especial - História do Brasil Descobrimento


Jean Marcel C. França: O desastre de Cabral
Ricardo Bonalume Neto: Tecnologia de mastros e velas
A partida
Relação do Piloto Anônimo
A terra da Arábia
Em Melinde
Rumo à Índia
Desordem em Calicute
Detrás do muros
Combate em Calicute
Fuga e naufrágio
A volta


 

 

 

 

O desastre de Cabral
A "Relação do Piloto Anônimo" narra o fracasso da missão oriental da frota que descobriu o Brasil; desde 1946 o relato não é publicado na íntegra em língua portuguesa


JEAN MARCEL C. FRANÇA
especial para a Folha


A "Relação do Piloto Anônimo" é, ao lado das cartas de Pedro Vaz de Caminha e de Mestre João, um dos três testemunhos diretos do Descobrimento do Brasil que chegaram até nós.

O relato tem uma história curiosa. Foi primeiramente publicado em italiano, na coleção organizada por Fracanzano Montalboldo e intitulada "Paesi Novamente Retrovati et Novo Mondo de Alberico Vesputio Florentino Intitulato" (Vicenza, 1507, folhas 58 a 77, capítulos 63 a 83). Montalboldo diz ter traduzido um original em português; todavia, não se conhece o seu paradeiro.

A primeira versão conhecida nessa língua data de 1812 e é da autoria de Trigoso de Aragão Morato. Essa retroversão, que veio a público na "Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas", baseou-se numa versão italiana, publicada por Ramusio Battista Giovanni, em 1550, com o título "Navigationi del Capitano Pedro Alvares Cabral Scrita per un Piloto Portoghese et Tradotta di Lingua Portoghese in Italiana" (In: "Primo Volume della Navigationi et Viaggi...").

Ramusio é o primeiro a atribuir a um piloto a autoria da relação (cujo significado aqui é o de "relato"). Contudo, é muito pouco provável que o autor desempenhasse esse ofício. A própria narrativa quase desautoriza tal suposição, pois é desprovida das observações de natureza técnica comuns em diários escritos por pilotos de navio.

Há quem defenda que o Giovanni Matteo Cretico, então núncio em Lisboa, é o autor do texto. Cretico teria compilado ou traduzido uma narrativa anônima, remetendo-a, em seguida, ao cronista de Veneza, Domenico Malipiero. Daí a edição italiana de 1507. Muitas são, no entanto, as restrições a essa suposição. A principal delas é a de que o núncio não dominava o português, sendo-lhe impossível compilar ou traduzir um texto nesse idioma. Mais plausível é a hipótese de William Greenlee, que, depois de promover um cuidadoso levantamento dos homens alfabetizados que retornaram com a armada cabralina, asseverou ser João de Sá, escrivão da armada, o autor do texto.

Incertezas à parte, a "Relação..." é um documento incontornável para os que querem conhecer um pouco mais sobre a empresa marítima comandada por Cabral. É verdade que, no referente ao Descobrimento do Brasil, a narrativa pouco acrescenta à inspirada e detalhista carta de Caminha (que, aliás, morreu durante a viagem, em Calicute): não ficamos a saber mais nem sobre a viagem entre Cabo Verde e a costa do Brasil, nem sobre as características dos nativos aí encontrados, nem tampouco sobre os primeiros contatos com esses nativos. O Anônimo limita-se a confirmar o que, de forma bem mais colorida, descrevem as outras duas testemunhas do acontecimento.

O relato, no entanto, contrariamente às epístolas, não se detém no achamento do Brasil. Ele segue em frente com a armada e dá-nos conta das muitas desventuras por que passou Cabral e seus subordinados na viagem de ida e volta de Lisboa a Calicute. Tal diferença faz do texto atribuído a João de Sá o único testemunho direto que dispomos da segunda viagem dos portugueses à costa da Índia, uma viagem sobremodo importante, pois tinha como fim realizar o que Vasco da Gama não conseguira na primeira (1497/98): estabelecer relações comerciais permanentes com a cidade de Calicute e firmar a presença lusitana na região.

Não cabe aqui entrar em detalhes acerca de tão importante aventura marítima. É indispensável salientar, todavia, que o conhecimento da empreitada cabralina no Índico, propiciado pela "Relação...", não somente nos dá uma idéia mais precisa da real dimensão que teve o Descobrimento do Brasil no processo de expansão marítima portuguesa, mas também nos esclarece por que razão Cabral, quando retornou a Lisboa, foi recebido muito mais como o responsável por um desastre político e comercial do que como o audaz descobridor de uma rica e promissora terra.
Antes, porém, que o leitor siga a acidentada navegação do fidalgo Pedro Álvares Cabral (leia nas págs. 5-5 a 5-10), convém dizer uma ou duas palavras sobre a presente edição do relato.
Grosso modo, optei por uma estratégia bastante diferente daquela escolhida por Thomas Marcondes de Souza, que, em 1946, ao apresentar a sua versão da narrativa -até aqui, a última edição completa em língua portuguesa-, explica: "A nossa tradução foi feita, tanto quanto possível, ao pé da letra, sacrificando-se mesmo a forma literária pelo amor à fidelidade ao texto original (...)".

A versão que ora apresento, embora modernizada, procura preservar com a máxima fidelidade possível a peculiaridade das descrições feitas pelo autor. Contudo, dado que desconhecemos o suposto original em português e que o estilo é pouco cuidado na maior parte das edições, não hesitei em promover mudanças tanto na pontuação quanto na ordem das frases, de modo a facilitar a compreensão do texto e a tornar a sua leitura mais acessível. Optei também por corrigir, sempre que pude identificá-los, os nomes de pessoas, coisas e localidades.

Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada e autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio).

 

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Tecnologia de mastros e velas

RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha


Os navios da esquadra de Pedro Álvares Cabral que estiveram nas costas brasileiras em 1500 eram algumas das mais sofisticadas máquinas disponíveis à humanidade naquela época. Eram a síntese da melhor tecnologia então existente, o "ônibus espacial" da era dos descobrimentos.

Tinham uma complexa tecnologia propulsora baseada em um conjunto de mastros e velas que proporcionava boa capacidade de manobra e movimentação em mar alto. Equipamentos de navegação como bússola e astrolábio facilitavam ao navio se afastar das costas. O armazenamento de víveres permitia que se percorressem longas distâncias. O armamento de canhões de carregar pela boca com pólvora e balas esféricas dava um poder de fogo sem rival no resto do planeta.

As grandes navegações portuguesas incluíam um misto de espírito de cruzada cristã com interesse mercantil. Para o empreendimento dar certo, era necessária uma base tecnológica adequada. Todos esses fatores estavam representados entre os cerca de 1.500 homens que tripulavam os 13 navios da frota cabralina.

A maneira como esses navios eram habitados, navegados e comandados resumia em um pequeno universo fechado a sociedade portuguesa da época. No comando supremo estavam os fidalgos aristocratas. Religiosos embarcados cuidavam de manter a bordo o enorme poder que a Igreja tinha em Portugal. Havia técnicos em navegação, como os pilotos, que eram as pessoas mais importantes a bordo depois do capitão -e ninguém podia interferir no seu julgamento sobre as manobras do navio. Seu local de trabalho era uma cadeira ao lado da "agulha de marear" (a bússola).

As técnicas de navegação não podiam ainda ser consideradas estritamente "científicas", como se usaria hoje a palavra; havia muito de empirismo no trabalho dos pilotos (por exemplo, só no século 18 seria possível ter uma determinação razoável da longitude). O famoso cosmógrafo-mor do reino, Pedro Nunes (1502-1578), achava os pilotos uns "ignorantes", segundo o historiador Luís de Albuquerque. Uma avaliação injusta, afirmou Albuquerque, pois muitos pilotos tinham dado provas de grande perícia náutica, "se bem que outros se mostrassem deficientemente preparados e merecessem a crítica".

Personagens importantes como capitães, pilotos e religiosos tinham bem mais espaço a bordo, localizado na parte de trás coberta do navio. Podiam até mesmo ter mobília e embarcar alimento fresco, como galinhas e porcos. Já os marinheiros e soldados comuns tinham de viver em espaços exíguos. Seus raros bens materiais eram principalmente panelas e pratos rústicos. A alimentação era monótona e pouco variou de 1500 a 1800, em Portugal ou em qualquer outro país europeu -carne salgada conservada em barris, biscoito duro, queijos e ervilhas.

No Brasil de hoje "caravela" virou sinônimo de qualquer navio a vela. Mas só três dos 13 navios com que Cabral partiu de Portugal mereciam ser assim chamados. Os outros dez eram naus (incluindo uma "naveta", ou pequena nau, para transportar mantimentos extras). Ironicamente, em 1500 as caravelas estavam saindo de moda. Caravelas eram navios menores, em geral com apenas dois mastros. Além disso, não tinham os altos "castelos" de popa e proa das naus, isto é, áreas cobertas à frente e atrás dos navios. Tinham apenas um pequeno castelo à popa e suas velas podiam ser latinas (triangulares) ou quadradas (caso em que são chamadas de "caravelas redondas", dado o efeito que uma vela quadrangular produz ao ser enfunada pelo vento). Já as naus tinham várias cobertas (conveses abaixo do convés principal) e três mastros.

Por serem mais ágeis e terem capacidade de navegar em ventos vindos de um maior leque de direções do que seria possível com as naus, as caravelas eram as embarcações por excelência para os descobrimentos. Com elas os portugueses foram explorando a costa da África para o sul, até Bartolomeu Dias dobrar em 1488 o cabo da Boa Esperança e mostrar a rota para o Oriente.

Pouco se sabe como eram de fato esses navios. Comentando a evidência disponível, o historiador Francisco Contente Domingues é categórico: "Nada sabemos de concreto quanto ao traçado da caravela latina do século 15". Só no final do século 16 é que surgem descrições mais confiáveis.

Uma vez traçada a rota para a Índia, para poder explorá-la comercialmente os portugueses passaram a empregar as mais pesadas -e mais bem artilhadas- naus. Foi por isso que a esquadra de Pedro Álvares Cabral as tinha em maior quantidade.
Cabral era basicamente um líder militar. A artilharia relativamente moderna de frotas pequenas como a dele ajudaram Portugal a dominar o Oceano Índico por quase um século contra os veleiros locais menos artilhados. O "Piloto Anônimo" faz um interessante relato de um combate entre uma pequena caravela e um navio indiano bem maior -vencido pela caravela. A evolução técnica continuaria ampliando o fosso tecnológico entre europeus e asiáticos, passando-se desses navios de emprego geral (usados para a guerra e o comércio) para os navios construídos especificamente para o combate, os galeões e as naus-de-linha-de-batalha.

Mesmo deixando de lado a possibilidade de combate, sair de Lisboa rumo à Índia ou ao Brasil era uma loteria. Embarcações precárias e superlotadas, fome, doenças e naufrágios faziam com que menos da metade dos tripulantes chegasse ao destino. De 1497 a 1653, um em cada cinco navios enviados à Índia se perdeu no mar, um atestado eloquente de quanto custou para Portugal tomar a dianteira na exploração do resto do mundo.





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A PARTIDA
Onde o rei d. Manuel em pessoa entregou o estandarte real ao capitão


No ano de 1500, o sereníssimo rei de Portugal, de nome d. Manuel, enviou às partes da Índia uma sua armada de naus e navios sob o comando do fidalgo Pedro Álvares Cabral. As embarcações, bem equipadas e em bom estado, partiram com tudo o que era necessário para a sua manutenção por um período de ano e meio. Das 12 naus que compunham a armada (leia abaixo nota 1), a dez foi ordenado que navegassem para Calicute e às outras duas, que rumassem para a Arábia, dirigindo o seu curso para um lugar de nome Sofala. Pretendia-se estabelecer relações comerciais com os mercadores desse lugar, Sofala, que se encontra a caminho de Calicute. Cabia às dez naus mencionadas levar as mercadorias necessárias à viagem.

Em 8 de março do referido ano, num domingo, estando tudo pronto, as naus partiram de um lugar chamado Restelo, situado a duas milhas da cidade, onde há uma igreja chamada Santa Maria de Belém. Quando da partida, o sereníssimo rei foi pessoalmente consignar ao capitão o estandarte real da armada.

Na segunda-feira, 9 de março, a armada fez vela com bom tempo. No dia 14 do mesmo mês, passou pelas Canárias e, no dia 22, pela ilha de Cabo Verde. No dia 23, uma nau desgarrou-se da dita armada. Nunca mais se teve notícia dela, nem tampouco se soube o que lhe ocorreu

 

 

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Relação do Piloto Anônimo
Os dois bandidos que tinham ficado no lugar puseram-se a chorar quando da partida"


O BRASIL
De como as naus discorriam com a borrasca (2)
A 24 de abril (3), quarta-feira da oitava de Páscoa, a armada avistou terra, o que causou grande prazer a todos. Decidimos ver que tipo de terra era e descobrimos que o lugar abundava de árvores e que havia muita gente caminhando pela praia.

Lançamos âncora na foz de um pequeno rio. O capitão mandou baixar um batel ao mar e ordenou que se verificasse que tipo de gente era aquela. Os homens da armada notaram que era gente de cor parda -entre o branco e o negro-, de boa compleição e de cabelos compridos, notaram ainda que andavam nus como tinham nascido, sem vergonha nenhuma. Todos traziam os seus arcos com flechas, aparentando estarem prontos para defender aquele rio. Não havia no batel ninguém que pudesse compreender a sua língua, o que obrigou os homens a retornarem ao capitão.

Entrementes, fez-se noite e despencou uma enorme tempestade.

Na manhã do dia seguinte, ainda em meio à tempestade, levantamos âncora e costeamos rumo ao norte em busca de um porto onde a armada pudesse deter-se. Soprava o siroco.

Finalmente, encontramos um lugar onde deitar âncora. Havia lá alguns homens da terra que pescavam em umas barquetas. Um dos nossos batéis foi ao encontro desses homens, capturou dois deles e os trouxe à presença do capitão, que desejava saber que tipo de gente era. Todavia, não conseguíamos nos entender nem por fala nem por gestos. O capitão ainda os deteve a bordo durante toda aquela noite, ordenando, no dia seguinte, que se lhes pusessem camisa, casaco e barrete vermelho e os deixassem em terra. Eles ficaram muito contentes com as roupas e se maravilharam com tudo o que lhes foi mostrado.

Uma raiz com a qual fazem pão e outros dos seus costumes
Naquele mesmo dia, 26 de abril da oitava de Páscoa, determinou o capitão-mor que se ouvisse missa, mandando erguer uma tenda e um altar num determinado sítio, para onde todos da armada se dirigiram e ouviram a celebração e a prédica. Os homens da terra que se encontravam nas proximidades bailavam, cantavam e tangiam uma espécie de trombeta. Imediatamente depois da cerimônia, dirigimo-nos para os navios. Nessa ocasião, os homens da terra entraram no mar, com água até abaixo dos sovacos, dançando e cantando com grande alegria e alvoroço. Terminado o jantar do capitão, tornamos a desembarcar e buscamos distração e divertimento junto aos homens da terra, que começaram a negociar com os da armada, trocando os seus arcos e flechas por guisos, folhas de papel e peças de pano.

Prazerosamente despendemos todo aquele dia na sua companhia e retornamos tarde para os navios. Encontramos, no lugar, um rio de água doce.

No dia seguinte, o capitão-mor determinou que se fizesse a aguada e que se recolhesse lenha. Os homens da armada dirigiram-se, então, para a praia e, no cumprimento dessas suas tarefas, contaram com a ajuda dos homens da terra. Alguns dos nossos foram até o lugar onde viviam esses homens, três milhas afastado do mar. Uma vez lá, negociaram uns papagaios e uma raiz de nome inhame; essa raiz faz as vezes de pão entre eles e também é comida pelos árabes (4). Tais artigos foram trocados por guisos e folhas de papel.

Permanecemos cinco ou seis dias nesse lugar, cuja gente é escura, tem os cabelos longos e a barba pelada. Eles andam nus, sem nenhuma vergonha, e trazem as pálpebras e a região abaixo da sobrancelha pintadas com figuras nas cores branca e preta e azul e vermelha. O lábio da boca, isto é, o inferior, é furado e o buraco é atravessado ou por um osso tão extenso quanto um prego, ou por uma comprida pedra verde ou azul, a qual fica dependurada no dito orifício. As mulheres, muito belas de corpo, andam também nuas e sem nenhuma vergonha. Seus cabelos são igualmente longos. As casas em que vivem são de madeira, cobertas com folhas e galhos de árvores e sustentadas por muitas colunas de madeira. No meio dessas casas, entre as colunas e a parede, eles dependuram redes de algodão -que podem acomodar um homem- e entre elas fazem uma fogueira. Uma única casa pode abrigar entre 40 e 50 leitos armados como teares.

Dos papagaios da terra há pouco descoberta
Não vimos neste lugar nem ferro nem outros metais. Os homens da terra cortam a madeira com pedras. Pássaros há muitos e de variados tipos, especialmente papagaios, os quais podem ser de muitas cores e alcançar o tamanho de uma galinha. Há outras aves igualmente belas, cujas plumagens são usadas pelos homens da terra para fazer os chapéus e barretes que usam. A terra é abundante em árvores de diferentes tipos e tem uma água excelente, além de inhames e algodão. Não vimos nenhum animal.

O lugar é grande e não sabemos se é ilha ou terra firme, porém, por sua grandeza supomos tratar-se de terra firme. O clima é muito bom. Os homens da terra, que são grandes pescadores, confeccionam umas redes e pescam variados tipos de peixe. Vimos um exemplar por eles pescado que tinha o tamanho de um tonel, mas era mais comprido e mais redondo, sem dentes e com a cabeça semelhante à de um porco. Seus olhos eram pequenos e suas orelhas, longas como um braço e largas como meio braço.

Por baixo do corpo, esse peixe tinha dois furos e sua cauda era do comprimento e da largura de um braço. Pés não se viam em nenhum lugar. A sua pele tinha pêlos como a do porco e era da grossura de um dedo. A sua carne era branca e gorda como a do porco (5).

Durante os dias em que estivemos ancorados, o capitão fez saber ao nosso sereníssimo rei do achamento desta terra e deixou nela dois bandidos, condenados à morte, que trazíamos na armada com esse propósito. O capitão prontamente despachou um pequeno navio de mantimentos, que acompanhava as 12 naus da esquadra, com cartas para o rei, relatando tudo quanto se tinha visto e descoberto. A seguir, desembarcou, mandou fazer uma grande cruz de madeira e determinou que a fixassem no solo. Os dois bandidos que tinham ficado no lugar puseram-se a chorar quando da partida, sendo consolados pelos homens da terra, que demonstraram ter piedade deles.



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A TERRA DA ARÁBIA
"Os homens da terra, homens negros, vestem roupas de algodão fino e de seda, bem como muitas outras finas coisas"


Uma tempestade tão grande que quatro naus se perderam
No dia seguinte, 2 de maio do dito ano, a armada fez-se de vela pelo caminho, para fazer a volta do cabo da Boa Esperança. Tal caminho seria no golfo do mar, mais de 1.200 léguas, cada légua equivalendo a 4 milhas. Aos 12 dias do mês de maio, apareceu em nosso trajeto, rumando em direção à Arábia, um cometa com uma cauda muito comprida, que nos acompanhou durante oito ou dez noites.

No domingo, 24 do dito mês de maio, aproveitando o bom vento, toda a armada seguia junta, com as velas a meio mastro e sem moneta -em razão da chuva que caíra no dia anterior-, quando subitamente veio um vento tão forte pela vante, que só o notamos quando as velas ficaram atravessadas nos mastros.

Perdemos, então, sem que pudéssemos oferecer qualquer ajuda, quatro naus com tudo a bordo. As sete embarcações restantes também quase se perderam. Passamos todo aquele dia tomando o vento de popa, com os mastros e velas rotas, e implorando a misericórdia de Deus. O mar cresceu de tal modo que parecia que galgaríamos aos céus. Subitamente o vento mudou, mas a tempestade caía com uma intensidade tamanha que não nos sentíamos encorajados a dar velas ao vento. Em meio a essa tormenta, perdemos de vista uma nau do comboio. A nau do capitão e outras duas naus tomaram uma direção, uma nau de nome "El-Rei", seguida de mais duas, tomaram outra, e uma nau sozinha tomou um terceiro caminho. E assim passamos 20 dias de tempestade, sem dar uma única vela ao vento.

De Sofala, uma mina de ouro
A 16 de junho (6), avistamos a terra da Arábia. Lançamos âncora junto à costa e apanhamos alguns peixes. Havia muitos doentes a bordo e ninguém desembarcou. Pudemos ver, no entanto, que essa terra é muito povoada. Pusemo-nos a navegar, com bom tempo, ao longo da costa e avistamos grandes rios e muitos animais, o que nos levou a concluir que todos os lugares eram habitados.

Avançamos um pouco mais e demos com Sofala, que é uma mina de ouro. Encontramos aí algumas pessoas que estavam em duas naus mouras, ancoradas próximo a duas ilhas. As embarcações vinham da mina de ouro e dirigiam-se para Melinde. Mal as naus mouras nos avistaram, puseram-se a fugir, indo dar muito perto da terra. As tripulações atiraram-se ao mar, nadando em direção à praia, e jogaram também ao mar as mercadorias que traziam, a fim de evitar que lançássemos mão delas. Depois de capturarmos as duas embarcações, o nosso capitão ordenou que o capitão do navio mouro fosse trazido à sua presença, pois desejava saber de onde era aquela gente. O prisioneiro respondeu que era um mouro, primo do rei de Melinde, e que as naus, vindas de Sofala, eram de sua propriedade. Disse ainda que trazia a bordo sua mulher, a qual seguramente havia morrido afogada em companhia de um dos seus filhos, quando tentava fugir para a terra. Ao saber que ele era primo do rei de Melinde, um rei considerado amigo, o capitão da nossa armada lamentou muito o ocorrido, fez-lhe muitas honras e ordenou imediatamente que os navios e tudo o que traziam lhes fosse devolvido. O capitão mouro perguntou ao nosso capitão se trazíamos a bordo algum encantador que pudesse resgatar do fundo do mar todo o ouro que havia sido atirado ali. O nosso capitão respondeu que éramos cristãos e que, entre nós, tais coisas não eram costume.

Prosseguiu a conversa interrogando o mouro acerca de Sofala, lugar que ainda não havia sido descoberto e era conhecido somente de nome. O mouro informou-lhe que em Sofala havia muito ouro, informou-lhe também que a mina pertencia a um rei mouro residente na ilha de Quilôa. Essa ilha, segundo ele, ficava no caminho que deveríamos tomar, e Sofala, atrás de onde estávamos. O capitão deixou, então, que o mouro partisse e seguimos em frente.

No dia 20 de junho (7), alcançamos uma ilha pertencente ao rei de Sofala, denominada Moçambique. Entre a pequena população local há ricos mercadores. Dessa ilha, que é próxima da terra e conta com um excelente porto, levamos provisões e um piloto para conduzir-nos a Quilôa. Partimos com esse rumo, navegando junto à costa. Ao longo do caminho, deparamos com muitas ilhas habitadas, todas pertencentes ao mesmo rei.

Alcançamos Quilôa no dia 26 do dito mês, restavam somente seis velas, a outra, não mais conseguimos encontrar. A ilha de Quilôa, situada muito próximo da terra firme, é pequena e agradável. As casas são altas como em Espanha e, entre os habitantes, há ricos mercadores, detentores de muito ouro, prata, âmbar, almíscar e pérolas. Os homens da terra, homens negros, vestem roupas de algodão fino e de seda, bem como muitas outras finas coisas.


De como o capitão, depois de receber salvo-conduto, conversou com o rei
Logo que chegamos a Quilôa, o capitão mandou pedir ao rei um salvo-conduto, pedido que foi de pronto atendido. De posse do salvo-conduto, o capitão enviou à terra, em embaixada, Afonso Furtado, acompanhado de sete ou oito homens bem vestidos.

Eles estavam instruídos a dizer que os navios eram do rei de Portugal, que vinham para comerciar com a cidade e que traziam mercadorias variadas, que lhes iriam agradar. Deveriam também comunicar ao rei que o capitão teria grande prazer em encontrá-lo. Em resposta, o rei mandou dizer ao capitão que estava muito contente e que o encontraria no dia seguinte, caso estivesse pronto para desembarcar. Afonso Furtado replicou que o capitão tinha ordens explícitas do rei para não desembarcar e que o melhor seria que, dos seus batéis, conversassem. E assim ficou combinado.

No dia seguinte, o capitão pôs-se pronto com toda a sua gente. Naus e batéis estavam com todas as bandeiras hasteadas e com as artilharias e arautos preparados. O rei do lugar, por sua vez, com grande festa e alvoroço, à maneira local, preparou as suas almadias. O capitão avançou com suas trombetas e pífaros.

Avistaram-se um ao outro e, quando estavam prestes a encontrar-se, as bombardas das naus dispararam. O barulho soou tão alto que tanto o rei como aqueles que o acompanhavam ficaram estupefatos e assustados. Depois de muito falarem, pediram licença um ao outro e se retiraram.

O capitão voltou para o seu navio e, no outro dia, mandou novamente à terra Afonso Furtado, para dar início à negociação. Afonso Furtado, no entanto, encontrou o rei com uma disposição contrária àquela que manifestara ao capitão. O monarca dizia agora que as nossas mercadorias não lhe interessavam e que suspeitava que fôssemos corsários. Furtado transmitiu a mensagem ao capitão e, durante dois ou três dias, ficamos sem absolutamente nada para fazer. Eles, por seu lado, também nada faziam, limitando-se a mandar gente da terra firme para a ilha, movidos certamente pela preocupação de que a tomaríamos pela força. Diante disso, o capitão mandou que nos puséssemos a caminho de Melinde. Encontramos, ao longo da costa, uma série de ilhas habitadas por mouros, inclusive uma cidade chamada Mombaça, cujo rei é mouro. Toda essa costa da Arábia é habitada por mouros. Dizem, porém, que tanto na ilha quanto em terra firme há cristãos, contra quem movem muitas guerras. Nós, no entanto, não vimos nenhum.

 

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EM MELINDE

"Vieram ao encontro da embaixada várias mulheres com uns vasos plenos de fogo, dentro dos quais eram lançados vários perfumes"


De como o presente e a carta do rei de Portugal foram entregues ao rei de Melinde

Alcançamos Melinde no dia 2 de agosto do referido ano. No lugar, estavam ancoradas duas naus provenientes de Cambaia, cada uma com capacidade para 200 tonéis. Os seus cascos eram bem feitos e de boa madeira, madeira amarrada com cordas -eles não utilizam pregos- e untada com uma mistura que tem muito incenso. Tais embarcações, que vinham negociar da parte da Índia, tinham castelos somente na popa.

Logo que chegamos, o rei mandou presentear-nos com carneiros, galinhas, gansos, limões e laranjas -as melhores que existem no mundo. Tínhamos, em nossas naus, alguns homens com escorbuto, a quem essas laranjas fizeram bem. Quando ancoramos em frente à terra, o capitão mandou disparar todas as bombardas, embandeirou as naus e enviou à terra dois feitores do rei -um dos quais apto a falar mouro, isto é, árabe- a fim de indagar como estava o rei e informá-lo de que, no outro dia, seria enviada à sua presença uma embaixada com uma carta que o rei de Portugal lhe remetera. O rei demonstrou grande prazer com a nossa chegada e pediu que o feitor que falava árabe ficasse em terra.

No dia seguinte, o rei enviou à nau do capitão dois mouros muito honrados, que sabiam falar árabe. Por meio deles, mandava-lhe dizer que a sua presença lhe aprazia e que não hesitasse em solicitar, como se estivesse em seu país, tudo de que tivesse necessidade, pois ele e todo o seu reino estavam a serviço do rei de Portugal. O capitão decidiu, então, mandar para terra a carta e o presente que o rei de Portugal destinara ao monarca local. O presente consistia no seguinte: uma rica sela; um par de cabeçadas esmaltadas para um cavalo; um par de estribos e um par de esporas em prata esmaltada e dourada; um peitoral para a sela, com correias e guarnições carmesins muito ricas; um cabresto trabalhado com fio de ouro para o dito cavalo; duas almofadas de brocado e outras duas de veludo carmesim; um tapete fino; um pano de arrás e duas peças de pano escarlate (presente que, em Portugal, valeria mais de 1.000 ducados); e ainda uma peça de cetim carmesim e uma peça de tafetá vermelho. Foi decidido em conselho que o feitor-mor, Aires Corrêa, em companhia de muitos homens principais e ao som de trombetas, iria à terra levar o presente e a carta. Quando do desembarque, o rei mandou que todos os seus principais fossem receber os nossos. A caminho da residência real, situada na praia do porto, vieram ao encontro da embaixada várias mulheres com uns vasos plenos de fogo, dentro dos quais eram lançados vários perfumes. Daí exalavam odores que pareciam impregnar a terra. E assim a embaixada entrou na casa do rei, que a recebeu sentado num trono e rodeado por muitos dos mouros principais. O rei alegrou-se muito quando lhe foi dado o presente e a carta, que vinha escrita em árabe de um lado e em português do outro. Depois de ler a missiva, o soberano comentou algo com os mouros que o rodeavam e todos demonstraram grande contentamento. Deram, em seguida, um grande grito, rendendo graças a Deus por terem como amigo tão grande rei e senhor como o rei de Portugal. Imediatamente, o rei mandou trazer armas e peças de seda e as entregou a Aires Corrêa, pedindo-lhe que, enquanto as naus estivessem ali ancoradas, permanecesse em terra, pois tinha grande prazer na sua companhia. O feitor-mor respondeu que não podia atendê-lo sem antes consultar o capitão. O rei mandou, então, que um cunhado seu fosse, com um anel, solicitar a autorização do capitão e comunicar-lhe que mandasse buscar em terra as provisões e a água de que necessitasse. A nova deixou o capitão muito contente.

Aires Corrêa foi instalado num aposento muito confortável e recebeu, exceto pão, artigo que não é consumido nessas plagas, tudo aquilo de que tinha necessidade, a saber: carneiro, galinha, arroz, leite, manteiga, mel e frutas de diversas qualidades. Corrêa permaneceu três dias em terra, conversando frequentemente com o rei acerca das coisas de Portugal e do rei nosso senhor. O rei dizia-lhe sempre que teria muito prazer em encontrar-se com o capitão. Corrêa explicou-lhe que o capitão tinha ordens de não desembarcar e que a única forma de se encontrarem seria nos batéis, como havia sido feito em Quilôa. A princípio o monarca repudiou essa idéia, mas Corrêa tanto fez que ele acabou por aceitá-la. O capitão foi, então, avisado e rapidamente aprontou os seus batéis, deixando as naus em segurança. O batel em que seguia tinha uma cobertura extensa, de finíssimo tecido escarlate, sob o qual iam escondidos alguns homens armados. O rei, por sua vez, mandou preparar dois batéis semelhantes, também munidos de coberturas, e ordenou que seu cavalo fosse arreado à maneira portuguesa. Não havia, porém, entre eles ninguém que o soubesse fazer, e os nossos homens tiveram de ajudá-los.

No dia combinado, o rei saiu de sua casa e desceu uma escada, ao pé da qual a gente mais rica e honrada do lugar o aguardava. Essas pessoas traziam um carneiro e, logo que o rei montou, trataram de sacrificá-lo e atirá-lo ao chão para que o cavalo real passasse sobre ele. Quando isso se deu, todos soltaram um grito alto e forte. A gente do lugar assim procede por cerimônia e encantamento.

Em Zanzibar tem-se o mesmo costume. A conversa teve finalmente lugar, e o capitão fez saber ao rei que desejava partir, mas que tinha necessidade de um piloto que o guiasse até Calicute. O rei prometeu-lhe que providenciaria um, despediu-se e partiu. Logo que desembarcou, o rei mandou Aires Corrêa levar a bordo muita carne e frutas para o capitão, bem como um piloto guzerate, pertencente a uma das embarcações de Cambaia que se encontrava no porto.

Antes de partir, o capitão desembarcou dois condenados portugueses: um deveria ficar em Melinde e outro seguiria para Cambaia em uma das naus referidas. No dia 7 de agosto, levantamos âncora e iniciamos a travessia do golfo de Calicute.

 

 

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RUMO À ÍNDIA
"Não existe no mundo terra mais fértil e rica que a província de Cambraia"

 

Dos mares Vermelho e Persa e da ilha de Anchediva
Na passagem ao longo da costa de Melinde, deparamos uma rica e bonita cidade moura, de nome Mogadiscio. Mais além, vimos uma grande ilha, onde havia outra belíssima urbe, cercada por muros. Essa ilha, denominada Socotorá, conta com um porto. Andando um pouco mais, demos com a embocadura do estreito de Meca, que não tem mais do que uma légua e meia de largura. No seu interior, está o mar Vermelho, a Casa de Meca e de Santa Catarina do monte Sinai. Daí saem, para o Cairo e para a Alexandria, especiarias e pedras preciosas, que são transportadas, pelo deserto, no lombo de dromedários -um tipo especial de camelo. Acerca desse mar há grandes coisas para se contar. Passando a embocadura, do outro lado, está o mar da Pérsia, no qual existem grandes províncias e muitos reinos, todos pertencentes ao grande sultão da Babilônia. No meio desse mar há uma pequena ilha, de nome Julfar, onde são encontradas muitas pérolas. Na boca do dito mar, há uma grande ilha, de nome Ormuz, onde mora o rei que é senhor de Julfar. Em Ormuz, criam-se cavalos, que são posteriormente vendidos na Índia a elevados preços. Em toda essa região, o tráfego de naus é intenso.

Passando o mar da Pérsia, está a província de Cambaia, governada por um rei grande e poderoso. Não existe no mundo terra mais fértil e rica. Nela há trigo e outros grãos, arroz, cera e açúcar. Produzem-se lá todo o incenso do mundo e muitos tecidos de seda e algodão. Há ainda, no lugar, grande quantidade de cavalos e elefantes. O rei local era um idólatra, porém, não faz muito tempo, um mouro foi coroado, pois os mouros têm muito poder nesse reino. Entre os habitantes, no entanto, há ainda muitos idólatras, que são grandes mercadores e negociam ora com a Arábia ora com a Índia, que começa nesse ponto. Eles costumam percorrer essa costa, a qual conta com muitos reinos e províncias de idólatras e de mouros, até darem no reino de Calicute. Todavia, tudo isso que relato neste capítulo não foi visto por nós.

Alcançamos a Índia no dia 22 de agosto, próximo à terra do reino de Goga. Fizemos um primeiro reconhecimento e avançamos para uma pequena ilha de nome Anchediva, propriedade de um mouro. No meio dessa ilha, ilha distante duas milhas da terra e quase desabitada -dizem que outrora o lugar foi habitado por gentios-, há um grande lago de água doce. Isso faz dela um ponto de passagem para os mouros de Meca que se dirigem para Calicute, pois aí eles podem suprir as suas necessidades de água e lenha. Ficamos 15 dias nesse lugar, recolhendo água e lenha, bem como aguardando para ver se conseguíamos capturar alguma nau vinda de Meca. Os poucos habitantes do local vieram conversar conosco e nos contaram muitas coisas. O capitão deu ordens para que lhes prestássemos grandes honras. Há nessa ilha uma pequena ermida, na qual, durante os dias em que lá estivemos, foram rezadas várias missas pelos religiosos que estavam com o feitor de Calicute. Pudemos, assim, confessar e comungar. Depois de recolhermos a água e a lenha necessária e constatarmos que as tais naus de Meca não iriam aparecer, fizemos vela para Calicute, distante 70 léguas.

 

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DESORDEM EM CALICUTE
"O rei veio à praia com 10 ou 12 mil homens e prendeu a nossa gente que estava em terra"

De como o capitão foi ter com o rei de Calicute
Chegamos a Calicute no dia 13 de setembro de 1500. Quando estávamos a uma légua da cidade, veio receber-nos uma frota de batéis. As embarcações traziam o catual de Calicute, um mercador guzerate muito rico e os principais da cidade. O grupo entrou na nau do capitão e disse-lhe que tinha muito prazer em recebê-lo. Deitamos, então, as nossas âncoras em frente à cidade e disparamos uma salva de artilharia. Os indianos maravilharam-se e disseram que, contra nós, somente Deus poderia sair vencedor. E assim passamos aquela noite.

Na manhã seguinte, o capitão determinou que fossem levados à terra os indianos que trazíamos conosco de Portugal, cinco ao todo: um mouro que entre nós foi convertido ao cristianismo e quatro pescadores gentios -todos falavam muito bem o português. O capitão os enviou ao rei muito bem vestidos, com a missão de explicar-lhe a que vínhamos e, também, de solicitar-lhe um salvo-conduto para que pudéssemos desembarcar. E foi o que fizeram. Entretanto, somente o mouro pôde falar com o rei, pois os outros homens, sendo pescadores, não ousaram se aproximar do monarca, não ousaram nem mesmo fitá-lo. Como veremos mais à frente, o rei julga indispensável esse costume, em razão de sua magnificência e posição.

O rei, como referi, mandou expedir um salvo-conduto para todos os que desejassem desembarcar. Logo que soube disso, o capitão tratou de enviar à terra Afonso Furtado, na companhia de um intérprete que falava árabe, para informar ao rei que as nossas naus pertenciam ao rei de Portugal, o qual os enviara àquela cidade para firmar um tratado de paz e comércio com eles. Para isso, no entanto, prosseguia a mensagem, era necessário que o capitão desembarcasse, o que, de acordo com as determinações do rei de Portugal, só poderia ser feito se tivesse em poder dos seus pessoas da cidade que garantissem a sua vida.

Diante disso, o capitão solicitava ao rei de Calicute que enviasse as tais pessoas, as quais seriam escolhidas por Afonso Furtado. O rei, depois de ouvir a embaixada, recusou firmemente as reivindicações do capitão, alegando que os homens escolhidos eram velhos e veneráveis e que não podiam entrar no mar.

Propunha, todavia, substituir os escolhidos por outros. Afonso Furtado respondeu-lhe que não poderia aceitar a troca, pois os nomes escolhidos haviam sido recomendados ao capitão pelo próprio Rei de Portugal (8). Sua Alteza espantou-se com a resposta e, durante dois ou três dias, refletiu sobre o assunto.

Finalmente, o rei teve por bem aceitar as reivindicações, o que de imediato foi comunicado ao capitão, que desejava passar dois ou três dias em terra. O capitão levou consigo 20 ou 30 homens dos mais honrados, todos em boa ordem, com seus oficiais, como convinha aos que estavam a serviço de um príncipe. Levou também toda a prataria que havia nas naus, naus que ficaram sob o comando do seu imediato Sancho de Tovar, a quem coube o encargo de recepcionar com todas as honras os homens da terra, dados como reféns ao capitão. No dia seguinte, o rei deslocou-se para uma casa que tinha junto à marinha e enviou à nau do capitão cinco homens muito honrados, os quais levaram consigo cerca de cem homens de espada e escudo, mais 15 ou 20 tambores. O capitão partiu com seus batéis, tendo anteriormente remetido para a terra tudo o que lhe era necessário. Mal havia partido o capitão, chegaram às naus os cinco homens mencionados. Esses não queriam subir a bordo enquanto o capitão não desembarcasse. Durante um bom tempo permaneceu esse impasse. Aires Corrêa embarcou no seu sambuco, isto é, batel, e os convenceu a embarcar, o que foi feito quando o capitão já tinha alcançado a terra. Ao desembarcar, o capitão e aqueles que o acompanhavam foram recebidos por muitos gentis-homens e carregados nos braços até a casa do rei. Somente aí puseram os pés em terra.

Dos trajes do rei de Calicute em sua residência
O rei esperava numa casa alta, sentado sob um dossel, rodeado por 20 almofadas de tapeçaria de seda. A cobertura do dito dossel era também de seda, de uma cor próxima à púrpura. O monarca estava nu da cintura para cima, trazendo, da cintura para baixo, um pano de algodão -muito alvo e bordado com fios de ouro- enrolado ao corpo. Na cabeça, usava um barrete de brocado, no formato de um capacete alto e comprido. Suas orelhas eram furadas e adornadas com grandes peças de ouro, peças cravejadas com rubis de grande valor, com diamantes e com duas grandes pérolas: uma redonda e outra em formato de pêra, do tamanho de uma avelã. Nos braços, do cotovelo para baixo, trazia grandes braceletes de ouro, cravejado de ricas pedras preciosas e pérolas de alto valor. Também nas pernas trazia o monarca grandes riquezas e, num dos dedos do pé, tinha um anel com um rubi de farto brilho e valor. Os dedos das mãos eram cheios de anéis, todos repletos de pedras preciosas, como o rubi, a esmeralda e o diamante -um dos quais, do tamanho de uma fava grande. Dois cintos de ouro, com muitos rubis sobre o tecido, adornavam a sua cintura. Sua alteza, em suma, trazia sobre si imensa riqueza.

Havia, junto ao rei, uma cadeira toda de prata, com os braços em ouro cravejados de pedras preciosas. Havia também, na casa, um andor, no qual dois homens carregavam o monarca -foi assim que ele veio da casa grande, onde habitualmente ficava, para esta residência. Esse andor era de uma riqueza indescritível. Vimos, ainda, cerca de 15 a 20 trombetas de prata e três de ouro, com os bocais adornados com pedras preciosas, uma das quais de um tamanho tal que precisava de dois homens para carregá-la.

Próximo ao dossel, o rei mantinha quatro vasos de prata, muitos jarros de bronze, grandes candelabros de latão e outros cheios de óleo e pavios; todos estavam acesos sem que isso fosse necessário, apenas por luxo.

O rei se encontrava na companhia de seu pai -afastado do dossel seis ou sete passos- e de dois dos seus irmãos, os quais, tal como outros homens honrados que estavam na sala e se mantinham mais distantes, carregavam sobre si grande riqueza. O capitão, logo que entrou, manifestou a intenção de beijar a mão do rei, mas foi desencorajado, pois os costumes locais vedam qualquer aproximação de Sua Alteza. Diante disso, o capitão permaneceu onde estava. O rei, para prestar-lhe honra, o fez sentar-se. Dando início à embaixada, o capitão leu a carta do rei de Portugal, escrita em língua arábica, e mandou trazer o presente, do qual falaremos a seguir.

O presente que foi dado ao rei e a desordem que se seguiu
Para começar, uma bacia de prata para lavar as mãos, muito grande e com figuras em relevo, tudo dourado; um gomil de prata dourada, de tampa trabalhada com figuras em relevo; duas maças de prata, com as respectivas cadeias de prata para os maceiros; quatro almofadas grandes, sendo duas de brocado e duas de veludo carmesim; um baldaquim de brocado carmesim, com franjas de ouro; um tapete grande e dois panos de arrás muito ricos, um com figuras e outro com arvoredos; e um jarro para despejar água nas mãos, com o mesmo trabalho da bacia. Depois de ler a carta e receber o presente, o rei mostrou-se muito contente. Dirigindo-se ao capitão, disse-lhe que poderia ocupar a casa que lhe fora preparada, mas que deixasse voltar à cidade os cinco homens que estavam nas naus, pois eram gentis-homens e não poderiam comer, beber ou dormir no mar. Todavia, prosseguiu, se o capitão desejasse retornar ao seu navio, que mandasse de qualquer modo desembarcar os cinco homens, os quais retornariam às naus no dia seguinte, enquanto o capitão cuidasse dos seus assuntos em terra. O capitão, com efeito, retornou ao navio, deixando em sua casa Afonso Furtado e mais sete ou oito homens.

Quando o capitão saiu da praia, um sambuco, com um homem de Calicute, partiu na frente e se dirigiu às naus para avisar aos gentis-homens que o capitão voltava. Esses, mal ouviram a notícia, atiraram-se na água. Aires Corrêa, feitor-mor, imediatamente embarcou num batel e capturou dois dos principais e dois ou três domésticos; os outros fugiram nadando para a terra. Nesse ínterim, o capitão subiu a bordo e ordenou que os dois principais capturados fossem colocados sob a coberta.

Mandou, em seguida, dizer ao rei de Calicute que, ao chegar à nau, encontrou uma imensa desordem, causada por um dos seus escrivães, e que havia mandado reter dois dos gentis-homens da cidade como reféns, pois muitos dos seus e de sua mercadoria ainda se encontravam em terra.

O capitão, por fim, propunha ao rei trocar os gentis-homens -que seriam muito bem tratados enquanto estivessem a bordo- pelos nossos homens e bens. Dois dos domésticos detidos foram encarregados de levar essa embaixada ao rei. Esperamos pela resposta durante toda a noite. No dia seguinte, o rei veio à praia com 10 ou 12 mil homens e prendeu a nossa gente que estava em terra. Seu propósito era embarcar os nossos nas almadias e efetuar a referida troca. E assim vieram 20 ou 30 almadias, da praia, e partiram das naus os batéis com os reféns. Nem as almadias tinham coragem de se aproximar dos nossos batéis, nem os nossos batéis, das almadias. E nesse impasse permanecemos durante todo aquele dia.

Quando as almadias retornaram à terra, os nossos homens foram muito destratados e ameaçados. Passaram aquela noite em grande atribulação, ouvindo ameaças de morte. No outro dia, o rei mandou informar que mandaria novamente os nossos homens e as nossas mercadorias nas almadias, que essas estavam desarmadas e que deveríamos enviar os batéis com a sua gente. Sancho de Tovar rumou, então, para onde estavam as almadias e começou a receber toda a prataria e as demais mercadorias que deixáramos em terra. Faltavam, todavia, os nossos homens e um
almofreixe, onde guardávamos uma cama e seus acessórios.

Estávamos nisso quando um dos gentis-homens que vinham nos batéis, e que Sancho de Tovar trazia preso pelo braço, se soltou e pulou no mar. Vendo isso, os homens da armada que estavam numa das almadias enfureceram-se e lançaram ao mar os seus vigias. Desse modo, nos batéis ficou somente um velho gentil-homem (dos que haviam servido como refém) e nas almadias restaram dois rapazes que não conseguiram escapar. No dia seguinte, o capitão apiedou-se do velho, que havia três dias não comia, e o mandou para a terra. Com ele seguiram todas as armas que haviam ficado nas naus quando da fuga dos homens e uma solicitação ao rei de Calicute para que liberasse os dois rapazes -o que foi feito com presteza.

 

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DETRÁS DOS MUROS
"As mulheres pedem aos homens que lhes tirem a virgindade, porque enquanto permanecem virgens não podem procurar marido"


Passados dois ou três dias sem que fôssemos à terra ou alguém da terra viesse até nós, o capitão-mor resolveu reunir-se com os outros capitães. O feitor-mor, nessa ocasião, ofereceu-se para ir à terra, caso o rei de Calicute concordasse em mandar dois reféns. O capitão e os outros aprovaram essa idéia, mas não sabiam como fazê-la chegar ao rei. Imediatamente, um cavalheiro de nome Francisco Corrêa disse que levaria a mensagem. E assim o fez.

Corrêa disse ao rei que o feitor-mor, Aires Corrêa, estava pronto para desembarcar e assinar um tratado comercial com ele, mas que para isso precisava ter como garantia a vida de dois mercadores, entre os quais um guzerate muito rico. Esse mouro guzerate disse ao rei que mandaria em seu lugar dois sobrinhos, o que muito contentou sua serenidade. No dia seguinte, Francisco Corrêa enviou a resposta ao capitão, Aires Corrêa pôs-se pronto e o rei despachou para as naus os dois reféns. O feitor-mor desembarcou na companhia de oito ou dez homens, voltando às naus no final da tarde para dormir. No outro dia, ele retornou à terra para finalizar os negócios. Quanto aos reféns, esses permaneceram sempre a bordo das naus. O rei mandou dar a Aires Corrêa a melhor casa que possuía o mercador guzerate e encarregou esse homem de ensinar ao feitor os usos e costumes do país. E assim Corrêa começou a negociar e conseguiu vender algumas mercadorias.

A língua que falavam conosco era o árabe, de modo que não tínhamos como nos dirigir ao rei sem a mediação dos mouros, uma gente má, muito hostil aos portugueses e que a toda hora se servia de embustes e nos impedia de enviar alguém às naus. O capitão, constatando que dia após dia mandava gente à terra e ninguém trazia nenhuma informação, resolveu fazer vela.

Estávamos nós presos em terra, numa casa guardada por muita gente, quando vimos que as nossas naus partiam. O guzerate, cioso dos seus sobrinhos, permitiu que Aires Corrêa enviasse às naus, numa almadia, um rapaz com um protesto ao capitão.

Sabedor do dito protesto, o capitão imediatamente voltou ao porto. Aires Corrêa pôde, então, iniciar as suas negociações com o rei e, pouco a pouco, acertou um contrato como queria.

Depois do ocorrido, o guzerate, sempre tendo em conta que os
seus sobrinhos estavam nas naus como reféns, solicitou ao rei que encarregasse um importante mercador turco dos nossos negócios. Mudamos para uma casa próxima à morada desse mouro e começamos a inspecionar mercadorias para a compra. Dedicamo-nos a isso uns dois meses e meio, tempo necessário para o cumprimento dos termos do contrato, cumprimento que só foi conseguido graças ao esforço de Aires Corrêa e daqueles que o acompanhavam. Terminado o contrato, depois de muito regatear, o rei cedeu a Corrêa uma casa junto ao mar, com um belo jardim, no qual foi hasteada uma bandeira com as armas do rei de Portugal.

Da referida transação, o rei deu duas cartas: a de cobre, com o sinal real esculpido em latão, deveria ser entregue na casa de feitoria; e a de prata, com o mesmo sinal esculpido em ouro, ao rei de Portugal. Uma vez finalizadas as cartas, Aires Corrêa imediatamente levou a de prata para a nau e trouxe de lá os dois homens que haviam ficado como reféns. Daí em diante, os da terra passaram a confiar nele e começaram a tratar-nos como se estivéssemos em nosso país.

As coisas corriam assim quando, um dia, entrou no porto um navio que vinha de um reino da região. A embarcação, muito ampla e bem armada, levava cinco elefantes, entre os quais um de tamanho avantajado e elevado preço, pois era treinado para a guerra. Quando o rei de Calicute soube da chegada dessa nau, solicitou ao nosso capitão que a capturasse, dizendo que ela transportava um elefante pelo qual oferecera uma grande soma, mas que os donos tinham se recusado a aceitar. O capitão respondeu que o faria, mas o advertiu de que, se houvesse resistência, mataria a todos. O rei satisfez-se com a resposta e mandou um mouro às naus, incumbido de ver como tomaríamos a embarcação e de avisar os seus ocupantes da nossa intenção.

Entrementes, o capitão mandou uma caravela de grossa bombarda, armada com 60 a 70 homens, atacá-la. Durante duas noites, a caravela a bombardeou sem conseguir tomá-la; no terceiro dia, investiu contra ela e perguntou aos mouros se desejavam capitular. Eles puseram-se a rir da pergunta e começaram a atirar flechas, pois eram muitos, bem armados e ocupavam uma embarcação de porte. Diante disso, o capitão da caravela mandou disparar a artilharia. Rapidamente, a nau foi desbaratada, rendeu-se e foi levada, com a gente que nela se encontrava, para Calicute. O rei veio pessoalmente à praia recepcionar a caravela. O capitão da caravela entregou a ele o capitão da nau e, em seguida, a própria nau. Sua Alteza maravilhou-se com o fato de uma caravela tão pequena, com tão pouca gente, ser capaz de capturar uma outra muito maior, ocupada por mais de 300 homens de batalha. O monarca recebeu os elefantes com enorme alívio e contentamento, e a caravela pôde retornar para junto das naus.

Das coisas e costumes de Calicute
A cidade de Calicute é grande e não é cercada por muros. Em algumas partes, as construções são bastante afastadas umas das outras. As casas são de pedra talhada e cal, cobertas com folhas de palmeira e contam com portas grandes e bem trabalhadas. Ao seu redor, há terrenos cercados por muros, nos quais os moradores cultivam árvores e mantêm tanques para se banhar e poços de onde retiram água para beber. Pela cidade, há grandes tanques de água, frequentados assiduamente pelo povo, que se lava duas, três e até mesmo quatro vezes ao dia. O rei é idólatra, embora outros (9) tenham pensado que era cristão. Os que cometeram tal engano haviam aprendido menos sobre os costumes locais do que nós, que temos mantido consideráveis relações comerciais em Calicute.

O rei chama-se Gnaffer, e todos os seus gentis-homens, bem como aqueles que o servem, são pardos como os mouros. São homens de boa compleição, que andam nus acima e abaixo da cintura. A única vestimenta que trazem consiste num fino tecido de algodão branco ou de outras cores enrolado no corpo. Não andam calçados e não usam barrete, salvo os grandes senhores, que ostentam um barrete aveludado e brocado, algumas vezes muito alto. Os gentis-homens apreciam os braceletes de ouro e têm as orelhas furadas, cultivando o hábito de dependurar nelas muitas jóias. A espada e o escudo estão sempre nas suas mãos: as espadas têm a ponta alargada e os escudos, que podem ser pretos ou vermelhos, são redondos -como as "rotelle" de Itália- e muito leves. Dizem ser os melhores manejadores de espadas e escudos do mundo e cuidam somente desse ofício.

Há muitos desses homens na corte, homens que se casam com uma, cinco ou até mesmo seis mulheres, e que se sentem honrados quando seus melhores amigos dormem com elas, pois entre eles não há castidade nem vergonha. As meninas, quando completam oito anos, começam a ganhar a vida por esses meios.

As mulheres andam quase tão nuas quanto os homens e trazem sobre si grandes riquezas. Têm os cabelos arranjados com muito gosto e são bem bonitas. Elas pedem aos homens que lhes tirem a virgindade, porque enquanto permanecem virgens não podem procurar marido.

A gente local come duas vezes ao dia. A sua alimentação exclui o pão, o vinho, o peixe e a carne, consistindo basicamente em arroz, manteiga, leite, açúcar e frutas. Antes de comerem, lavam-se e, depois de lavados, se alguém que ainda não se lavou os toca, não comem até que se tenham lavado novamente. E dão a isso grande importância. Tanto os homens como as mulheres mascam, diariamente, uma folha de nome bétele, a qual deixa a boca vermelha e os dentes pretos; quem não faz isso é considerado pessoa de baixa qualidade. Quando alguém morre, por terem de vestir preto, pulem os dentes e deixam de mascar a dita folha por muitos meses.

O rei tem duas mulheres e cada uma delas faz-se acompanhar de dez sacerdotes, os quais se unem carnalmente com elas para honrar o rei. Por essa razão, os filhos do rei não herdam o trono, o que é feito pelos sobrinhos, filhos de sua irmã. Mil a 1.500 mulheres habitam o palácio, com o fim de lhe dar maior magnificência. A única função que têm aí é a de varrer e lavar os lugares da casa por onde passa o rei. A água que utilizam para tal é misturada com estrume.

As casas do rei são muito grandes e contam com diversas fontes de água, onde sua alteza pode se lavar. Quando sai de sua residência, o monarca vai num andor muito rico, coberto por um dossel e carregado por dois homens. Ao lado desse andor, seguem muitos tocadores de instrumentos, carregadores, gentis-homens com espada e escudo e, na dianteira do cortejo, arqueiros e guardas. O povo presta ao monarca mais honras do que em qualquer outro lugar do mundo: mantém dele a distância respeitosa de três ou quatro passos e, ao lhe dar alguma coisa, o faz por meio de um ramo, pois não ousa tocá-lo. Quando seus súditos se dirigem a ele, mantêm a cabeça baixa e a mão rente à boca. Os gentis-homens jamais se apresentam diante do monarca sem a espada e o escudo e, ao reverenciá-lo, colocam as mãos sobre a cabeça como se estivessem dando graças ao Nosso Senhor. Nenhum oficial ou homem de baixa qualidade, sobretudo se for pescador, pode ver o rei ou falar com ele. Caso um pescador vá por uma rua e veja um gentil-homem vindo em sua direção, só lhe restam duas opções: fugir ou levar muitas bastonadas. Quando morre o rei, os gentis-homens e suas esposas, para honrar o monarca, queimam o seu corpo com pau de sândalo. A gente de baixa condição enterra-se e polvilha a cabeça e os ombros com cinzas.

A propósito dos homens de baixa condição, eles usam a barba longa e são grandes contadores de histórias, assim como escritores. Para escrever, servem-se de uma folha de palmeira e de uma pena de ferro sem tinta. Outra classe de homens são os mercadores chamados guzerates, provenientes da província de Cambaia. Os nativos desse lugar são idólatras e adoram o sol, a lua e as vacas -os que tentam matar esse animal, pagam com a própria vida. Os mercadores guzerates não comem nada que é morto, não consomem pão nem bebem vinho. Se por engano um jovem come carne, expulsam-no, obrigando-o a vagar pelo mundo à mercê da misericórdia de Deus -mesmo se descendente ou filho de um grande senhor ou de um grande mercador.

Os guzerates acreditam em encantos e em adivinhadores, são mais brancos que os naturais de Calicute e usam a barba e o cabelo muito compridos. Vestem uma roupa de algodão fino, sandálias, véu e usam os cabelos enrolados como os de uma mulher. Como nós, cortejam e casam-se com uma única mulher, geralmente muito bonita e casta. Mantêm-se fiéis à escolhida e têm extremo ciúmes dela. Esses homens são mercadores de tecidos, adornos e jóias.

Dos mercadores e do transporte de mercadorias para o Cairo e Alexandria
Há, na cidade, um outro grupo de mercadores, de nome Zetiestes, proveniente de uma outra província. São idólatras e grandes mercadores de jóias, pérolas, ouro e prata. Sua tez é escura, andam nus e usam umas pequenas toucas, sob as quais trazem os cabelos como um rabo de boi ou cavalo. São os maiores encantadores que existem no mundo e, diariamente, falam com um demônio invisível. As esposas desses mercadores são corruptas e devassas como os naturais de Calicute. Na cidade, habitam, ainda, mouros de Meca, da Turquia, da Babilônia (10), da Pérsia e de muitas outras províncias. São grandes mercadores, muito ricos, e controlam todas as mercadorias que aqui chegam, a saber: jóias de variados tipos e muitas outras coisas finas, como almíscar, âmbar, benjoim, incenso, pau de aloés, ruibarbo, porcelana, cravo, canela, pau-brasil, sândalo, laca, noz-moscada e maça. Todas as mercadorias vêm de fora, salvo o gengibre, a pimenta, o tamarindo, o mirabólano, a cássia fístula (11) e alguma canela selvagem, os quais crescem na região de Calicute.

Os ditos mouros são tão ricos e poderosos que praticamente governam esse reino. Nas montanhas, há um grande e poderoso rei, de nome Narasimha, cujo povo é idólatra. Esse rei tem 200 ou 300 esposas que, quando de sua morte, serão queimadas junto com ele. Tal costume é seguido por quase todos os casados. O corpo do homem é queimado num fosso, fosso ao qual sua mulher, vestida o mais ricamente possível, é conduzida pelos parentes, com música e festa. A mulher desce bailando para o fosso em chamas e, quando cai lá dentro, seus parentes, que já estão preparados, lançam sobre ela potes de manteiga e óleo para que possa queimar mais depressa.

Neste reino, há muitos cavalos e elefantes, pois são utilizados na guerra. Os animais são tão bem domados e amestrados que a única coisa que não fazem é falar, sendo capazes de entender tudo como um ser humano -como pudemos testemunhar em Calicute. O elefantes que o rei possui e nos quais cavalga são os animais mais fortes e ferozes do mundo; dois deles são capazes até mesmo de arrastar uma nau para a terra.

As naus deste país navegam somente entre outubro (ou novembro) e o final do mês de março, meses que correspondem ao verão daqui. Durante o restante do ano é inverno e as naus não navegam, permanecendo em terra. Em novembro, partem de Calicute as naus para Meca, com especiarias destinadas a Jeddah, que é porto de Meca. Daí seguem para o Cairo e Alexandria.

 

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COMBATE EM CALICUTE
"Foram mortos, nessa ocasião, cerca de 500 ou 600 mouros"

A grande mortandade de mouros e cristãos em Calicute
Depois de cerca de três meses em terra, os contratos estavam assinados e duas das nossas naus carregadas com especiarias.

Um dia, o capitão mandou dizer ao rei que estava há três meses na cidade, mas que somente duas de suas naus tinham sido carregadas. Mandou dizer igualmente que os mouros lhe escondiam mercadorias e, secretamente, carregavam as naus destinadas a Meca, as quais eram rapidamente despachadas. O capitão afirmava ainda que ficaria muitíssimo grato se o monarca cuidasse disso com presteza, pois aproximava-se a hora da sua partida. O rei respondeu ao capitão que lhe daria todas as mercadorias que quisesse e que nenhuma nau dos mouros seria carregada antes das nossas. Respondeu também que, se o capitão visse partir alguma nau moura, poderia detê-la, verificar se carregava mercadoria e, em caso positivo, ele entregaria ao capitão, pelo mesmo valor pago pelos mouros, a mercadoria apreendida.

No dia 16 de dezembro, Aires Corrêa estava fechando as contas com dois feitores e escrivães (12) de duas das nossas naus que estavam carregadas e prontas para partir, quando viu sair uma nau moura carregada de mercadorias. O nosso capitão a apreendeu. O capitão dessa nau, acompanhado dos mouros mais importantes que estavam a bordo, desceu à terra e dirigiu ao rei grandes lamentos e clamores. Os mouros puseram-se a dizer ao monarca que levávamos de sua terra mais riquezas do que havíamos trazido e que éramos os piores ladrões e trapaceiros do mundo. Disseram ainda que, se tínhamos tomado a sua nau em seu próprio porto, o que não faríamos daqui para frente.

Desse modo, viam-se obrigados a matar-nos a todos e a exigir que sua alteza saqueasse a casa do feitor. O rei, homem sedicioso que era, concordou que assim se fizesse. Não sabíamos de absolutamente nada do que se passava. Alguns dos nossos estavam, inclusive, em terra, tratando dos seus negócios. Vimos, então, uma multidão se dirigir a eles, atacando-os e ferindo-os.

Saímos em seu socorro e matamos, na praia, sete ou oito inimigos. Eles, por sua vez, feriram de morte dois ou três dos nossos. Éramos em número de 70, com elmos e espadas. Eles eram incontáveis e vinham armados com lanças, espadas, escudos, arcos e flechas. Fomos de tal modo pressionados que nos vimos obrigados a buscar refúgio na casa da feitoria.

Ao realizarmos essa manobra, cinco ou seis dos nossos foram mortos. Mal fechamos a porta, o que fizemos com dificuldade, eles nos atacaram, embora a casa fosse rodeada por um muro da altura de um homem sobre um cavalo. Tínhamos conosco umas sete ou oito bestas, com as quais matamos muita gente. Havia, porém, mais de 3.000 guerreiros reunidos. Levantamos uma bandeira para que, das naus, nos enviassem socorro. Os batéis vieram à praia e dispararam as suas bombardas, mas era inútil. Nisso, os mouros começaram a derrubar o muro da casa, o que realizaram em menos de meia hora. Soaram, então, as trombetas e baterias, em meio a gritos de grande contentamento. Pareceu-nos que o rei se encontrava no meio da multidão, porque avistamos um de seus criados.

Aires Corrêa, vendo que combatíamos havia duas horas infrutiferamente e que não poderíamos aguentar por muito mais tempo, determinou que abríssemos caminho entre os inimigos e batêssemos em retirada para a praia, onde os batéis nos poderiam salvar. E foi o que fizemos. A maior parte dos nossos homens conseguiu entrar na água. Os batéis, porém, não ousavam se aproximar. Por ausência de socorro, morreram Aires Corrêa e 50 outros homens (13). Escapamos a nado, 20 homens ao todo, entre os quais um filho de Aires Corrêa de cerca de 11 anos. Vínhamos muito feridos e entramos nos batéis quase afogados. O capitão dos ditos batéis era Sancho de Tovar, pois o capitão-mor estava enfermo.

Fomos, então, reconduzidos às naus. Quando o capitão-mor viu essa dissensão e maus-tratos, mandou que fossem aprisionadas dez naus dos mouros que estavam no porto; ordenou também que matassem todos os que estivessem a bordo. Foram mortos, nessa ocasião, cerca de 500 ou 600 mouros e aprisionados uns 20 ou 30, que estavam escondidos no porão com a mercadoria. Tomamos tudo o que havia no interior das naus. Uma delas levava três elefantes, que matamos e comemos. Depois de descarregadas, as dez embarcações foram afundadas. No dia seguinte, as nossas naus aproximaram-se da terra e bombardearam a cidade, matando muita gente e causando muito dano. Da terra, respondiam com o fogo de uma bombarda muito fraca. Nesse entretanto, passaram duas naus que iam para Pandarani, distante cinco léguas de Calicute. Essas naus, que traziam muitas pessoas a bordo, navegaram para a terra, onde havia outras sete naus grandes em águas rasas. Como não podíamos aprisioná-las, pois estavam em águas muito rasas, o capitão determinou que navegássemos para Cochim, onde carregaríamos as naus.

 

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FUGA E NAUFRÁGIO
"Por volta da meia-noite, sua embarcação deu em seco e começou a pegar fogo"


De como as naus foram carregadas em Cochim
Partimos, então, para Cochim, reino independente, distante 30 léguas de Calicute. O povo é idólatra e fala a mesma língua dessa cidade. Pelo caminho, encontramos duas naus de Calicute carregadas de arroz. Fomos diretamente a elas. Os que estavam dentro fugiram em uns batéis para a praia. O capitão, depois de verificar que as naus não traziam mercadorias, mandou afundá-las. Alcançamos Cochim a 24 de dezembro e lançamos âncora na boca de um rio. O capitão mandou à terra um pobre homem da nação guzerate -que espontaneamente resolvera deixar Calicute e acompanhar-nos até Portugal- com a incumbência de contar ao rei o que se passara em Calicute e informá-lo de que o capitão tinha a intenção de carregar as naus na cidade, trazendo como pagamento dinheiro e mercadorias.

O rei respondeu que lhe doía saber que tínhamos sofrido tamanha injúria e que éramos muito bem-vindos ao seu país, pois estava ciente de que se tratava de boa gente. Afirmou, ainda, que faria tudo o que desejássemos. O guzerate disse-lhe, então, que precisávamos de alguma garantia para desembarcar e que essa só seria obtida se trocassem homem por homem. Sua alteza deveria, assim, enviar às naus alguns de seus homens como reféns e os nossos imediatamente viriam à terra.

O rei rapidamente despachou para as naus dois dos seus principais e alguns mercadores com amostras de mercadorias.

Despachou também alguns reféns, com a incumbência de dizer ao capitão que agisse como melhor lhe conviesse. O capitão, por sua vez, enviou com presteza para a terra o feitor e quatro ou cinco homens, com ordens para comprarem mercadorias. Os reféns foram mantidos a bordo e tratados muito honradamente.

Todos os dias, porém, eles tinham de ser trocados, pois os gentis-homens dessa terra não podem comer no mar e, se o fazem, ficam proibidos de ver o rei. Estivemos 12 ou 15 dias carregando as naus num lugar distante de Cochim, de nome Cranganor, onde há cristãos, judeus, mouros e infiéis (cafres). Aí encontramos uma judia de Sevilha, que viera através do Cairo e de Meca, e dois cristãos, os quais diziam querer ir a Roma e a Jerusalém. O capitão teve grande prazer na companhia desses dois homens.

Quando as naus estavam quase carregadas, soubemos que vinha de Calicute uma armada de 80 ou 85 velas, entre as quais 25 de grande porte. O rei teve notícia da vinda dessa armada e mandou dizer ao capitão que, caso desejasse combater, lhe enviaria naus e gente. O capitão respondeu-lhe que não era necessário. Por ser quase noite, a dita armada deteve-se a uma légua e meia de nós. Ao anoitecer, o capitão mandou dar às velas, levando consigo os homens que tinha como reféns e deixando em terra sete dos nossos. Pareceu-lhe que seria possível derrotar a armada de Calicute sem outra ajuda. Durante a noite, contudo, o vento não soprou, e não pudemos atacá-la.

No dia seguinte, 10 de janeiro de 1501, aproximamo-nos deles e eles de nós, de modo que nos pusemos muito perto uns dos outros. O capitão determinou que abríssemos fogo contra eles, pois estávamos a uma distância de cerca de um tiro de bombarda. A nau comandada por Sancho de Tovar e uma outra pequena embarcação ficaram, porém, para trás, e o capitão, percebendo que não havia ordem entre seus homens, determinou que aproveitássemos o vento de popa e tomássemos o nosso caminho para Portugal.

A armada de Calicute seguiu-nos durante todo aquele dia até cerca de uma hora da madrugada. Na mesma noite, nós a perdemos de vista. O capitão determinou que rumássemos para Portugal, deixando em Cochim o feitor, juntamente com seus homens, e levando conosco os dois homens que estavam nas naus como reféns. No referente a esses homens, o capitão tratou de persuadi-los a comer, coisa que não faziam havia três dias.

Eles concordaram, não sem grande tristeza e arrependimento.
Assim, nós pudemos prosseguir viagem.

Do reino de Cananor, amigo de nossas naus
No dia 15 de janeiro, alcançamos um reino aquém de Calicute, de nome Cananor. Esse reino pertence aos cafres, povo que fala a mesma língua de Calicute. Ao passarmos por essa terra, o rei do lugar mandou um mensageiro dizer ao capitão que muito lamentaria se não visitássemos o seu reino. Pedia-lhe que lançasse âncora e adiantava que, caso as naus não estivessem carregadas, providenciaria carga. Quando o capitão ouviu a mensagem, mandou baixar âncoras e enviou um guzerate à terra com a incumbência de dizer ao rei que os navios estavam quase lotados e que necessitava somente de 100 bacar de canela -o que corresponde a 400 quintais. Imediatamente, o rei enviou a canela aos navios, demonstrando que confiava em nós, e o capitão mandou pagar-lhe em cruzados.

Depois de realizado esse negócio, chegou mais uma grande quantidade de canela às naus, mas não tínhamos onde pô-la. O rei mandou dizer ao capitão que, se fosse por falta de dinheiro, não deveria deixar de carregar as naus, pois poderíamos pagar-lhe na volta da viagem. Mandou dizer também que sabia perfeitamente que o rei de Calicute nos havia roubado e que éramos gente boa e honesta. O capitão agradeceu muito e mostrou ao mensageiro, que fazia as vezes de embaixador, os 2.000 ou 3.000 cruzados que restavam. O rei mandou perguntar ainda se o capitão precisava de mais alguma coisa, e o capitão respondeu que não, salvo que sua alteza mandasse um homem para visitar Portugal. O rei rapidamente mandou um gentil-homem para acompanhar-nos. Os homens de Cochim aproveitaram para escrever ao seu rei dizendo que iam conosco para Portugal. Do mesmo modo, o capitão escreveu ao feitor que havia ficado em Cochim.

Não estivemos mais do que um dia em Cananor, de onde partimos para atravessar o golfo de Melinde. No último dia de janeiro, alcançamos o meio do golfo e encontramos uma nau que ia de Cambaia para Melinde. Sem perguntarmos se era ou não uma nau vinda de Meca, aprisionamo-la. A embarcação vinha carregada de riquezas e trazia a bordo mais de 200 homens e mulheres.

Quando o capitão soube que se tratava de uma nau proveniente de Cambaia, deixou que todos prosseguissem viagem, exceto um piloto, que decidimos levar conosco. E assim eles partiram e nós seguimos nosso caminho.

Naufrágio no golfo de Melinde
No dia 12 de fevereiro, ao anoitecer, todos os pilotos, assim como todos os que tinham cartas, acreditavam que estávamos próximos de terra. Sancho de Tovar, dizendo que era capitão de uma nau de porte e que queria seguir adiante, mandou içar todas as velas e se pôs à frente das outras naus. Por volta da meia-noite, sua embarcação deu em seco e começou a pegar fogo.

Logo que percebeu o ocorrido, o capitão tentou mandar ajuda, mas o vento noturno soprava muito forte e era impossível escapar. Tudo corria contra eles. Imediatamente, o capitão mandou uns batéis ao navio para verificar se havia condições de resgatar a tripulação. A nau estava rachada e encalhada num local de onde era impossível removê-la. O vento soprava com tal intensidade que as outras naus se viram igualmente em grande perigo, sendo necessário controlá-las à mão. Nada pôde ser salvo do acidente, a não ser os homens em camisas. A nau era de 200 toneladas e estava carregada de especiarias.

Partimos rumo a Melinde, mas não pudemos aí entrar. Fomos, então, para Moçambique, onde fizemos a aguada, recolhemos lenha e pusemos as naus a seco. Enquanto consertávamos as naus, o capitão mandou à ilha de Sofala, numa pequena caravela, Sancho de Tovar e os dois pilotos que capturáramos para obter mais informações sobre o lugar. Quatro homens da armada caminharam até uma angra e ali fizeram uma grande pescaria de parni. Logo que levantamos âncora, demos com uma tempestade que não somente nos obrigou a voltar para trás, mas também fez com que uma nau se desgarrasse da armada, de modo que restaram somente três embarcações.

 

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A VOLTA
"No final do mês de julho, chegamos a Lisboa"


Das naus que voltaram a Lisboa
Atingimos o cabo da Boa Esperança na Páscoa florida (14) e, com bom tempo, atravessamos o dito cabo e viemos dar na primeira terra próxima a Cabo Verde, Beseguiche (15). Aí encontramos três pequenos navios enviados pelo rei de Portugal para descobrir a nova terra (16) e uma nau da nossa armada, que desaparecera quando rumávamos para Calicute. Ficamos a saber que essa nau navegou até a boca do estreito de Meca, detendo-se numa cidade, onde perdeu um batel com quase toda a sua tripulação. Restaram a bordo somente seis homens que, doentes e sem nada para beber, senão a água recolhida da chuva, trouxeram a embarcação até aqui.

No final do mês de julho, chegamos a Lisboa. Um dia depois, entraram no porto a nau que perdêramos quando voltávamos e a caravela capitaneada por Sancho de Tovar, que havia estado em Sofala. Tovar informou que Sofala é uma pequena ilha, situada na embocadura de um rio e habitada por mouros. Há ouro no lugar, ouro que um povo que não é mouro traz das montanhas e troca por mercadorias. Sancho de Tovar encontrou, ao chegar a esse lugar, muitas naus mouras e tomou um mouro como refém, pois enviara à terra um cristão árabe. Tovar esperou por dois ou três dias, mas, como o cristão não voltava, resolveu partir, deixando em terra o cristão e levando consigo o mouro. Desse modo, da armada que partiu para Calicute, seis naus retornaram e as outras todas se perderam.


Dos pesos e das moedas que usam (17)
Este é o preço das especiarias e drogas em Calicute, bem como o sistema de pesos e moedas do lugar.

Um bacar de noz-moscada, que pesa quatro quintais (18), vale 450 favos; 20 favos correspondem a 1 ducado.
Um bacar de canela vale 390 favos.
Uma faracola de gengibre seco vale seis favos; 20 faracolas fazem 1 bacar.
Uma faracola de gengibre em conserva de açúcar vale 28 favos.
Um bacar de tamarindo vale 30 favos.
Um bacar de zerumbete (19) vale 40 favos.
Um bacar de zedoária (20) vale 30 favos.
Um bacar de laca vale 260 favos.
Um bacar de maças (21) vale 430 favos.
Um bacar de pimenta vale 360 favos.
Um bacar de pimenta comprida vale 400 favos.
Um bacar de mirabólano "dal sebuli" em conserva vale 560 favos.
Um bacar de sândalo vermelho vale 80 favos.
Um bacar de pau-brasil vale 160 favos.
Uma faracola de cânfora vale 160 favos.
Uma faracola de incenso vale cinco favos.
Uma faracola de benjoim vale seis favos.
Uma faracola de cássia fístula vale dois favos.
Um bacar de cravo vale 600 favos.
Um bacar de sândalo branco vale 700 favos.
Uma faracola de madeira de aloés (22) vale 400 favos.
Uma faracola de ruibarbo (23) vale 400 favos.
Uma faracola de ópio vale 400 favos
Uma faracola de espicanardo vale 800 favos.
Um peso de almíscar vale 400 favos.
Um mitricale de âmbar (uma onça corresponde a seis mitricales e um quarto) vale 2 favos. Um bacar pesa 20 faracolas, e uma faracola, 24 e três quartos do arrátel (24) de Portugal, sendo que 24 arráteis correspondem, em Veneza, a 32 ou 33 libras, conforme o costume. O ducado vale 20 favos.

Esses são, normalmente, os preços das mercadorias que se levam daqui para Calicute.

Uma faracola de cobre vale 45 favos.
Uma faracola de chumbo vale 18 favos.
Uma faracola de prata vale 54 favos.
Uma faracola de pedra-ume vale 20 favos.
Uma faracola de coral branco vale mil favos.
Uma faracola de coral ramado vale 700 favos.
Uma faracola de coral bastardo vale 300 favos.
Um ameno, outra medida de peso de Calicute, corresponde a 2,5 arráteis portugueses e a cerca de 3 libras e um oitavo de Veneza. Com essa medida pesam o açafrão, que vale 80 favos.

Dos lugares de onde vêm as especiarias

Faz-se abaixo menção aos lugares de onde vêm as especiarias encontradas em Calicute.

A pimenta vem de uma terra chamada Cranganor, situada na costa, a 50 léguas além de Calicute.
A canela vem do Ceilão, a 260 léguas além de Calicute. Não se encontra essa especiaria em outro lugar.
O cravo vem das ilhas Molucas, a 740 léguas além de Calicute.
O gengibre cresce em Calicute, mas um pouco vem de Cananor, 12 léguas distante daquela cidade.
A noz-moscada e a maça vêm das ilhas Molucas, a 740 léguas além de Calicute.
O almíscar vem de uma terra de nome Pegu, a 500 léguas além de Calicute.
As pérolas grandes vêm de Ormuz, cerca de 700 léguas aquém de Calicute.
O espicanardo e o mirabólano vêm de Cambaia, aquém de Calicute 600 léguas.
A cássia fístula nasce em Calicute.
O incenso é encontrado a 800 léguas aquém de Calicute.
A mirra nasce em Fartak, aquém de Calicute 700 léguas.
A madeira de aloés, o ruibarbo, a cânfora e a galanga (25) vêm da China, 2.000 léguas além de Calicute.
O zerumbete nasce em Calicute.
A canela maior vem de Cananor, 12 léguas aquém de Calicute.
A pimenta comprida nasce na Sumatra.
O benjoim vem do Sião, 700 léguas além de Calicute.
O tamarindo nasce em Calicute.
A zedoária nasce em Calicute.
A laca vem de uma terra chamada Samatore, 400 léguas além de Calicute
O pau-brasil vem de Tanasserim, 500 léguas além de Calicute.
O ópio vem de Aden, 700 léguas aquém de Calicute.
Os pesos e o dinheiro utilizados em Calicute o são também nos locais de onde vêm as especiarias.

 

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