Laura de Mello e Souza

Para a pesquisadora da USP, o pluriculturalismo é trunfo do Brasil para o próximo século, uma vez que os países europeus não convivem bem com o tema da mestiçagem

(20/3/2000)

Intolerância é legado colonial, afirma Laura de Mello e Souza


Nome
: Laura de Mello e Souza

Idade:47
Cargo: professora de história moderna na USP
Especialidade: Minas Gerais no século 18
Livros: "Desclassificados do ouro" (Graal,1982), "O Diabo e a Terra de Santa Cruz" (Companhia das Letras, 1986), "Inferno Atlântico" (Companhia das Letras, 1993), História da Vida Privada no Brasil" (organizadora do vol. 1, Companhia das Letras, 1997) e "Norma e Conflito" (Editora UFMG, 1999)

MARCOS FLAMÍNIO PERES
da Redação

O Brasil completa 500 anos desdeo Descobrimento com doislegados opostos da colonização: o pluriculturalismo e a intolerância. É o que afirma Laura de Mello e Souza, professora de história moderna da Universidade de São Paulo e especialista na sociedade mineira do século 18.
Para a historiadora, o pluriculturalismo é um trunfo de que poucas nações podem se gabar de possuir hoje. Sua origem está na mistura entre culturas e etnias tão díspares que marcaram o passado colonial do Brasil. Por outro lado, a colonização também nos legou um ‘vício de origem‘, que é a intolerância: ‘O Brasil é um país que discrimina o tempo todo‘.
Em entrevista à Folha, a historiadora fala também da importância da ‘história das mentalidades‘ para rever interpretações consagradas do Brasil, como as de Gilberto Freyre e Caio Prado Jr. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.


Folha - Faz sentido comemorar os 500 anos do Descobrimento?
Laura de Mello e Souza - Há aspectos importantes a comemorar, mas também um legado horrível, que é formado por tudo o que não fizemos e que nos deixa angustiados. Passados 500 anos, ainda mantemos uma estrutura iníqua, que tem a ver com a forma como se processou a colonização. Mas não é só isso. Somos responsáveis pelos nossos atos. De fato, é um preço muito alto que se pagou pela escravidão. Mas faz mais de cem anos que ela foi abolida e ainda não conseguimos resolver a questão da desigualdade.
O Brasil tem um cacife importante para entrar no século 21: o pluriculturalismo, que será uma realidade do próximo século. E países europeus, como a França, têm dificuldade em conviver com ele. O Brasil, porém, não é uma democracia racial. É um país desigual. Mas somos um país mestiço, e isso é importante. Mestiçagem não só étnica, mas cultural.


Folha - De que modo a ‘história das mentalidades‘ pode contribuir para uma nova interpretação do Brasil?
Mello e Souza - Ela é um instrumento de análise muito importante, por mostrar por que certos padrões de comportamento permanecem. Um desses traços é a intolerância. O Império português foi feito de tolerância e intolerância. O Brasil não é apenas uma democracia racial, como dizia Gilberto Freyre, mas um país que discrimina o tempo todo.


Folha - Os limites tênues entre ordem e desordem são um traço constitutivo do Brasil?
Mello e Souza - Acho que sim. Essa é uma das características mais marcantes de nossa história: como é que migramos imperceptivelmente da norma para a negação da ordem e da ordem para o conflito. Isso tem a ver com as fronteiras entre público e privado.


Folha - Essa indistinção entre ordem e desordem explicaria a figura do ‘malandro‘?
Mello e Souza - A malandragem sempre foi algo mais ideológico do que real. Existe no Brasil uma ideologia da vadiagem, que foi construída de cima para baixo e significa uma total intolerância e incapacidade para entender o povo brasileiro. Seja pela recusa da mestiçagem, das formas alternativas de trabalho, pela recusa de culturas diferentes da européia, tudo acabou sendo colocado no bolsão que se chamou vadiagem.


Folha - Como se desenvolveu a resistência à opressão da norma do colonizador português?
Mello e Souza - De várias formas, desde a violência até a malandragem, mas a ‘boa‘ malandragem. Os escravos frequentemente driblavam a repressão e inventavam uma forma malandra, no bom sentido, de conviver com a escravidão. Pode-se conseguir, com esperteza, enfrentar a ordem em situações desvantajosas.
O que mais assusta, porém, é que a sociedade brasileira seja uma sociedade violenta, de uma violência que nem sempre é aparente. Uma sociedade dessa natureza pode ser negada desde a forma mais radical, que é pelo enfrentamento, até pelo estratagema. Isso acontece o tempo todo.


Folha - Diferentemente dos EUA, a colonização do Brasil se deu pela presença quase só de homens. Mulher e filhos ficavam em Portugal. Como isso influenciou a formação do país?
Mello e Souza - A ausência da mulher no Brasil Colônia é uma questão mal colocada. De fato, muitas famílias se constituíam, com negras, índias, com o que havia. Uma das famílias mais ilustres da Colônia, a Cavalcante, descende de uma índia.
Mas há o lado oposto dessa questão, que tem a ver com a negação da mestiçagem. Como havia pouca mulher branca, as uniões que se fizeram foram ilícitas. Em nosso inconsciente, gostaríamos todos de descender de famílias brancas. E o fato é que não descendemos. As famílias paulistas ilustres pretendiam descender de princesas indígenas, e mesmo quem tinha sinais evidentes de mestiçagem negava a ascendência escrava e enaltecia a indígena.


Folha - A tensão entre barbárie e civilização é um fardo que o Brasil carrega em sua história?
Mello e Souza - Sim, sobretudo porque em grande parte as elites assumiram esse caráter. A vertigem do Brasil é que a barbárie pode engolir a civilização. A idéia de que o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão é sempre posta, recriada pelas elites, que negam suas origens. Poucos países têm uma elite tão predadora como a brasileira. Não adianta dizer que são os outros. A elite somos nós. E vamos entrar no século 21 com essa questão em aberto.


Folha - Mas com a possibilidade de ser resolvida?
Mello e Souza - Acho que sim. Caso contrário, nada terá tido sentido. Mas depende de um esforço muito grande. Eu acho que o ensinamento de Gilberto Freyre é o de que a mestiçagem é um valor, um acervo cultural. Há vários campos em que a cultura brasileira é criativa. Não é que o povo seja ruim e o país, bom. O povo é bom, mas os que fazem o país -os que lêem, escrevem, e não me refiro apenas à elite econômica- não têm feito o que podem.


Folha - Por que a sra. diz em ‘Norma e Conflito‘ que a ‘elipse‘ -um modo de nunca nomear diretamente os problemas- é um traço da constituição mental brasileira?
Mello e Souza - Acho que a gente não enfrenta as coisas, tanto para o bem quanto para o mal. No mundo hispânico, me parece que os embates são muito mais abertos, enquanto, no mundo lusitano, são sempre meio "na maciota". Há uma dificuldade de enfrentamento que é típica dessa cultura. Temos essa tradição de coisas não ditas, de meios-tons.

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