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A
prática da ciência social e o exercício do poder
são radicalmente incompatíveis
(4/7/1999)
Crítica
e masoquismo
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
A
maneira mais fácil de ter contato direto com autoridades
brasileiras é sair do país. No curto período
que tenho passado aqui na Universidade de Stanford (EUA) já
encontrei umas quatro. A última foi o secretário de
Estado de Direitos Humanos, José Gregori. O encontro aconteceu
em maio, durante uma Semana Brasileira organizada com competência
pela Associação de Estudantes Brasileiros, com apoio
do Centro de Estudos Latino-americanos e outras instituições
de Stanford.
Em meio às inevitáveis demonstrações
de música, dança e capoeira (Mestre Beicola foi a
estrela), houve também um painel sobre direitos humanos e
cidadania, de que foi convidado de honra o secretário Gregori.
Compuseram a mesa, além do secretário, o cônsul
brasileiro em San Francisco, José Augusto Lindgren Alves,
a juíza do trabalho Mylene Pereira e eu mesmo.
O cônsul falou sobre os acordos internacionais sobre direitos
humanos, tema de sua especialidade. A juíza discutiu a relação
entre direitos humanos e o sistema judiciário. Eu apresentei
um trabalho, já exposto e publicado no Brasil, sobre a relação
entre educação e cidadania. Com a ajuda de transparências,
mostrei uma dezena de quadros estatísticos que demonstravam,
primeiro, a vexaminosa situação educacional do país
e, a seguir, o grande impacto positivo que a escolaridade exerce
sobre a consciência e o exercício de direitos.
Coube ao secretário Gregori falar por último. Entre
outras coisas, afirmou que o país conseguiu grande progresso
em matéria de direitos humanos nos últimos dois anos,
isto é, desde a criação da Secretaria por ele
dirigida. Citou como um dos principais avanços o novo Código
Nacional de Trânsito. Revelou também que os consumidores
brasileiros tinham dado ao mundo um exemplo ímpar de cidadania,
ao terem deixado de comprar os produtos cujos preços sofreram
aumento após a desvalorização do real, evitando
assim a retomada da inflação. O que mais impressionou
a refinada platéia de professores e estudantes de pós-graduação,
no entanto, foi sua garantia de que os brasileiros há mais
de dois anos ausentes do país, ao regressarem, o encontrariam
mudado no que se refere à área de direitos humanos.
Defender o governo e fazer propaganda do próprio trabalho
é natural e esperado de autoridades. A razão que me
leva a comentar o painel é outra. Antes de elogiar o próprio
trabalho e o senso de cidadania dos brasileiros, o secretário
Gregori, reagindo obviamente à minha intervenção,
afirmou que os cientistas sociais tinham tendências masoquistas.
A afirmação, que era uma acusação, intrigou-me
por duas razões. A primeira era sua gratuidade. Eu não
criticara, nem mesmo mencionara, o governo em minha intervenção.
Apenas apresentara dados estatísticos oriundos de fontes
oficiais e de pesquisas acadêmicas. Meu único comentário
analítico foi uma citação de Joaquim Nabuco,
uma homenagem ao patrono da cátedra que ocupo na universidade.
O contra-ataque do secretário Gregori não foi assim
precedido por um ataque. Mas talvez a alta sensibilidade secretarial
possa ser explicada pela conhecida tradição de governantes
brasileiros, e possivelmente também de outros países,
de não aceitarem que se digam no exterior coisas feias sobre
o país, mesmo que sancionadas pela objetividade das estatísticas.
A segunda razão é mais intrigante. Por que usar o
velho recurso retórico do ataque pessoal, do argumento "ad
hominem", em vez de discutir a substância do raciocínio,
sobretudo diante de um público universitário, por
excelência raciocinante?
Tachar os cientistas sociais de masoquistas envolve de imediato
a questão da relação entre os dois fenômenos.
É a ciência social que torna as pessoas masoquistas,
ou são os masoquistas que se tornam cientistas sociais? Mas
deixemos essa discussão para psicólogos sociais e
psicanalistas. O ponto mais importante tem a ver com a desqualificação
de argumentos, ou dados, sob a alegação de que os
autores sofrem de algum problema psicológico. Com boa vontade,
e para efeito de argumentação, no entanto, vou entender
por masoquismo a tendência a criticar, a apontar aspetos desagradáveis
da realidade, inclusive do próprio país. A recusa
do debate substantivo teria então a ver com a dificuldade
que têm governantes em aceitar a divergência e a crítica,
reais ou imaginadas.
O fato de que a dificuldade atinge pessoas como o secretário
Gregori, respeitado pelo real trabalho que tem feito a favor da
proteção de direitos, inclusive, espera-se, do direito
de discordar, indica a existência de uma área de incompatibilidade
radical entre o exercício do poder e a prática da
ciência social.
O
fascínio do poder
Parece-me importante salientar esse ponto, num momento em que tantos
cientistas sociais ocupam posições de poder, inclusive
a mais alta delas. Cientistas sociais, como os outros mortais, são
sensíveis ao fascínio do poder. Não há
nada de errado nisso. É possível também, embora
não seja fácil, haver diálogo e eventual colaboração
entre cientistas sociais e governantes. Mas ninguém pode
exercer o poder como cientista social. Os objetivos, os compromissos,
os métodos, a ética são diferentes, como já
nos lembrou Max Weber. O cientista social, enquanto tal, não
pode abrir mão de sua liberdade de pesquisar, de analisar,
de criticar, sobretudo em um país como o nosso, sob pena
de se transformar em engenheiro social. O exercício da crítica
é inseparável da natureza da profissão como
tem sido vista até agora, e como seria de desejar que continuasse
a ser vista.
Ser tachado de masoquista não será certamente o preço
mais alto a ser pago pelo exercício da profissão assim
concebida.
Leia mais: A
liberdade dos pós-modernos
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