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Metafísica contra-reformada do teólogo subordina
a história ao tempo
O
profeta da luz
JOÃO ADOLFO HANSEN
especial para a Folha
Em Antônio Vieira, o tempo subordina a natureza e a história
a si como figuras ou alegorias do divino porque é tempo teologicamente
qualificado. É estranha à obra do Padre a idéia
iluminista, produzida na segunda metade do século 18, de
que a história é o processo apenas humano que subordina
o tempo, quantitativamente, como o contínuo de superações
progressistas rumo à realização final da razão
num futuro utópico.
Não se trata, porém, de temporalidade mítica
ou cíclica, nem de panteísmo, nem muito menos de postulação
do mundo histórico como ilusão ou aparência.
Vieira é ortodoxo e pensa que a eternidade está em
todos os tempos, como participação deles no conceito
absolutamente idêntico a si de Deus. Por isso, devem ser lembradas
duas coisas: a primeira, que sua interpretação propõe
que todos os tempos são diferentes entre si, justamente porque
são espécies semelhantes, mas não espécies
idênticas do Tempo; a segunda, que os tempos não se
repetem, pois é só a Identidade do conceito divino
que se repete neles.
Todos os tempos prefiguram o eterno, como tipo ou sombra, e em todos
o eterno é atual, como Luz e protótipo; mas, na semelhança
que há entre eles -ou seja, na diferença deles-, os
tempos ainda não realizaram o Reino de Cristo. Sendo atual
em Deus, ou na identidade do conceito de Deus, o futuro do eterno
é desde sempre real, mas permanece virtual para a humanidade,
que até agora apenas o repartiu de modo incompleto.
No entanto, Cristo veio uma vez, com certeza, e é a vontade,
como desejo do Bem, e a liberdade, como escolha do Bem confirmado
por Cristo, que fazem a passagem do virtual para o atual, pois podem
contar sempre com a Graça ou o conselho de Deus, cuja atualidade
de luz natural é, aqui-agora. Como o passado prefigura a
realização do sentido providencial da história,
é retomado por Vieira no ato da pregação como
exemplo a ser imitado pela audiência para aperfeiçoamento
do "corpo místico" do Estado.
O pressuposto teológico permitiu-lhe escrever uma "História
do Futuro", título que desde o século 18 é
paradoxal ou fantástico. É preciso lembrar, no entanto,
que hoje lemos os sermões autonomizando-os da sua prática.
Em seu tempo, eram ouvidos. Na relação estabelecida
entre voz e audição, propunham que a Luz divina acesa
na consciência do Padre e exteriorizada em seu corpo na ação
retórica era a mesma que legitimava as instituições
políticas como naturalidade da hierarquia.
Pronunciados por uma voz autorizada, os sermões funcionavam
como dispositivos de subordinação hierárquica.
Eram, então, ortodoxamente polêmicos, porque papistas,
monarquistas e anti-heréticos. Aliás, o decreto de
7 de abril de 1546, do Concílio de Trento, tinha definido
a voz do Padre como mediação das verdades da fé.
A pregação de Vieira combatia a prática da
leitura individual da Bíblia proposta pelos protestantes;
também atacava a hipótese maquiavélica sobre
o poder político como artifício que dispensa a moral
cristã; e era voz sempre empenhada nos negócios temporais
do Império, pois Vieira é um jesuíta.
Por exemplo, era estrategicamente contrário à Inquisição,
porque pretendia fixar em Portugal os capitais dos judeus, que fugiam
com eles para a Holanda, para fazer frente à competição
mercantil com os países reformados da Europa, principalmente
a Inglaterra e a Holanda, fundando companhias de comércio.
Acima de tudo, a voz profetizava, com o mais absoluto equívoco,
que seria brilhante o futuro de Portugal como nação
universalizadora do catolicismo. Chegava a prever exércitos
de índios brasileiros combatendo os turcos na Europa.
Para afirmar tal destinação universal de sua terra,
Vieira qualifica o meio material da linguagem como algo a ser também
percebido na experiência da forma. É o mesmo conceito
teológico da Identidade divina que fundamenta sua técnica
como pensamento da similitude ou racionalidade figural. Aqui, é
básica a questão da forma. Luhman lembra que não
vemos a causa da luz, o Sol, mas coisas na luz. Da mesma maneira,
não lemos letras, mas, com o auxílio do alfabeto,
palavras; e, se quisermos ler o próprio alfabeto, teremos
de ordená-lo alfabeticamente. A coordenação
de elementos produz a forma, mas o próprio meio da forma
geralmente não chama a atenção.
Na arte de Vieira, vemos coisas na luz e também a Luz; lemos
palavras, mas também as letras e a substância dos sons.
Sua arte é um dispositivo teológico-político
de produção da Presença e é outra sua
doutrina do signo, pois também seu pensamento é uma
metáfora qualificada do divino. Para ele, a linguagem não
se autonomiza instrumentalmente da forma, mas é ela mesma,
enquanto natureza criada de sons em que se recorta a convenção
humana, presença do divino na mente e na sociabilidade.
Assim, as substâncias da expressão e do conteúdo,
que hoje são desdenhadas pela teoria linguística,
participam também do absoluto poder de coesão do seu
princípio metafísico. Logo, o artifício de
evidenciar o meio da linguagem, substancializando-a, torna visível
o próprio meio. Sua arte multiplica o Um, espelhando-o por
atribuição e proporção nas semelhanças
de sons, letras, palavras, conceitos, imagens e argumentos, de modo
a fazer também do discurso uma figura eficaz do acontecimento
da Presença que faz o mundo ser e desejar o Ser.
Um folheto de 1733, da biblioteca da Universidade de Coimbra, dá
notícia de um "Acto Especulativo e Prático"
realizado pela Academia das Quatro Ciências Físico-Anatômico-Médico-Cirúrgicas,
em que se anunciam Anatomias, ou seja, análises do Sol, da
Lua, do Ar, da Luz e dos Olhos.
Bem ao gosto do tempo, a análise e a demonstração
são feitas na forma de paradoxos, e o quarto deles, que trata
da Luz, tem a seguinte formulação: "Aclara-se
que a Luz é cousa obscuríssima". O folheto previa,
depois de várias atividades em que dois acadêmicos
discutiriam os temas usando paradoxos, um último item prático,
em que as teorias debatidas teriam aplicação, lendo-se,
no sexto item, "por último se porá em prática
a Obra Manual de bater a catarata dos olhos, e a Cura da Ferida,
que ali se faz".
Estranha medicina, talvez, mas o pressuposto é o mesmo que
se encontra na representação plástica, na poesia,
na oratória e na prosa de então, desde o século
16. Dado na forma de um conceito agudo a ser demonstrado -"Prova-se
que a luz é cousa obscuríssima"-, o pressuposto
implica a definição da matéria "luz"
, sensível e visível, como "sombra", porque
emanação participada na substância metafísica
de Deus, afinal a única Luz autêntica, mas obscuríssima
porque absolutamente perfeita para a intuição platonizante.
Aparece na formulação, de novo, a articulação
do quiasma, típica da arte de Vieira: a luz sensível,
visível, é totalmente obscura, porque a luz inteligível,
invisível, é totalmente clara.
No século 17, no curso de direito canônico da Universidade
de Coimbra e nas aulas dos colégios jesuíticos do
Brasil, afirmava-se que os homens veriam diretamente a Deus e não
teriam necessidade do conceito e da representação
se o conhecimento humano fosse angélico. Essa mesma metafísica
fundamenta o pensamento da técnica oratória de Vieira.
Na sua obra, os meios de figuração da claridade obscuríssima
que é Deus são semelhanças ou metáforas
operadas como meios agudamente indiretos, na medida em que o conhecimento
humano é só teórico ou análogo.
O jesuíta reatualiza a assimilação -feita no
século 16, na doutrina das artes na Itália- de lógica
(como dialética) e arte (como retórica). Pela assimilação,
o conceito figurado nas obras passou a ser classificado como "ornato
dialético" ou técnica de divisão dos assuntos
da história, redefinida como "história sacra",
por meio das dez categorias aristotélicas e da ornamentação
dos conceitos obtidos. Ou seja: a partir dos séculos 16 e
17, que não eram "barrocos", a atividade artística
contra-reformada passou a ser entendida como técnica de realizar
em signos exteriores um modelo interior ou um "desenho interno"
achado ou emulado pelo engenho.
Então, o artifício da figuração do "desenho
interno" da luz natural da Graça inata passou a ter
sua contrapartida na mais absoluta evidenciação da
materialidade dos meios, como é o caso da obscuridade da
poesia de Góngora ou do "Primero Sueño",
de Sór Juana, que corresponde às deformações
ou anamorfoses da pintura. Como alegoria fechada, a maciça
noite hermética dos conceitos faz com que a agudeza do juízo
dos autores brilhe peregrinamente e passe, admirável, pelo
arco do triunfo do olho admirador.
Da mesma maneira, os estilos de Vieira são agudos, acumulados
e confusos porque fazem ver, na obscuridade relativa oferecida à
percepção como um intrincamento da forma no meio material,
justamente a figura -ou as alegorias- de uma Luz superior tão
radicalmente clara que só a obscuridade pode sugeri-la. Como
as estrelas que, sendo muito altas e distintas, necessitam da treva
para serem vistas.
A representação é, no caso, o regrado "theatrum
sacrum" doutrinado pelos jesuítas desde o século
16. Mesmo quando é mundana ou cortesã, figura o plano
inclinado por onde os fantasmas sensíveis da matéria
sobem, atraídos pela secreta simpatia da sua Causa Final,
e por onde os conceitos inteligíveis da Causa Primeira descem,
encarnando-se amorosamente nos gêneros, espécies, indivíduos
e acidentes de seus efeitos e signos temporais.
A substancialização da linguagem é tanto um
processo poético datado quanto uma visão datada da
história: não é uma estrutura "(neo)barroca"
trans-histórica; não é uma "ruptura estética"
que se possa autonomizar da sua função contemporânea
de propaganda católica do Estado absolutista; também
não é aplicação beletrista ou original
de "bom" ou "mau gosto"; nem um irracionalismo
pré-iluminista acusado em retrospecções unilaterais
que concebem o passado como etapa para as glórias do presente.
A agudeza é uma das principais figuras da analogia metafísica
e lógica que articula a oposição complementar
de finito/infinito das práticas luso-brasileiras do século
17. Específica da forma histórica da racionalidade
de Corte absolutista, a agudeza ensina que a representação
é infinita. Nas suas dobras não-deleuzianas, alude
ao inexpresso inefável da Causa, que aparece difusa no meio
material da linguagem como um vazio tendencialmente sublime.
É esse sublime da presença de Deus na história
que hoje, pela semelhança que seu efeito talvez possa ter
com a realidade telemática irrepresentável, quem sabe
torna palatável a metafísica contra-reformada de Vieira.
A subordinação da história ao tempo e o decorrente
sublime são ruínas, no entanto, desde a Revolução
Francesa. Um dia, o presente agora proclamado como eternidade da
"pós-utopia" também o será.
João
Adolfo Hansen é professor do departamento de literatura brasileira
da USP e autor, entre outros, de "A Sátira e o Engenho".
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