Encerrada a guerra, estavam abertas no Brasil as portas do poder para o militarismo

A batalha republicana

MARCO ANTONIO VILLA
especial para a Folha

A idéia republicana no Brasil desde o final do século 18 esteve presente nas rebeliões anticoloniais, mesmo que de forma difusa. Com a Independência e a manutenção do regime monárquico -diversamente do ocorrido na América espanhola, onde todos os novos Estados adotaram o regime republicano-, a defesa da República esteve sempre associada aos movimentos democráticos que abalaram o período regencial e o início do Segundo Reinado. Com a derrota destes movimentos e a consolidação da ordem imperial, a defesa do republicanismo ficou restrita a grupos politicamente marginais, sem expressão social.

A partir de 1860, com o surto cafeeiro e o rápido crescimento econômico do Sudeste, a defesa do regime republicano, constantemente presente nas revoltas ocorridas no Norte-Nordeste, transferiu-se para a região. Uma fração da elite regional passou a sustentar a necessidade de uma nova organização política que possibilitasse um controle direto do Estado e uma reordenação nas relações entre as províncias e o governo central.

Em 1870, a 3 de dezembro, oito meses após o final da Guerra do Paraguai, foi publicado o "Manifesto Republicano", tendo em Quintino Bocaiúva seu principal redator. Na conclusão do manifesto, os republicanos acentuaram que a permanência da monarquia os excluía do convívio com as nações latino-americanas e era a principal razão das guerras com os países limítrofes. A República retiraria o Brasil do isolamento político, não só na América como no mundo, pois acreditavam que o novo regime possibilitaria o contato fraternal entre os povos.

A propaganda republicana poucos adeptos obteve entre 1870-1888. Os republicanos possuíam alguma influência entre os estudantes, jovens oficiais do Exército e nas áreas cafeeiras de São Paulo e Minas Gerais, onde cresciam politicamente identificados com a manutenção da escravidão. Raul Pompéia, republicano radical, resumia em poucas palavras o conservadorismo dos correligionários paulistas: "Vosso barrete frígio é um saco de coar café".

Quintino Bocaiúva, foi o líder republicano mais influente durante o período da propaganda. Carioca, jornalista, fortemente marcado pelo modelo político portenho -sua mãe era argentina, o pai morreu durante sua infância e, talvez, sua primeira língua tenha sido o castelhano-, durante os 19 anos da propaganda republicana foi o principal responsável pela estratégia da luta contra a monarquia. Sua estadia em Buenos Aires durante a Guerra do Paraguai como funcionário do Ministério da Fazenda sedimentou seus valores republicanos.

Bocaiúva considerava que o importante para o movimento republicano era a ampliação da sua influência política mais do que ficar preso a princípios doutrinários. Um exemplo foi o seu posicionamento em 1871, criticando a Lei do Ventre Livre.

Escreveu no jornal "A República", de 27 de maio de 1871, que "criar novas relações jurídicas entre o escravo e o senhor; agitar águas que há muito tempo estão turvas, promover o espírito de sedição por parte do escravo e o espírito de revolta por parte do senhor, eis, entre outras quais sejam, as consequências desse monstruoso projeto".

A escassa popularidade do republicanismo será compensada pela influência entre os jovens oficiais formados na Escola Militar do Rio de Janeiro. O Exército saiu fortalecido enquanto instituição após a Guerra do Paraguai. A longa duração do conflito, a convivência com militares dos países platinos que exerciam funções políticas -quando não chegavam a ocupar a chefia do Estado- e o estabelecimento de um espírito de corpo entre a oficialidade, transformaram o Exército em mais um ator da cena política.

A maioria dos oficiais provinha das classes populares, sequiosos de ascensão social, mas vivendo com baixos soldos. Mesmo a alta oficialidade, apesar de alguns terem sido nobilitados pelo imperador, sobrevivia com parcos recursos. Restava a valorização social e política, mas a estrutura de poder do Império prescindia da participação dos militares na esfera política e pouca importância social era dada aos feitos heróicos ocorridos na Guerra do Paraguai.

Ao próprio d. Pedro 2º era imputado desprezo às atividades militares. Comentavam que o imperador, ao assistir a uma parada militar ao lado de um diplomata estrangeiro, teria dito que os soldados não passavam de assassinos legais, lembravam que d. Pedro não tinha Casa Militar e que a maioria dos ministros da Guerra e da Armada (como era chamada a Marinha durante o Império) eram civis; inclusive durante a Guerra do Paraguai, nos anos 1866-1868, o ministro da Armada foi o liberal Afonso Celso, à época com 30 anos. O militar resmungão, crítico dos "casacas" -como chamavam os políticos civis- e que a todo momento relembrava a campanha do Paraguai, passou a fazer parte do cotidiano do Rio, onde morava a maioria dos oficiais. Em "Triste Fim de Policarpo Quaresma", de Lima Barreto, vários personagens militares constantemente referem-se à guerra, mesmo não tendo participado da maioria das batalhas.

A insatisfação dos militares foi crescendo ao longo dos anos. Em 1889, dos seus principais líderes, todos tinham lutado na Guerra do Paraguai, como Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto.

No golpe militar de 15 de novembro, a lembrança da guerra ressurge. Floriano Peixoto comandava as tropas legalistas quando foi objetado pelo primeiro-ministro Visconde de Ouro Preto a atacar, como teria feito diversas vezes na Guerra do Paraguai, a artilharia rebelde que cercava o ministério no Campo de Santana. Negou-se a obedecer a ordem, alegando que no Paraguai combatera estrangeiros, enquanto naquele momento todos eram brasileiros.

Momentos depois, Deodoro da Fonseca, liderando os militares golpistas, entrou no quartel-general e dirigiu-se à sala onde estava reunido o gabinete. Lá fez questão de recordar ao primeiro-ministro o desprezo que, segundo ele, os governos civis tinham pelos militares e que na Guerra do Paraguai chegou a passar três dias e três noites combatendo no meio de um pântano. Inesperada foi a resposta do Visconde: "Não é só no campo de batalha que se serve à pátria e por ela se fazem sacrifícios. Estar aqui ouvindo o general, neste momento, não é somenos a passar alguns dias e noites num pantanal".

Paradoxalmente, enquanto a Guerra do Paraguai, anos depois, acabou abrindo no Brasil as portas do poder para o militarismo, na Argentina levou ao fortalecimento do civilismo e do poder central e ao enfraquecimento dos caudilhos: a eleição de Domingo Sarmiento à Presidência da República reforçou esta tendência.


Marco Antonio Villa é professor de história da Universidade Federal de São Carlos e autor de "A Queda do Império", "O Nascimento da República" e "Canudos - O Povo da Terra" (Ática).

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