Temos uma dívida com
a África, diz Katia Mattoso
Nome:
Katia de Queirós Mattoso
Idade:
68 Cargo: titular da cadeira de História
do Brasil da niversidade de Paris-Sorbonne
Especialidade: história econômica e social
da Bahia (1750-1889), história social da escravidão
no Brasil (1549-1888). Doutora em Ciência Política
pela Universidade de Lausanne e em letras e ciências
humanas pela Universidade de Paris-Sorbonne
Livros: "Bahia no Século 19 - uma Província
no Império" (Nova Fronteira, 1992), "Ser
Escravo no Brasil" (Brasiliense, 1982) |
OTÁVIO
DIAS
Especial para a Folha,
de Paris
"A
idéia de um país nascido como colônia
e esmagado pelo colonizador foi dominante na historiografia
brasileira. Mas, nas últimas décadas, o Império
Português começou a ser visto como um triângulo,
constituído por Portugal, Brasil e África, sobretudo
Angola". Essa é a opinião da cientista
política e historiadora Katia de Queirós Mattoso,
68, professora emérita da Universidade de Paris-Sorbonne,
onde, desde 1988, é titular da cadeira de História
do Brasil.
Para Mattoso, a efeméride dos 500 anos do Descobrimento
é o momento adequado para o Brasilrepensar seu passado:
"Esse problema de identidade só será resolvido
quando começarmos a nos pensar não mais como
colonizados, mas como parte do Império ortuguês".
Leia abaixo os principais trechos de entrevista realizada
em seu apartamento, em Paris.
Folha
-
A sra. considera importante comemorar os 500 anos do Descobrimento
do Brasil?
Katia Mattoso - As comemorações só
têm sentido se levarem a uma reflexão sobre o
nosso passado. Temos um problema de identidade que se origina
no momento de nossa separação de Portugal. Durante
muito tempo, a tendência dos historiadores e dos intelectuais
foi jogar a culpa sobre o período colonial. Nossa personalidade
tardaria a vir porque fomos colônia. O problema de identidade
só será resolvido quando -e esse é o
momento de fazer isso- começarmos a nos pensar não
mais como colonizados, mas como tendo feito parte de um grande
império, o Império Português.
O Brasil desempenhou um papel extremamente importante nesse
império, principalmente após o século
17. Não era um apêndice de Portugal. Se pensarmos
nossa história junto com aqueles que foram o ponto
de partida do que o Brasil é hoje, encontraremos elementos
para nos identificarmos de forma diferente da que fizemos
até agora.
Folha
- A sra. pode dar um exemplo desse papel central do Brasil
no Império Português?
Mattoso - O etnólogo Pierre Verger (1902-1996)
foi o primeiro a mostrar que o Brasil, desde o princípio
do século 17, mantinha relações diretas
com a África no comércio de escravos. O tráfico
realizado por Portugal só existiu no começo.
Desde o século 17, nós, brasileiros, já
estávamos em Angola. A Bahia teve relações
intensas com a África até o século 19.
Essa troca só deixou de existir quando o continente
africano foi dividido e colonizado pelas potências européias.
Então o Brasil não pôde mais se meter
na África.
Folha
- O Brasil e a África ganhariam com uma retomada dessa
relação?
Mattoso - Sim. Se olharmos dessa forma, veremos que
temos uma dívida com a África e que deveríamos
contribuir para auxiliar países como Moçambique
e Angola, de onde vieram muitos de nossos escravos. Devemos
reparações morais a esses povos.
Folha
- O nome de um dos seus livros mais conhecidos é "Ser
Escravo no Brasil". Hoje, 500 anos após o Descobrimento,
como seria um livro que tivesse o título "Ser
Negro no Brasil"?
Mattoso - Negro e escravo são dois termos que,
até certo ponto da história do Brasil, definiam
a mesma situação. Eram sinônimos. Atualmente
não há escravidão, mas temos uma grande
população negra e, às vezes, sua situação
ainda se assemelha à que existia no passado. Isso porque
os negros, depois de libertos, tiveram de fazer seu caminho
sozinhos. Não receberam o apoio institucional necessário.
É importante dizer que a posição do negro
brasileiro atualmente depende também do peso que tem
dentro de determinada sociedade, em especial nos meios urbanos.
Folha
- Como assim?
Mattoso - Em áreas onde os negros são
majoritários -a Bahia é um caso exemplar-, há
pessoas negras que ocupam posições nos mais
variados escalões da sociedade. A posição
do negro na Bahia não é a mesma do negro em
São Paulo, embora São Paulo tenha um prefeito
negro. Em sua gênese e em seu desenvolvimento inicial,
São Paulo é uma cidade de brancos. O enegrecimento
da cidade é recente. Em regiões como a Bahia,
o negro é muito mais presente. Isso não quer
dizer que ele tenha facilidade de ocupar qualquer posição
porque ainda existe um forte espírito escravista nessas
sociedades.
Folha
- Na Bahia, o negro tem uma participação maior,
mas, ao mesmo tempo, o preconceito continua?
Mattoso - Sim, em áreas de cultura de cana-de-açúcar,
como Pernambuco, Bahia, Paraíba e também no
Rio de Janeiro, há uma cultura escravista mais forte.
Os escravos começaram a chegar à Bahia já
na segunda metade do século 16. Em São Paulo,
eles só chegaram no século 18. Isso faz com
que a relação mestre de escravos-escravo ainda
esteja, de certa forma, presente. A reação ainda
é a de ver o negro como descendente de escravos. Isso
tende a desaparecer, mas ainda existe.
Folha
- A sra. se refere às elites brancas da Bahia?
Mattoso - Não, é um comportamento mais
ou menos generalizado. Inclusive porque a maioria da elite
baiana tem alguma origem negra. Basta ir à Faculdade
de Medicina de Salvador, onde há retratos de todos
os professores desde a sua fundação, no início
do século 19. Muitos são mulatos ou negros.
Isso não aparece em nenhum registro, mas basta ver
os retratos. Na Bahia, o negro é majoritário
e a sociedade precisa funcionar com a maioria. Mas ainda existe
um tratamento que lembra a época escravista.
Folha
- E por que isso tende a desaparecer?
Mattoso - Porque a cidade de Salvador é hoje
uma grande metrópole, não tem nada a ver com
o que era há 15 anos. A população mais
pobre está melhorando de vida. A indigência continua
a existir, mas os excluídos começam a ter uma
superfície social que não tinham antes. Por
exemplo: as antigas favelas eram de madeira. Atualmente, as
casas são de tijolos. Continuam miseráveis,
mas houve um progresso. Também é preciso destacar
o trabalho feito pelas associações negras da
Bahia, que souberam se impor.
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