A leitura do "Laacoonte", de Lessing, constitui um dos melhores meios para o leitor dar-se conta do abismo entre as concepções moderna e modernista da arte

(6/2/2000)

A arte entre o engano e a reflexão

LUIZ COSTA LIMA

O nacionalismo cultural tem entre seus efeitos danosos a secundariedade concedida à tradução. Ela engendra um duplo preconceito. Primeiro: válida para os que não têm acesso ao original, a tradução violaria a área da "criação" (poesia e gêneros literários). Segundo: seria aceitável na área da reflexão, por não ser ela uma área que cria na linguagem! Seria preciso um longo ensaio para analisar-se a série de clichês que comanda tais preconceitos: a tradução é impossível, o tradutor é um traidor, na prosa, a linguagem é um ornato gramaticalmente disciplinado.

Os clichês têm uma longa história, que tem por princípio a equivalência renascentista entre arte e imitação (da natureza ou, conforme Panofsky, da Idéia platônica). Só o aniquilamento de seu princípio permitiria que se entendesse que traduzir é uma transposição criadora; que a reflexão, sem ser necessariamente parte da arte, não há de ser menos criadora.

Essa esquemática entrada é motivada pela edição em português do "Laacoonte" (1766), de G. Ephraim Lessing (1729-1781), feita por Márcio Seligmann-Silva (Ed. Iluminuras). Louvar seu trabalho por torná-lo acessível ao leitor que não leia o alemão é não só estreito como mantém os preconceitos intactos. A edição do "Laacoonte" em português é excepcional quer por divulgar uma reflexão sistemática sobre a distinção moderna entre poesia e pintura, quer pela qualidade das notas suplementares do tradutor às do próprio Lessing e, sobretudo, por sua introdução.

Pois, além de sua competência filológica, o texto "Introdução intradução" se destaca por sua rara capacidade reflexivo-criadora.

Isto é, crítica. Por que crítica? Roçamos em um terceiro preconceito. Usualmente entendida como atividade de um juiz que, de fora, dá seu veredicto sobre uma obra, a crítica era definida por F. Schlegel , no final de "Sobre a Essência da Crítica" (1804), como "a aliança íntima da história com a filosofia", fundida a um terceiro termo: a reconstrução do "movimento (Gang) e da articulação" de uma obra. Por coincidência, o "Sobre a Essência da Crítica" foi escrito como introdução a um conjunto de obras de Lessing. É o seu próprio andamento que refazemos ao ressaltar a introdução de Seligmann-Silva.

Ao concentrar-se no verso de Horácio "ut pictura poesis" (a poesia como pintura), Lessing participava de um duplo esforço: (a) aquele que vinha do Renascimento -reconstituir a Antiguidade, isto é, reconsiderar como ela teria visto a arte; (b) conduzir aquela reconstituição ao pensar a arte nos tempos modernos. Esta segunda meta logo se associaria à questão de a quem conceder a primazia, se aos antigos ou aos modernos (por sua menor relevância, no caso de Lessing, não tocaremos na questão da Querelle des Anciens et des Modernes).

Destaca-se só a primeira parte da segunda meta: pensar a poesia diante da pintura, significava para Lessing estabelecer o papel e os limites do "medium" em que cada uma se cumpria. Integrando-se pois o trabalho de Lessing a uma demanda iniciada séculos antes, elaborá-lo supõe a reconstrução de suas etapas principais. Para Seligmann-Silva, fazê-lo significou retomar o caminho exemplarmente traçado por Rensslaer Lee ("Ut Pictura Poesia - The Humanistic Theory of Painting", 1967) e Jacqueline Lichtenstein ("La Couleur Éloquente", 1989), sem dispor do espaço de um e de outro. Acompanhemo-lo em seus passos básicos.

O "Paragone", de Da Vinci (1452-1519), contestava a supremacia que a tradição assegurava à poesia. Ela passa à pintura, que, por tratar com signos visíveis, faz com que o "olho receb(a) as semelhanças como se elas fossem naturais". A inversão tem várias implicações: (a) concedia ao pintor um status que, enquanto era ele reconhecido como artesão, era privilégio do poeta-humanista; (b) acentuando a ilusão criada pela semelhança, estabelecia a equivalência moderna entre mímesis e imitação; (c) como se comprova pelas múltiplas rubricas do "Paragone" (sobre a anatomia, a ótica, a fisiologia, a hidráulica etc), aproximava a pintura das ciências nascentes.

Embora a posição de Da Vinci logo encontrasse o obstáculo da Reforma e da Contra-Reforma, empenhadas em sobrevalorizar a palavra na luta religiosa, a inversão por ele efetuada não será esquecida. Ao "Paragone" se acrescentará o contributo de Roger de Piles (1635-1709). Com o pintor e teórico da arte, a reflexão tomará outro rumo: além do destaque do colorido, básico para o início do processo de autonomização da pintura, ressalta o "movimento das paixões, (o) revolver do coração", que ao destaque do visível acrescenta o papel da expressão emotiva.

A ênfase tanto no visível como no expressivo será acolhida pela sistematização de Lessing. Ambos assegurarão a Lessing a primazia que retorna à poesia, pois, apesar de seus signos, as palavras, não serem naturais, excedem na ilusão da "evidentia": "O poeta pode elevar a esse grau de ilusão também a representação de outros objetos que não os visíveis" (cap. 15). Destaque-se a propósito a observação de Seligmann-Silva: a valorização da ilusão e da "evidentia" conduz à "suspensão" do significante quanto ao significado e ao referente, em contraste com o barroco e com a poesia (com a arte) contemporânea.

Na impossibilidade de acompanharmos todos que estiveram em diálogo com Lessing, saltemos para a contribuição do historiador e crítico J.-B. Du Bos (1670 1742). É dele a surpreendente afirmação: "A ficção não passa por mentira senão nas obras às quais atribuímos exatamente a verdade dos fatos". Publicada em obra de 1719, a extraordinária intuição da arte como constitutiva da ficção continuaria sem eco em Diderot, que, nos "Salons, 3" (1767), insistiria em que "dans toute production poétique il y a toujours um peu de mensonge" (em toda produção poética há sempre um pouco de mentira). A afirmação de Du Bos, que Seligmann-Silva transcreve, salta, por assim dizer, sobre sua própria obra, que continua, a partir da distinção dos signos entre naturais e arbitrários, a afirmar a superioridade da pintura, pois dotada de maior "evidentia".

Dado nosso curto espaço, enfatize-se um traço geral: ao passo que os teóricos que antecedem Lessing o fortalecem na concepção da arte como "evidentia" e, direta ou indiretamente, no realce da poesia, como "evidentia" do visível e do invisível, excepcionalmente algumas das afirmações deles levantavam a pista para a teorização contrária: da arte como não-imitação. Pode-se, pois, tanto entender com Seligmann-Silva que suas contribuições encaminhavam para a teoria da imaginação que culminaria na "Crítica da Faculdade de Julgar" (1790), de Kant, como para uma teoria mais adequada ao conhecimento do sensível (expressão preferível ao termo consagrado, "estética", que remete ao apenas perceptivo).

Nesse sentido, a afirmação de Moses Mendelssohn, em 1757, tem a mesma excepcionalidade da que reconhecíamos em Du Bos: "Chama-se um conhecimento de sensível (se) percebemos de uma vez um grande número de características de um objeto sem poder separá-las de modo distinto umas das outras". Isso, contudo, não impede que Mendelssohn, amigo e correspondente de Lessing, mantivesse a idéia de que a arte agrada pela ilusão ou pelo engano desejado.

Em suma, a leitura do "Laacoonte", com as notas do autor e do tradutor, junto com a introdução deste, constitui um dos melhores meios para o leitor, mesmo o não-especializado, dar-se conta do abismo entre as concepções moderna e modernista da arte; assim, ao passo que o realce moderno da "evidentia" faz que Lessing louve, no poeta, a rapidez da leitura, o destaque do "significante escrito", desde Mallarmé e Valéry, antes ressalta a leitura lenta, repetida, ruminante. A reflexão que se lhes segue completará a destruição do topos "ut pictura poesis" e de sua base na imitação.

Só muito recentemente, esta, fundada na auto-reflexão do signo, será, de sua parte, posta em questão. Mas isso já nos levaria além do livro comentado.

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