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Guerra
superou a Independência e a República como fator de
construção da identidade nacional
Brasileiros,
uni-vos!
JOSÉ
MURILO DE CARVALHO
PEDRO PAULO SOARES
especial para a Folha
A Guerra do Paraguai foi o fator mais importante na construção
da identidade brasileira no século passado. Superou até
mesmo as proclamações da Independência e da
República.
A Independência provocou forte mobilização em
apenas alguns pontos do país, Rio de Janeiro, Bahia, Pará.
As grandes lutas internas, desde a Confederação do
Equador até as da Regência, foram localizadas e muitas
vezes separatistas. A idéia e o sentimento de Brasil, até
a metade do século, eram limitados a pequena parcela da população.
A proclamação da República, por sua vez, foi
o que se sabe. Em contraste, a guerra pôs em risco a vida
de milhares de combatentes, produziu um inimigo concreto e mobilizou
sentimentos poderosos. Indiretamente, afetou a vida de boa parte
dos brasileiros, homens e mulheres, e todas as classes, e em todas
as partes do país.
A força de terra que lutou no Paraguai compunha-se de 135
mil soldados, dos quais 59 mil pertenciam à Guarda Nacional
e 55 mil aos corpos de voluntários. Pela primeira vez, brasileiros
de todos os quadrantes do país se encontravam, se conheciam,
lutavam juntos pela mesma causa. E muitos não o faziam por
coerção. A preocupação em denunciar
a coerção tem predominado nos estudos sobre os voluntários.
Mas é preciso distinguir os vários momentos da guerra.
Sem dúvida, à medida que o conflito se prolongava,
reduzia-se o entusiasmo e surgiam resistências, aumentando,
em consequência, o recrutamento forçado. Mas, no momento
inicial, houve entusiástica e surpreendente resposta ao apelo
do governo. Corpos de voluntários formaram-se em todo o país.
Descrições da partida desses voluntários indicam
tudo menos coerção. Em Pitangui, interior de Minas,
52 voluntários despediram-se em meio a celebrações
religiosas e cívicas a que não faltaram os discursos
patrióticos, a execução do Hino Nacional e
a entrega solene da bandeira ao primeiro voluntário, feita
por uma jovem vestida de índia. Na corte, que forneceu quatro
corpos de voluntários, as despedidas, sempre acompanhadas
do toque do hino e a exibição da bandeira, contavam
ainda com a presença do imperador.
Alguns exemplos de voluntários são paradigmáticos.
No interior da Bahia, um negro livre, Cândido da Fonseca Galvão,
dizendo-se inspirado "pelo sacrossanto amor do patriotismo",
reuniu 30 voluntários e se apresentou para "defender
a honra da pátria tão vilmente difamada". Feito
alferes honorário do exército, cuja farda usava com
orgulho, Galvão viveu o pós-guerra no Rio de Janeiro,
dizendo-se Príncipe Obá 2º d'África, segundo
nos conta Eduardo Silva.
Em Teresina, a cearense Jovita Alves Feitosa, de 18 anos, cortou
o cabelo, vestiu roupa de homem e se apresentou como voluntário
da pátria para bater-se contra os monstros paraguaios que
tantas ofensas tinham feito a suas irmãs do Mato Grosso.
Descoberta sua identidade, foi mesmo assim aceita como voluntária
no posto de sargento. Nas capitais provinciais em que aportou o
navio que a trouxe ao Rio de Janeiro, foi cercada de homenagens
oficiais e populares. A retórica patriótica a transformou
em heroína, Joana d'Arc nacional. Um negro pobre e uma mulher
pobre, de descendência indígena, representantes dos
mais baixos escalões da sociedade, queriam lutar por uma
abstração que era a pátria. Algo de novo nascia
no mundo dos valores cívicos.
A poesia popular e erudita, a música, popular e erudita,
e os cartuns, atestam o esforço de mobilização
e o êxito alcançado. As revistas ilustradas da corte,
embora frequentemente críticas do governo, dos partidos e
dos políticos, contêm farta produção
de símbolos destinados a construir o sentimento de identidade.
O Brasil aparece com frequência representado por um índio,
unindo as províncias acima dos partidos e do governo. Alguns
episódios são dramatizados, como o de dona Bárbara,
a mãe espartana de Minas Gerais. Um cartum de H. Fleiuss,
da "Semana Ilustrada", a representou entregando ao filho
um escudo gravado com as armas nacionais. A exemplo das mães
espartanas, dona Bárbara adverte o filho de que deve voltar
da guerra com o escudo ou sobre ele. O texto que encima o quadro
é o verso do Hino da Independência: "Ou ficar
a pátria livre ou morrer pelo Brasil". Pela primeira
vez, o verso de 1822 deixava de ser retórica e se tornava
potencialmente trágico.
O tema do vocabulário despedindo-se da mãe é
poderoso e recorrente em várias poesias populares recolhidas
por Pedro Calmon. Em uma delas, vinda de Santos, o filho diz: "Mamãe,
eu sou brasileiro/ E a pátria me chama/ Para ser guerreiro".
A lealdade à pátria aparece aí como superior
à lealdade familiar. A mãe reconhece a precedência
de outra mãe, que os positivistas mais tarde chamariam de
mátria. O chamado da pátria também se sobrepõe
ao da amada, inclusive na poesia erudita. Bernardo Guimarães,
em "O Adeus do Voluntário", canta: "Dever
de leal soldado/ Me arranca dos braços teus,/ Hoje a pátria
que padece/ Me manda dizer-te adeus". O consolo do voluntário
é poder um dia, após a guerra, "às grinaldas
dos amores, unir os lauréis da glória".
Episódio que ilustra bem a exaltação patriótica
na corte é o da presença no Rio, em 1869, em plena
guerra, do compositor Louis Moreau Gottschalk. Dotado de grande
talento musical e publicitário, Gottschalk compôs a
"Marcha Solene Brasileira", que incluía o Hino
Nacional. Para sua execução, organizou um concerto
monstro, em que reuniu 650 músicos, quase todas as bandas
da cidade, 44 rabecas, 65 clarinetas, 55 saxhorns, 60 trombones,
62 tambores, entre outros instrumentos, tendo como pano de fundo
as bandeiras do Brasil e dos Estados Unidos.
O Teatro Lírico estava lotado, assim como as ruas adjacentes.
Na apoteose final, foi executada a "Marcha Solene" acompanhada
do troar de canhões nos bastidores. A platéia, que
incluía o imperador, entrou em êxtase cívico-estético.
Era a consagração do hino, já ouvido por milhares
no campo de batalha e nas despedidas de voluntários. Entende-se
por que, mais tarde, a população do Rio exigiu a manutenção
do velho hino contra a tentativa republicana de o substituir.
A imprensa contribuiu também para construir a imagem do inimigo,
fator crucial para a construção da própria
identidade. A tarefa era fácil porque a presença do
inimigo era convincente. Outros inimigos, como o português
e o inglês, prestavam-se menos à tarefa. O primeiro
era parte de nós mesmos, o segundo aparecia esporadicamente,
como na Questão Christie. López, ao contrário,
invadira o país, matara centenas de brasileiros e comandava
milhares de soldados leais até o fanatismo. Foi apresentado
pelo governo, imprensa e intelectuais como ditador, cruel opressor
de seu povo, símbolo da barbárie e da selvageria.
Angelo Agostini o representou em 1869, na "Vida Fluminense",
como o Nero do século 19, de pé sobre uma montanha
de ossos de paraguaios. A ele se opunha a civilização
brasileira, marcada pela liberdade política e pelo sistema
constitucional e representativo de governo. Até o discreto
Machado de Assis mostrou-se escancaradamente patriótico:
a guerra era pela pátria, pela justiça, pela civilização.
Do lado paraguaio, naturalmente, houve esforço idêntico
de despertar o sentimento patriótico. Também lá
se tentou criar imagem negativa do inimigo. O jornal de campanha,
o "Cabichuí", representava os brasileiros como
macacos, referência racista à grande presença
de negros entre as tropas imperiais. Caxias era "El Macaco-Jefe",
o imperador, "El Macacón". Até hoje perdura,
mesmo entre nossos antigos aliados argentinos, o estereótipo
do brasileiro como macaco.
É inegável a força da guerra como elemento
de formação da identidade brasileira (e paraguaia).
Mas é de lamentar que, além dos milhares de mortos,
o processo tenha custado ainda o preço da desumanização
do outro. O inimigo, dos dois lados, deixou de ser gente: era monstro
ou animal.
José
Murilo de Carvalho é historiador, professor titular de história
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autor de "Construção
da Ordem" e "Teatro das Sombras".
Pedro Paulo Soares é historiador e trabalha na Casa de Osvaldo
Cruz.
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