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O PAÍS DE PAPEL
Ocupação
foi lenta nos
dois primeiros séculos
Planisfério de Cantino
De 1502, este é o primeiro mapa qua mostra a descoberta
do Brasil pelos portugueses; o original da carta está Biblioteca
de Estense, em Modena (Itália), pois o agente secreto Alberto Cantino
subornou um cartógrafo português, a mando do duque de Ferrara
ARNO
WEHLING
especial para a Folha
Capistrano de Abreu, no jargão evolucionista do início de sua
carreira, falou do Brasil colonial como um “organismo que proliferava”.
A concepção, entendida apenas como metáfora, ajuda a compreender
o processo de ocupação, lento nos dois primeiros séculos, acelerado
no século 18.
Em torno de 1500, quando portugueses, espanhóis e franceses circulavam
pelo litoral, ainda se pensava o território como uma ilha, idéia
em breve mudada para a de massa continental. Na primeira década
do século, começaram a instalar-se feitorias de exploração do pau-brasil.
O mapa de Lopo Homem, de 1519, apresenta a América como um continente
e assinala dezenas de acidentes geográficos no litoral brasileiro;
nele se retrata, em boa iconografia, a exploração do pau-brasil.
A cartografia de 1500 a 1519 mostra o conhecimento crescente do
litoral, fruto das expedições comerciais e de reconhecimento. Em
1600, o nome “Brasil” estava consagrado. Três etnias se miscigenavam:
brancos, índios e africanos (introduzidos em 1530), com os mamelucos
constituindo um novo tipo étnico. A exportação do açúcar alcançara
a primazia.
O povoamento concentrava-se no litoral. Salvador era o eixo político-administrativo,
tendo como extremidades Cananéia, ao sul, e o Forte dos Reis Magos,
atual Natal, ao norte.
Os principais pontos intermediários eram Olinda, centro da produção
açucareira, e Rio de Janeiro, núcleo de um comércio que incluía
o contrabando da prata peruana. O litoral tinha uma ocupação interrompida
por matas, serras e indígenas hostis.
A posse da terra não estava garantida. Os franceses continuavam
no Nordeste, e a foz do Amazonas era frequentada por holandeses,
irlandeses e ingleses. No sul, os jesuítas espanhóis avançavam com
suas missões de Guairá, Itatim e Tape. Duas décadas mais tarde,
nem a rica e mais bem defendida região do açúcar escapou do assalto
da Companhia das Índias Ocidentais.
Quando o franciscano Vicente do Salvador escreveu, em 1627, sua
“História do Brasil”, observou que os portugueses _diferentemente
dos espanhóis_ limitaram a ocupação ao litoral, “como caranguejos”.
Os mapas confirmam essa presença epidérmica. O de Luís Teixeira,
de cerca de 1586, representa as capitanias e uma dezena de núcleos
de povoamento no litoral em contraste com o interior quase vazio.
O mesmo autor reclamou da falta de “república”: comercial e exportadora,
a colonização desestimulava o mercado interno e insulava a vida
em sociedade.
Em 1700, a população aumentara de 100 mil para 350 mil pessoas,
sem contar os indígenas não-aculturados. A miscigenação era intensa,
e a economia, de exportação, foi acrescida das “drogas do sertão”
da Amazônia. Aumentou a produção de tabaco e couros. O mercado interno
inexistia, excetuado um pequeno abastecimento de Recife, Salvador
e Rio de Janeiro.
Desde a década de 1620, fora criado o Estado do Maranhão, compreendendo
a região em torno dos rios Amazonas e Solimões, além do
Maranhão atual. A ocupação dessa região deu-se a partir de São Luís
e Belém, e foi desse polo que se irradiou pelo eixo do grande rio,
com a fundação de missões religiosas e a exploração das drogas do
sertão.
Vários movimentos estenderam a ocupação do território no século
17. Foram eliminados pontos que impediam a total integração: o quilombo
de Palmares, entre Sergipe e Pernambuco, e núcleos de resistência
indígena no Rio Grande do Norte, sul da Bahia e Rio de Janeiro.
No Nordeste, o movimento dos pecuaristas, descoberto por Capistrano
de Abreu, incorporou o sertão ao mar.
Os paulistas desceram pelo litoral até Laguna e pelo interior até
Lages. Em 1680, o governo português, aliado a alguns “potentados”
do Rio de Janeiro, fundou a Colônia do Sacramento, defronte a Buenos
Aires, tentando chegar ao Prata, velho sonho de políticos portugueses.
Os bandeirantes, cuja imagem cresceria desmesuradamente nos séculos
19 e 20, penetraram o interior, adentrando fundo o sertão, escravizando
índios e buscando ouro. Antonio Raposo Tavares chegou pelos rios
amazônicos a Belém. Outros palmilharam os sertões do que seriam
Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. Nos últimos anos do século, apareceram
os primeiros veios auríferos.
A cartografia dessa época não faz jus a todo esse movimento de interiorização.
Ele só aparece nos mapas produzidos à época das negociações do Tratado
de Madri, em meados do século seguinte.
Em 1700, ainda sem “república”, mas não mais como caranguejos, os
portugueses pareciam ter consolidado sua ocupação. Mas pairavam
novas ameaças sobre a posse, obrigando os colonizadores à luta e
à negociação diplomática. Na Amazônia, foram detidos os jesuítas
espanhóis e os franceses da Guiana. Ao sul, havia uma grande terra
de ninguém entre as províncias espanholas de Charcas e Buenos Aires
e a capitania dos paulistas.
Nos dois primeiros séculos, o “organismo” de Capistrano tinha proliferado,
embora sem a coesão interna da “república” e a celeridade que frei
Vicente desejara. O século 18 resolveria o segundo problema, configurando
o Brasil de hoje. Mas a ausência de “república” foi um legado penoso
que persistiu por muito mais tempo.
Arno Wehling é professor titular da Unirio
e da Universidade Gama Filho e presidente do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro
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