conseguiu encetar a estrada de ferro de
Santa Catarina a Porto Alegre, a desobstrução da barra
do Rio Grande e do rio Jaguarão e os estudos para a navegação
na lagoa dos Patos. Sob este aspecto, os gaúchos anteciparam,
muito mais do que seus contemporâneos paulistas ou mineiros,
a mentalidade estadualista da República Velha, indício
importante do seu limitado grau de assimilação do
"ethos" político do Brasil imperial. Donde a impressão
que dá muitas vezes a política gaúcha de constituir
um corpo estranho no conjunto da política monárquica.
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