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O
nascimento do culto a Solano López atendeu a um vazio ideológico
no Paraguai, mas intenções bem menos nobres motivaram
sua escolha como herói
A
construção de um mito
FRANCISCO
FERNANDO
MONTEOLIVA DORATIOTO
especial para a Folha
O juiz Bernardo Jovellanos morreu na prisão, para onde fora
enviado por ter emitido uma sentença judicial que desagradou
o chefe de Estado paraguaio Francisco Solano López. As agruras
de sua viúva, Dolores Urdapilleta Caríssimo, continuaram
durante a guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança,
quando foi acusada de traição e condenada ao desterro
interno. Ela e outras mulheres na mesma situação foram
obrigadas a fazer longas marchas forçadas, quase sem comida,
acompanhando os soldados paraguaios que recuavam para o interior
do país frente ao avanço das tropas aliadas. Os filhos
pequenos de Dolores morreram de fome nessa marcha.
Dolores Urdapilleta Caríssimo teve a sorte de sobreviver
à guerra, casou-se novamente e em 1879 nasceu seu filho Juan
Emiliano O'Leary. Após terminar os estudos secundários
em 1898, O'Leary exercitou seus talentos de escritor denunciando
atos de crueldade praticados no governo de Solano López.
O'Leary logo tornou-se, porém, o mentor do revisionismo histórico
conhecido como lopismo ou movimento nacionalista. Esse revisionismo
transformou a imagem de Solano López de ditador, responsável
pelo desencadear de uma guerra desastrosa para seu país,
em herói, vítima da Tríplice Aliança
e sinônimo da nacionalidade paraguaia. Nas décadas
seguintes O'Leary persistiu em sua militância lopista, o que
lhe proporcionou, até sua morte em 1969, as benesses dos
governos paraguaios ditatoriais, para os quais o culto à
tirania em que se transformou o nacionalismo lopista, constituía
fator de legitimação histórica.
O nascimento do lopismo atendeu a um vazio ideológico no
Paraguai, carente de um herói paradigmático que encarnasse
os valores, supostos ou verdadeiros, da nacionalidade paraguaia.
É "menos nobre", porém, o motivo da escolha
da figura de Solano López para cumprir esse papel. Finda
a guerra, a irlandesa Elisa Lynch, companheira de López e
sua herdeira, que durante o conflito tivera transferida para si
cerca de 10 milhões de hectares de terras públicas,
instalou-se em Paris. Ignorado pelos livros que fazem a apologia
de Solano López no Brasil, o fato de o Estado paraguaio ter
sido um feudo da família López é reconhecido
por diferentes autores.
Compreende-se, assim, como Elisa Lynch acumulou bens no Paraguai,
dissipados no pós-guerra. Empobrecida, ela chegou a Buenos
Aires em 1885 com o objetivo de obter a posse das terras públicas
paraguaias transferidas para seu nome, as quais, terminada a guerra,
passaram em grande parte a pertencer à Argentina e ao Brasil.
Dando-se conta da dificuldade em conseguir seu objetivo, Elisa Lynch
transferiu seus supostos direitos de posse para o filho Enrique
Solano López, que iniciou, por meio de Rui Barbosa, uma ação
judicial no Brasil para ter reconhecida como de sua propriedade
a área de 33.175 km 2 no Mato Grosso. A justiça brasileira,
assim como a da Argentina, onde as terras foram transferidas para
um testa-de-ferro, julgaram improcedentes tais reclamações.
No Paraguai também houve decisão judiciária
contrária aos reclamos de Enrique Solano López. A
decisão baseava-se em lei de 1871 e, ainda, no decreto de
agosto de 1869 do Governo Provisório paraguaio, que declarou
Francisco Solano López traidor da pátria e que ocasionou
a perda de seus direitos civis e bloqueou qualquer estratagema jurídico
que seus herdeiros pudessem utilizar para reclamar seus bens.
O "Relatório Político sobre o Paraguay",
elaborado em 1931 pelo Encarregado de Negócios brasileiro
em Assunção, Arthur dos Guimarães Bastos, permite
melhor entender o nascimento do lopismo e a surpreendente transformação
de Juan Emiliano O'Leary de crítico a panegirista de Solano
López. Afirma esse documento que os herdeiros de Solano López,
interessados em recuperar seus bens, compuseram-se com paraguaios
influentes com vistas a iniciar uma campanha para conseguir a revogação
do decreto de 1869 e, assim, resgatar os direitos civis desse falecido
governante. Alcançado tal objetivo, criar-se-iam as condições
jurídicas para os descendentes de Solano López e Elisa
Lynch obterem a devolução das propriedades e dos bens
que seus pais possuíram. "O Senhor O'Leary lançou-se
na campanha lopista por interesses inconfessáveis de dinheiro"
e nela permaneceu ao dar-se conta de que era fonte de prestígio
e vantagens materiais (1).
O revisionismo lopista adquiriu força nas décadas
seguintes. Foi, porém, nas décadas de 1960 e 1970
que intelectuais nacionalistas e de esquerda de países do
Rio da Prata promoveram Solano López de tirano a líder
antiimperialista e de agressor a vítima.
A fantasia revisionista apresenta o Paraguai do pré-guerra
como um país progressista, quase um protocomunismo de Estado
que teria proporcionado a modernização do país
e o bem-estar de sua população. A Guerra do Paraguai,
para esse revisionismo, resultou do confronto entre duas estratégias
premeditadas de crescimento econômico: a paraguaia, sem dependência
dos centros capitalistas, e a estratégia da Argentina e do
Brasil, dependente do ingresso de recursos financeiros e tecnológicos
estrangeiros. Para o revisionismo esses dois países teriam
sido manipulados por interesses da Grã-Bretanha para aniquilar
o desenvolvimento autônomo paraguaio, abrindo um novo mercado
consumidor para os produtos britânicos e fornecedor de algodão
para as indústrias inglesas.
O livro mais marcante desse revisionismo talvez seja "La Guerra
del Paraguay - Gran Negócio!", publicado em 1968 pelo
respeitável historiador argentino Leon Pomer. No Brasil,
o jornalista Julio José Chiavenatto publicou, em 1979, "Genocídio
Americano - A Guerra do Paraguai", livro pelo qual gerações
de estudantes brasileiros aprenderam que o Paraguai pré-guerra
foi "o mais progressista país da América do Sul",
que "desde 1843 já não tinha escravos",
que com a vitória aliada "o genocídio está
feito: 75,75% do povo paraguaio está morto". Indignado,
Chiavenatto concluiu que "o importante é que o imperialismo
inglês, destruindo o Paraguai, mantém o status quo
na América Meridional, impedindo a ascensão do seu
único Estado economicamente livre".
Os pressupostos e conclusões desses e de outros trabalhos
revisionistas sofreram forte influência do contexto histórico
em que foram escritos. As décadas de 1960 e 1970 caracterizaram-se,
na América do Sul, por governos militares. Uma forma de combater
essas ditaduras era minar suas bases ideológicas. Daí,
em grande parte, a acolhida acrítica e o sucesso em meios
intelectuais do revisionismo sobre a Guerra do Paraguai: por atacar
o pensamento liberal; por denunciar a ação imperialista
e por criticar o desempenho de chefes militares aliados, quando
um deles, Bartolomé Mitre, foi expoente do liberalismo argentino,
e, outro, Caxias, tornou-se patrono do Exército brasileiro.
É impossível, também, não notar, nas
entrelinhas do revisionismo, a construção de certo
paralelismo entre a Cuba socialista, isolada no continente americano
e hostilizada pelos Estados Unidos, e a apresentação
de um Paraguai de ditaduras "progressistas" e vítima
da então nação mais poderosa do planeta, a
Grã-Bretanha.
A partir da década de 1980 diferentes estudos, baseados em
sólidas pesquisas em arquivos, apontaram as inconsistências
desse revisionismo histórico. Amado Luiz Cervo demonstra
no livro "História da Política Exterior do Brasil"
que, nas relações com a Grã-Bretanha, o Império
do Brasil buscou a autonomia possível, o que causou vários
atritos entre os dois países, a ponto de estarem de relações
rompidas quando do início da Guerra do Paraguai.
Luiz Alberto Moniz Bandeira constata, em "O Expansionismo Brasileiro
- O Papel do Brasil na Bacia do Prata da Colonização
ao Império", que a modernização do Paraguai,
restrita aos aspectos militares, foi implementada com a importação
de técnicos e tecnologia principalmente britânicos.
O financiamento da continuidade dessa modernização
demandava a ampliação das exportações
paraguaias e, desse modo, o território litigioso com o Brasil,
entre os rios Apa e Branco, adquiriu maior valor para o governo
de Solano López por ser área de produção
de erva-mate, o produto paraguaio de maior exportação.
Os paraguaios Herken Krauer e Gimenez de Herken, no livro "Gran-Bretaña
y la Guerra de la Triple Alianza" (Ed. Arte Nuevo, Assunção,
1982), ressaltam que esse país foi o que mais lucrou com
a modernização paraguaia, cujos projetos de infra-estrutura
foram atendidos por bens de capital ingleses e implementados por
especialistas estrangeiros, em grande parte britânicos.
O Archivo Nacional de Asunción guarda carta, em espanhol,
e datada de 7 de dezembro de 1864, do representante britânico
em Buenos Aires, Edward Thornton, ao chanceler paraguaio José
Berges. Thornton lamenta o rompimento de relações
diplomáticas entre o Brasil e o Paraguai e afirma não
ter o menor motivo para suspeitar de que o governo brasileiro pretendesse
ameaçar a independência do Uruguai. A defesa dessa
independência, recorde-se, foi o pretexto para Solano López
intervir nos assuntos do Prata, colocando o Paraguai em rota de
colisão com a Argentina e o Brasil, o que desembocou na guerra.
Exposta aquela convicção, Thornton escreveu: "V.
E. sabe que a Inglaterra está em atritos com o Brasil, de
modo que, quer por esse motivo, quer pela falta de instruções
de meu Governo, não poderia fazer nada de oficial com seu
Governo; mas se eu possa dar, particularmente, a menor contribuição
que seja para a reconciliação dos dois países
(Brasil e Paraguai), espero que V. E. não hesitará
em utilizar-me" (2).
Salta aos olhos a incongruência de se apontar o Brasil como
instrumento da Grã-Bretanha no Rio da Prata em 1864, quando
o Rio de Janeiro tinha rompido relações diplomáticas
com Londres devido à "questão Christie".
As origens da Guerra do Paraguai estão no próprio
processo histórico regional. O espaço deste artigo
não permite analisar os diferentes aspectos desse processo
que, a nosso ver, tem como eixo a consolidação dos
Estados nacionais na região. A maior presença paraguaia
no Prata, nos termos implementados por Solano López, era
um risco à consolidação do Estado nacional
centralizado argentino e, mais, questionava a hegemonia do Império
do Brasil na região, ao tentar Assunção apresentar-se
como novo pólo de poder regional.
De fato, Solano López aproximou-se da oposição
federalista argentina e de seus aliados no Uruguai (os "blancos").
Necessitando ampliar seu comércio exterior, o Paraguai viu
em Montevidéu o porto marítimo que atenderia essa
necessidade, envolvendo-se o governo paraguaio, desse modo, nas
disputas internas uruguaias. Nessas disputas, Argentina e Brasil
já eram parte integrante e tinham interesses convergentes
de depor ou anular o governo controlado pelo partido Blanco, que
se articulava com a oposição interna argentina e prejudicava
interesses de fazendeiros brasileiros com terras no Uruguai.
O revisionismo criticou a falta de objetividade e a construção
de mitos por parte da historiografia tradicional sobre a Guerra
do Paraguai. Esse mesmo revisionismo, porém, constrói
seus mitos. Um deles é o do suposto genocídio causado
aos paraguaios pelos aliados. Para fazer tal assertiva, diferentes
autores revisionistas afirmam que o Paraguai tinha entre 800 mil
e 1,3 milhão de habitantes no início da guerra, sendo
este último número baseado no censo paraguaio de 1857,
enquanto o censo seguinte, de 1886, encontrou 239 mil pessoas.
Diferentes estudos demonstram, porém, que o total da população
paraguaia em 1864 estava distante dos números acima, usados
para provar o citado genocídio. Vera Blinn Reber, no estudo
"The Demographics of Paraguay: A Reinterpretation of the Great
War" ("The Hispanic American Historical Review",
vol. 68), conclui que o Paraguai tinha, no início da guerra,
um máximo de 318.144 habitantes e calcula que suas perdas
em combate seriam entre 14.285 e 25.448 soldados. Consideradas as
mortes por doença e a emigração no imediato
pós-guerra, a redução da população
paraguaia seria, segundo essa autora, de no máximo 58.857
pessoas.
Como explicar, então, o número do 1,3 milhão
de habitantes do censo de 1857? Tudo indica que ele foi propositalmente
falsificado pelo governo paraguaio para intimidar eventuais agressores
externos, apresentando o país como capaz de montar um grande
exército.
Uma meia verdade de escritos revisionistas é a denúncia
do uso de escravos como soldados no Exército brasileiro,
omitindo-se sua presença no lado paraguaio. Em 1867, quando
foram enviados compulsoriamente aos campos de batalha, Josefina
Plá ("Hermano Negro; la Esclavitud en el Paraguay"
, Ed. Paraninfa, Madri, 1972) calcula que os escravos eram cerca
de 25 mil no Paraguai. Quanto à presença de escravos
no Exército imperial, Ricardo Salles, no livro "Guerra
do Paraguai: Escravidão e Cidadania na Formação
do Exército", crê que não ultrapassava
10% dos efetivos. Como sintetiza André Amaral de Toral no
artigo "A Participação dos Negros Escravos na
Guerra do Paraguai" ("Revista de Estudos Avançados",
nº 24), dificilmente o Exército brasileiro poderia ser
classificado como um exército de escravos.
Na condução da guerra, Solano López foi chefe
militar incompetente. Esse fato foi, porém, compensado pela
disciplina e combatividade do soldado paraguaio, mantidas quer por
sua bravura, quer pelo clima de terror a que era submetido. Os efeitos
de tal incompetência também foram minorados pela geografia
paraguaia, que dificultou o avanço dos atacantes; pelo desconhecimento
aliado do teatro de operações, pois não dispunham
de mapa relativamente preciso do país, informação
crucial para ações militares; pelas dificuldades de
abastecimento; pela falta de ousadia aliada; pelos erros de chefes
militares aliados; e, ainda, pelas desconfianças entre eles,
principalmente de brasileiros em relação a argentinos.
Por motivos políticos, foram relegadas a segundo plano, à
época da guerra, a falta de ousadia e despreparo intelectual
de Tamandaré, comandante da esquadra brasileira na guerra.
O mesmo ocorreu com os erros -entre muitos acertos- de Caxias.
A Guerra do Paraguai foi um marco no processo histórico dos
países nela envolvidos. Há vários de seus aspectos
a serem desvendados, mediante árduo trabalho de pesquisa,
pautada pelos rigores da metodologia histórica e despreocupada
em agradar a interesses político-ideológicos ou comerciais.
O respeito com o passado e a responsabilidade com o presente exigem
seriedade.
Nota
1. "Relatório Político Sobre o Paraguay (Confidencial),
Por Arthur dos Guimarães Bastos, 2ø Secretário
da Legação em Assumpção" - Anexo
ao Ofício 122, Assunção, 5/10/1931. Arquivo
Histórico do Itamaraty, 201-4-6.
2. "Thornton para Berges, Buenos Aires, 7/12/1864" - Archivo
Nacional de Asunción, coleção Visconde de Rio
Branco, documento nº 3277.
Francisco Fernando Monteoliva Doratioto é doutorando em história
das relações internacionais pela Universidade de Brasília,
onde defenderá a tese "As Relações Entre
o Brasil e o Paraguai (1889-1930) - Do Afastamento Pragmático
à Reaproximação Cautelosa". É autor
de "O Conflito Com o Paraguai: a Grande Guerra do Brasil"
(Ed. Ática).
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