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É
hora de os brasileiros fazerem a autocrítica de sua sociedade
injusta, desigual e violenta
(8/8/1999)
500 anos de
ilusão
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
Há
cem anos, por ocasião do quarto centenário da chegada
dos conquistadores portugueses a Pindorama, o conde de Afonso Celso
publicou o "Por Que me Ufano de Meu País". O livro,
dedicado aos filhos, visava a despertar neles e, por extensão,
em toda a juventude brasileira, um ilimitado amor à pátria.
O lema "right or wrong, my country", em inglês mesmo,
foi colocado na primeira página, logo abaixo do título.
Êxito editorial, o livro e, mais especificamente, a palavra
ufanismo passaram a denotar o patriotismo acrítico, ingênuo,
incondicional.
Por que deveriam os brasileiros ufanar-se de seu país? O
conde apresentou 11 motivos para a superioridade de nosso país
em relação aos outros. Os cinco primeiros retomavam
a tradição edênica inaugurada por Pedro Álvares
Cabral, continuada pelo autor dos "Diálogos das Grandezas
do Brasil" e mantida até hoje: a grandeza territorial,
a beleza da terra (a cachoeira de Paulo Afonso, o Amazonas, a baía
do Rio de Janeiro, a floresta virgem), as riquezas naturais, a amenidade
do clima e a ausência de calamidades naturais.
Os outros tinham a ver com o caráter do povo (bom, pacífico,
caridoso, ordeiro, sensível, sem preconceitos), as relações
cavalheirescas e generosas com os outros países e a história
do país. O brasileiro, segundo o conde, devia ufanar-se por
morar em um país privilegiado, dom da providência,
superior a todos os outros. O que ainda não tínhamos,
poderíamos conquistar, transformando-nos eventualmente na
primeira potência do orbe.
Cem anos depois do livro do conde, às vésperas do
quinto centenário do evento que entre nós muitos ainda
chamam de descoberta, já pululam os novos ufanistas, oficiais
ou semi-oficiais, ingênuos ou espertos, beneficiados todos
pela eficiência dos modernos meios de comunicação.
A onda do oba-oba ufano-turístico só fará aumentar
nos próximos meses. Convém, por isso, retomar os motivos
de ufanismo do conde e examinar sua pertinência cem anos depois.
Alguns deles continham inverdades, como a afirmação
de termos sido o primeiro país autônomo da América
Latina ou de nunca termos sido derrotados (o conde esqueceu-se da
derrota de Ituzaingó, que acabou com a pretensão de
incorporar o Uruguai a nosso território). Outros continham
tolices, como dizer que desfrutávamos liberdades desconhecidas
em outras nações (não fosse o conde muito católico,
poder-se-ia talvez pensar que se referia à liberdade de pecar).
Ou afirmar que os ex-escravos se incorporaram à população
em perfeito pé de igualdade.
Quanto a considerar a natureza como motivo de orgulho, poderíamos
responder com Machado de Assis que ela não é obra
nossa e que, portanto, não nos cabe dela nos orgulharmos.
Mas temos que acrescentar que, se não fizemos a natureza,
muito a desfizemos.
Nossa grandeza física continua intacta, apesar do receio
de alguns do que chamam de cobiça internacional sobre a Amazônia.
Também ainda não temos terremotos, vulcões
e furacões. Mas as belezas naturais, o paraíso em
que Deus nos colocou, já foram quase todas destruídas:
as florestas foram e continuam a ser queimadas, as praias, as baías
(a da Guanabara à frente), as suaves brisas e os céus
foram poluídos. Só mesmo os milagreiros autores do
hino encomendado pelo ministro do Esporte e Turismo para o quinto
centenário conseguem beber água fresca nas cacimbas
do sertão.
As riquezas naturais, por sua vez, foram vítimas de predação
incansável e ininterrupta.
A bondade, caridade e doçura de nosso caráter não
impediram que construíssemos uma das sociedades mais desiguais
e injustas do globo, na qual os descendentes dos escravos, contradizendo
a afirmação do conde sobre as condições
de igualdade de sua incorporação, são discriminados
e ocupam os estratos mais baixos da hierarquia social. Não
impediram também que nos tornássemos campeões
de violência na casa e na rua, que os massacres se generalizassem
nas grandes cidades, que a tortura -depois de ser rotina no tratamento
de escravos- se integrasse à prática policial e, por
20 anos, tivesse a cobertura das próprias Forças Armadas.
Primeira potência do orbe? Talvez no futebol e no Carnaval.
Mas é preciso perguntar se um gol de Pelé ou uma Copa
do Mundo valem a Copa que também ganhamos da desigualdade
social e da pobreza; se um carnaval de Joãosinho Trinta ou
um desfile da Mangueira valem os 15% de brasileiros analfabetos,
os 35% com menos de quatro anos de educação, os 36%
infectados por parasitas. Nossa história nos últimos
cem anos? Deles, 41 foram de governo oligárquico sem participação
popular. Mais 15 foram de ditadura civil. Outros 21 de ditadura
militar. Sobram apenas 23 de democracia assustada e tímida,
que tem sido muito lenta e pouco eficaz na solução
do problema da desigualdade.
Ao final do quinto século, é preciso admitir que nossos
melhores sonhos têm sido sistematicamente frustrados por nossa
incapacidade de torná-los realidade. A retórica do
ufanismo só serve para encobrir nossa frustração
como povo e como nação.
Povo e nação que, como disse Renan, só existem
devido à realização de grandes obras comuns
no passado e da vontade de fazer outras tantas no presente.
Os brasileiros que julgam não ser este o país de seus
sonhos, que acham não haver nada a celebrar no quinto centenário,
enfrentarão a agitação ruidosa do oba-oba ufanista
e aproveitarão a data para uma profunda autocrítica
e para a busca de novos rumos que nos dêem no futuro melhores
razões para nos orgulharmos de nós mesmos. Nesse distante
futuro talvez deixemos de ser o país do futuro que hoje desapontaria
Stefan Zweig.
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