Um número cada vez maior de cidadãos decide sobre assuntos privados cada vez menos importantes

(30/5/1999)

A liberdade dos pós-modernos

JOSÉ MURILO DE CARVALHO

Em conferência feita em 1819, Benjamin Constant -o político e ensaísta franco-suíço, não o general brasileiro- elaborou uma distinção que se tornou clássica, entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos. A liberdade dos antigos teria existido nas cidades-estados da Grécia, sobretudo em Atenas. Era a liberdade que tinha o cidadão de participar, diretamente e na praça pública, das deliberações sobre os negócios da cidade. Era uma liberdade positiva, isto é, o cidadão era livre para participar da vida pública.

Ela não incluía a liberdade civil, pois o cidadão era submetido ao interesse da coletividade. Sócrates foi um dos que pagaram por essa subordinação. Ela também não era incompatível com a existência de muitos não-cidadãos, como as mulheres e os escravos. Pode-se mesmo dizer que a presença dos escravos era essencial para que os cidadãos pudessem se dedicar em tempo integral à causa pública em exercício direto da democracia.

Esse conceito de liberdade ressurgiu durante o período jacobino da Revolução Francesa, graças a sua incorporação à teoria da vontade geral de Rousseau. O fato levou Benjamin Constant, um liberal que não era inimigo da revolução, mas que se preocupava com a dificuldade de ela se transformar em sistema de governo, a argumentar que a liberdade dos antigos não era compatível com os tempos modernos, com a sociedade européia do começo do século 19. O comércio e a indústria tinham se desenvolvido extraordinariamente, as relações sociais tinham se tornado mais complexas, não havia mais escravos. A grande maioria dos cidadãos precisava cuidar da própria vida, enriquecendo ou simplesmente sobrevivendo. Poucos dispunham do lazer necessário para se dedicarem aos negócios públicos.

O que os cidadãos pediam não era participação direta no governo, mas que o governo -ou o Estado em geral- os deixasse em paz, os livrasse das restrições à liberdade civil de trabalhar e ganhar dinheiro. Pediam uma liberdade negativa. O cuidado dos negócios públicos, os modernos o deixavam nas mãos de representantes que para isto escolhiam em eleições a que cada vez maior número de cidadãos e cidadãs era admitido. Acoplada à liberdade negativa dos modernos, nascia, na formulação de Benjamin Constant, a democracia representativa, exercida indiretamente pelos cidadãos.

Em artigo anterior ("Boliche solitário", publicado no Mais! de 28/03/1999), discuti a onda de apatia social e política que, segundo alguns analistas, estaria invadindo os Estados Unidos nos últimos anos. Tal apatia se manifestaria na queda dos índices de participação política, representada pelo voto, e dos índices de envolvimento em associações voluntárias de todo tipo. Houve várias contestações a essa visão pessimista, algumas negando a validade dos dados ou a dimensão do fenômeno, outras discordando de sua interpretação. Comento aqui apenas as últimas.

Alguns de seus porta-vozes admitem a existência da apatia e da perda de confiança no governo. Mas contestam que elas sejam necessariamente um mal. Poderiam ser mesmo interpretadas como sintoma positivo. Refletiriam o fato de que a ação do Estado na administração da economia é hoje cada vez menos necessária e cada vez menos relevante. Ao se omitirem, os cidadãos estariam simplesmente sinalizando a percepção desse fato, estariam indicando que teriam chegado à conclusão de que os complexos assuntos econômicos de hoje se governam melhor por si mesmos, isto é, pelo mercado, sem necessidade de interferência do Estado.

A insistência dos governos nacionais em resolver problemas que escapam a sua competência e jurisdição é que estaria levando a seu descrédito e ao consequente aumento da apatia política. A apatia seria, nessa visão, sinal positivo do surgimento de uma nova liberdade. Essa nova liberdade seria em parte uma retomada, em dimensão mais radical, da liberdade dos modernos que foi por algum tempo reprimida pelo intervencionismo estatal surgido na década de 1930. Estaríamos, assim, assistindo ao nascimento de uma liberdade que poderíamos chamar de pós-moderna, mais negativa ainda do que a liberdade dos modernos, e ao surgimento de uma nova democracia caracterizada pela ausência de participação.

Benjamin Constant preocupava-se com o perigo de que a liberdade dos modernos levasse ao desaparecimento da consciência dos assuntos públicos e ao excessivo poder e falta de controle dos representantes eleitos pelos cidadãos. Tal preocupação desaparece na visão pós-moderna, uma vez que o Estado se torna irrelevante. O que importa para o cidadão pós-moderno é gozar de toda a liberdade individual para fazer as escolhas cada vez mais variadas que o mercado lhe oferece. Ele precisa de liberdade para escolher o novo carro, o laptop mais em conta, o melhor financiamento para a casa própria, o plano de saúde e de aposentadoria mais adequado, o mais eficiente servidor da Internet, a companhia telefônica que oferece tarifas mais baratas, o lugar onde vai passar as próximas férias, a universidade para onde vai mandar o filho ou filha. Ele é um cidadão essencialmente privado, se isso é possível, pois na nova democracia o público se despolitiza e desvanece.

A liberdade dos antigos representava o poder que tinham poucos cidadãos de decidir sobre os assuntos públicos que diziam respeito a eles e aos muitos não-cidadãos. A liberdade dos modernos significava o poder de muitos cidadãos de escolher os poucos representantes que deveriam decidir em seu nome sobre os assuntos públicos. A liberdade dos pós-modernos é o poder de um número cada vez maior de cidadãos de decidir sobre assuntos privados cada vez menos relevantes. Façam sua escolha.

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