À sombra dos coqueirais

(4/4/1999)


EVALDO CABRAL DE MELLO


Por dois motivos, é bem curioso que o coqueiro se tenha tornado uma árvore tão simbolicamente nacional quanto o pau-brasil ou o ipê. Em primeiro lugar, porque ele foi transplantado da Índia; em segundo, porque, ao dominar o terraço marítimo do nosso litoral nordestino, ele expulsou a variedade que, essa sim, era autenticamente americana, vale dizer, o cajueiro.

Originariamente, o coqueiro surgiu entre nós no bojo de um esforço de aclimatação de espécies vegetais do Reino e do Oriente.

Fundamental foi a esse respeito o papel da Companhia de Jesus, cujos colégios possuíam invariavelmente suas "cercas", isto é, pomares e hortas, onde era um prazer merendar ao ar livre, como no colégio de Olinda, "o melhor e o mais alegre que vi no Brasil", segundo o padre Cardim, nada ficando a dever aos de Portugal.

Ademais, Olinda, como Salvador ou o Rio, estava cingida por um cinturão de hortas em que se cultivava toda sorte de vegetais da metrópole, inclusive de frutas de espinho.

Ao invadirem a capitania, os holandeses encontrarão "grandes e belos pomares e hortas, nos quais há de tudo", o que na pena de um batavo não é pequeno elogio. Até mesmo os moradores da modesta povoação de Natal eram abastados de legumes portugueses. Já se observou, aliás, a semelhança entre o horto do colégio de Olinda e a cerca ideal imaginada pelo autor dos "Diálogos das Grandezas do Brasil", ajudado, como leitor dos clássicos, pelo velho tópico do jardim de delícias, herdeiro do "locus amenus". Esse devaneio estético-utilitário será realizado anos depois pelo conde de Nassau no seu palácio de Friburgo, numa escala com que Brandônio estava longe de sonhar.

No tocante à incorporação de espécies nativas, enquanto os jesuítas só haviam admitido o maracujá, na cerca de Brandônio já existiam a goiabeira, o tamarineiro e o ananás, particularmente estimados. E, entre os vegetais africanos e asiáticos, já sobressaía o coqueiro, que inicialmente só existia nas hortas e quintais, donde viria a se disseminar pela franja costeira, habitat natural do cajueiro, tão ligado à alimentação e à cultura indígena. Devido à pobreza da documentação, mal se vislumbra a verdadeira mutação da paisagem que foi a marginalização de um pelo outro, a qual reduziu o cajueiro à figura de parente pobre, expulso da linha de frente pelos cenográficos coqueirais, que se tornaram o biombo que oferecia ao viajante a primeira visão da terra, ao passo que os primitivos navegantes, como Pero Lopes de Souza, haviam enxergado apenas uma terra monotonamente baixa, bem arborizada de bosques de cajueiros e de manguezais.

No litoral da Índia, o coqueiro era a base imemorial de um complexo econômico e ecológico, sendo utilizado como material de construção civil e até naval, como nas Maldivas. Da casca, a população fazia cuias de beber; na alimentação, consumiam-se-lhe a água e o miolo, e fabricava-se o "copra", o azeite para os alimentos e para a iluminação. Dele também se tiravam aguardente, vinagre e açúcar. Seu óleo tinha valor medicinal como laxativo e no combate ao reumatismo.

Quase todos esses usos, que não provocam surpresa no brasileiro atual, pareciam insólitos às primeiras gerações de colonos, que só muito tempo decorrido da aclimatação do coqueiro passaram a contemplá-lo com olhar utilitário. Ainda ao tempo de frei Vicente do Salvador, a única utilização do coco consistia em comer sua polpa e beber sua água, uso, na realidade, essencial em áreas praieiras afastadas de água potável, a não ser da chuva. Markgraf, ao referir as vantagens que dele se tiravam na América hispânica e nas Filipinas, os mesmos que Garcia da Orta descrevera para a Índia, menciona no Brasil apenas a utilização da água, do leite, que já servia para cozinhar o arroz, e das cuias feitas da casca. Mas, como tantas outras espécies vegetais e animais, nossos coqueirais vieram não diretamente da Índia, mas de Cabo Verde.

No caso de Pernambuco, é até possível datar os primeiros transplantes, pois quando Nassau ajardinou seu palácio, mandou trazer, de três ou quatro milhas de distância, 700 pés, muitos dos quais septuagenários ou octogenários, o que significa que as árvores datavam das décadas de 1560 e 1570. Àquela altura, Gândavo ainda não mencionava o coqueiro, mas pouco depois ele surgia nos pomares dos jesuítas em Salvador, Ilhéus e Porto Seguro. Gabriel Soares de Souza pretenderia que o coqueiro adaptara-se tão bem que, enquanto na Índia só produzia ao cabo de 20 anos, entre nós bastavam cinco ou seis. Contudo, tanto ele quanto o autor dos "Diálogos" e frei Vicente do Salvador lamentavam o fato de os colonos do Brasil não saberem aproveitá-lo.

O coqueiro tinha de vencer a inércia dos hábitos da terra, que privilegiavam os próprios vegetais. Por isso, sua primeira função na América portuguesa foi meramente ornamental. Com esse fim, Brandônio dispunha-se a plantá-lo no seu jardim. Para que o interlocutor não invejasse "os álamos e choupos de nosso Portugal", propunha-lhe "crescidos e alevantados coqueiros, que não menos zunido fazem com suas folhas açoitadas do vento". Mas foi Nassau que tirou todo o partido decorativo da árvore. Sendo a ilha de Antônio Vaz a "planície sáfara" a que aludia Barléus, o conde resolveu sombrear seu palácio com avenidas de coqueiros, oferecendo aos habitantes o que hoje se chamaria um espaço de lazer.

Tais alamedas, que frei Manuel Calado comparou, decerto com exagero, às famosas de Aranjuez, tinham o papel de delimitar o espaço externo e interno, circunscrevendo, de um lado, a área onde se ergueu o edifício e o mesmo jardim, e, de outro, as áreas internas em que este último se repartia: a de recreação, a de serviço, os pomares, a de criação de animais domésticos e os grandes viveiros. Mas, como sugere a iconografia holandesa, o coqueiro ainda era bem raro, limitando-se aos núcleos de população e servindo de decoração a uma ou outra casa-grande de engenho. Ao longo do nosso litoral, a substituição maciça do cajueiro pelo coqueiro, uma verdadeira revolução ecológica, foi fenômeno de longo prazo, que terá durado todo o século 17.

No fim da vida, Nassau recordou suas proezas de jardineiro, gabando-se de haver plantado no Brasil, na Alemanha e nos Países Baixos, nada menos de 40 mil árvores de várias espécies. Entre nós, orgulhava-se sobretudo de haver plantado 2.000 coqueiros, sem perder uma única muda, para pasmo dos habitantes, que nunca haviam visto o transplante de espécies tão grandes. Nas aléias de Friburgo, Barléus só mencionou a existência de 700 coqueiros, mas frei Calado, que passeou por elas, referiu-se também a 2.000, cifra que certamente ouvira do próprio Nassau. O provável é que esta última correspondesse ao total de coqueiros plantados pelo governador do Brasil holandês em todo o Recife e não apenas no jardim do palácio. À sua chegada, Nassau aboletara-se num casarão português, então existente no que é hoje a praça Dezessete. Aí, antes, portanto, da construção de Friburgo, ele criara um horto, o "terreno dos coqueiros", atual praça da Independência, situado no interior do chamado "groot kwartier", que incluía a área ao norte do forte Ernesto, onde veio a ser construído Friburgo.

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