Intolerância é legado colonial,
afirma Laura de Mello e Souza
Nome:
Laura de Mello e Souza
Idade:47
Cargo: professora de história moderna na
USP
Especialidade: Minas Gerais no século 18
Livros: "Desclassificados do ouro" (Graal,1982),
"O Diabo e a Terra de Santa Cruz" (Companhia
das Letras, 1986), "Inferno Atlântico"
(Companhia das Letras, 1993), História da Vida
Privada no Brasil" (organizadora do vol. 1, Companhia
das Letras, 1997) e "Norma e Conflito" (Editora
UFMG, 1999) |
MARCOS
FLAMÍNIO PERES
da Redação
O
Brasil completa 500 anos desdeo
Descobrimento com doislegados opostos da colonização:
o pluriculturalismo e a intolerância. É o que
afirma Laura de Mello e Souza, professora de história
moderna da Universidade de São Paulo e especialista
na sociedade mineira do século 18.
Para a historiadora, o pluriculturalismo é um trunfo
de que poucas nações podem se gabar de possuir
hoje. Sua origem está na mistura entre culturas e etnias
tão díspares que marcaram o passado colonial
do Brasil. Por outro lado, a colonização também
nos legou um vício de origem, que é
a intolerância: O Brasil é um país
que discrimina o tempo todo.
Em entrevista à Folha, a historiadora fala também
da importância da história das mentalidades
para rever interpretações consagradas do Brasil,
como as de Gilberto Freyre e Caio Prado Jr. Leia abaixo os
principais trechos da entrevista.
Folha - Faz sentido comemorar os 500 anos do Descobrimento?
Laura de Mello e Souza - Há aspectos importantes
a comemorar, mas também um legado horrível,
que é formado por tudo o que não fizemos e que
nos deixa angustiados. Passados 500 anos, ainda mantemos uma
estrutura iníqua, que tem a ver com a forma como se
processou a colonização. Mas não é
só isso. Somos responsáveis pelos nossos atos.
De fato, é um preço muito alto que se pagou
pela escravidão. Mas faz mais de cem anos que ela foi
abolida e ainda não conseguimos resolver a questão
da desigualdade.
O Brasil tem um cacife importante para entrar no século
21: o pluriculturalismo, que será uma realidade do
próximo século. E países europeus, como
a França, têm dificuldade em conviver com ele.
O Brasil, porém, não é uma democracia
racial. É um país desigual. Mas somos um país
mestiço, e isso é importante. Mestiçagem
não só étnica, mas cultural.
Folha - De que modo a história das mentalidades
pode contribuir para uma nova interpretação
do Brasil?
Mello e Souza - Ela é um instrumento de análise
muito importante, por mostrar por que certos padrões
de comportamento permanecem. Um desses traços é
a intolerância. O Império português foi
feito de tolerância e intolerância. O Brasil não
é apenas uma democracia racial, como dizia Gilberto
Freyre, mas um país que discrimina o tempo todo.
Folha - Os limites tênues entre ordem e desordem
são um traço constitutivo do Brasil?
Mello e Souza - Acho que sim. Essa é uma das
características mais marcantes de nossa história:
como é que migramos imperceptivelmente da norma para
a negação da ordem e da ordem para o conflito.
Isso tem a ver com as fronteiras entre público e privado.
Folha - Essa indistinção entre ordem
e desordem explicaria a figura do malandro?
Mello e Souza - A malandragem sempre foi algo mais
ideológico do que real. Existe no Brasil uma ideologia
da vadiagem, que foi construída de cima para baixo
e significa uma total intolerância e incapacidade para
entender o povo brasileiro. Seja pela recusa da mestiçagem,
das formas alternativas de trabalho, pela recusa de culturas
diferentes da européia, tudo acabou sendo colocado
no bolsão que se chamou vadiagem.
Folha - Como se desenvolveu a resistência à
opressão da norma do colonizador português?
Mello e Souza - De várias formas, desde a violência
até a malandragem, mas a boa malandragem.
Os escravos frequentemente driblavam a repressão e
inventavam uma forma malandra, no bom sentido, de conviver
com a escravidão. Pode-se conseguir, com esperteza,
enfrentar a ordem em situações desvantajosas.
O que mais assusta, porém, é que a sociedade
brasileira seja uma sociedade violenta, de uma violência
que nem sempre é aparente. Uma sociedade dessa natureza
pode ser negada desde a forma mais radical, que é pelo
enfrentamento, até pelo estratagema. Isso acontece
o tempo todo.
Folha - Diferentemente dos EUA, a colonização
do Brasil se deu pela presença quase só de homens.
Mulher e filhos ficavam em Portugal. Como isso influenciou
a formação do país?
Mello e Souza - A ausência da mulher no Brasil
Colônia é uma questão mal colocada. De
fato, muitas famílias se constituíam, com negras,
índias, com o que havia. Uma das famílias mais
ilustres da Colônia, a Cavalcante, descende de uma índia.
Mas há o lado oposto dessa questão, que tem
a ver com a negação da mestiçagem. Como
havia pouca mulher branca, as uniões que se fizeram
foram ilícitas. Em nosso inconsciente, gostaríamos
todos de descender de famílias brancas. E o fato é
que não descendemos. As famílias paulistas ilustres
pretendiam descender de princesas indígenas, e mesmo
quem tinha sinais evidentes de mestiçagem negava a
ascendência escrava e enaltecia a indígena.
Folha - A tensão entre barbárie e civilização
é um fardo que o Brasil carrega em sua história?
Mello e Souza - Sim, sobretudo porque em grande parte
as elites assumiram esse caráter. A vertigem do Brasil
é que a barbárie pode engolir a civilização.
A idéia de que o sertão vai virar mar e o mar
vai virar sertão é sempre posta, recriada pelas
elites, que negam suas origens. Poucos países têm
uma elite tão predadora como a brasileira. Não
adianta dizer que são os outros. A elite somos nós.
E vamos entrar no século 21 com essa questão
em aberto.
Folha - Mas com a possibilidade de ser resolvida?
Mello e Souza - Acho que sim. Caso contrário,
nada terá tido sentido. Mas depende de um esforço
muito grande. Eu acho que o ensinamento de Gilberto Freyre
é o de que a mestiçagem é um valor, um
acervo cultural. Há vários campos em que a cultura
brasileira é criativa. Não é que o povo
seja ruim e o país, bom. O povo é bom, mas os
que fazem o país -os que lêem, escrevem, e não
me refiro apenas à elite econômica- não
têm feito o que podem.
Folha - Por que a sra. diz em Norma e Conflito
que a elipse -um modo de nunca nomear diretamente
os problemas- é um traço da constituição
mental brasileira?
Mello e Souza - Acho que a gente não enfrenta
as coisas, tanto para o bem quanto para o mal. No mundo hispânico,
me parece que os embates são muito mais abertos, enquanto,
no mundo lusitano, são sempre meio "na maciota".
Há uma dificuldade de enfrentamento que é típica
dessa cultura. Temos essa tradição de coisas
não ditas, de meios-tons.
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