Nova geração de estudiosos das obras dos séculos 18 e 19 se opõe ao uso dos termos "barroco" e "colonial" e contesta as primeiras leituras feitas desse legado

Pesquisas relêem passado musical

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O pesquisador da Unesp Paulo Castagna

IRINEU FRANCO PERPETUO
enviado especial ao Rio

A descoberta do passado musical colonial da América portuguesa é um fato recente. Até a década de 40, era como se esse legado não existisse. Entre 1944 e 1946, Francisco Curt Lange fez intensas pesquisas em Minas Gerais, descobrindo que a região tivera febril atividade musical no século 18, durante o auge da mineração.

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O regente Ernani Aguiar, professor de regência da Escola de Música da UFRJ, especialista no padre José Maurício
As pesquisas de Curt Lange resultaram em 36 volumes de documentação e foram seguidas por pesquisadores como o padre Jaime Dinis (em PE), Régis Duprat (em SP), Olivier Toni (em MG) e Dutra de Morais (em vários estados). Paralelamente, a música recém-descoberta passou a ser executada por regentes como Edoardo de Guarnieri, Cleofe Person de Mattos e Júlio Medaglia.

Hoje em dia, contudo, algumas das idéias dessa primeira geração estão sendo postas em xeque. Surge uma nova geração, que contesta não o pioneirismo desses primeiros maestros e musicólogos, mas as conclusões e escolhas interpretativas a que eles chegaram.

Difícil imaginar expressão mais desgastada que "barroco mineiro". "Foi um equívoco desgraçado", afirma o regente Ernani Aguiar, membro da Academia Brasileira de Música. "O Curt Lange, que era engenheiro, disse para mim que usou a expressão para chamar a atenção, já que as igrejas de Minas eram barrocas."

"A música mineira era pré-clássica, não tinha nada de barroca", afirma o historiador da música e produtor da rádio Cultura FM Maurício Monteiro. "Hoje, mesmo o caráter barroco daquelas igrejas é discutido."

Na América espanhola, contudo, houve uma grande produção barroca. Monteiro cita diferenças entre as colonizações para explicar a dessemelhança musical. "Veja os nomes que os espanhóis usaram: Nova Espanha, Nova Granada. A idéia é de continuidade. Desde o início, tiveram universidades e imprensa, enquanto os portugueses -cuja idéia não era de continuidade, mas de exploração- não fizeram nada disso." Para Monteiro, são essas condições que revelam as razões pelas quais a América espanhola pôde desenvolver uma "mentalidade barroca" (e, consequentemente, uma produção artística barroca), inexistente no lado português.

O historiador também diverge de Curt Lange quanto às causas que fizeram com que as atividades musicais em Minas, no século 18, fossem dominadas por mulatos. "Ele escreveu que os motivos eram o "fino senso estético" e a "propensão para as artes" dos mestiços, enquanto, para mim, a explicação é social", afirma. "O mestiço não é branco -portanto, não pode mandar. Mas também não é negro, ou seja, escravo. Logo, tem de ocupar posições intermediárias, como as artes."

Para Monteiro, essa divergência ocorre porque "muitos musicólogos acham que musicologia é só analisar relações entre tônica e dominante, quanto, na verdade, a gente também tem de pensar na sociedade, que não cria códigos que ela não pode codificar".

Em abril, Monteiro realiza, na Cultura FM, a série de quatro programas "A Metrópole, a Colônia -°As Práticas Musicais Portuguesas e Luso-Brasileiras".

Seu convidado é Paulo Castagna, pesquisador e professor do Instituto de Artes da Unesp que defende, em 30 de março, sob orientação de Arnaldo Contier, a tese de doutorado "O Estilo Antigo na Prática Musical Religiosa Paulista e Mineira dos Séculos 18 e 19", no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Em sua tese, Castagna não só descarta o termo "barroco mineiro" como evita a expressão "música colonial". "O que é "música colonial'? Música que coloniza? Prefiro falar em música na América portuguesa, ou nos séculos 18 e 19, ou ainda em música tridentina, já que essa é a liturgia que vigorou até 1904."

Castagna fez o levantamento de dez acervos, em São Paulo e Minas, estudando 145 composições sacras dos séculos 18 e 19. Conclui que, embora essa produção tenha sido estudada a partir da concepção de que foram empregados estilos únicos em determinadas épocas e regiões, isso não ocorreu.

Para Castagna, dois estilos contraditórios conviveram: um antigo (obras com técnicas composicionais da renascença européia, ou seja, do século 16, mas produzidas ou copiadas nos séculos 18 e 19) e um moderno, que utilizou técnicas originárias da ópera e da música instrumental profana.

Para ele, a escolha entre o estilo antigo e o moderno não era opção estética, mas uma forma de respeito às prescrições litúrgicas.

Também no terreno da regência, as antigas "verdades" sobre a música colonial brasileira vão sendo derrubadas. Ricardo Bernardes, 26, lançou no ano passado um CD independente de qualidade surpreendente com o grupo AmericAntiga, especializado em música ibero-americana entre os séculos 16 e 19, que ele fundou aos 18 anos de idade, em Curitiba.

Graças a workshops com Silvia Berg, regente brasileira radicada na Dinamarca, e a um estágio em Paris com William Christie (líder do grupo francês de música antiga Les Arts Florissants), Bernardes desenvolveu uma concepção de sonoridade de coro particular. "Quis trazer para o repertório brasileiro do século 18 a sonoridade de coro do repertório europeu do século 16", afirma. "A tendência era fazer a música colonial brasileira com coros que soam como ópera italiana do século 19 -pesados e cheios de vibrato".

Bernardes atua no momento como regente da Orquestra de Câmara São Paulo, que conta com 12 dos melhores instrumentistas de cordas da capital. À frente dessa formação, fará, no final do ano, a primeira audição contemporânea de uma das obras mais relevantes do padre José Maurício Nunes Garcia: a "Missa da Conceição", de 1810, que ele está transcrevendo a partir de manuscrito autógrafo do padre-mestre. "O Kyrie dessa missa já foi gravado, mas o Gloria ainda não", diz.

Outro maestro que luta para divulgar a obra do padre José Maurício é o britânico radicado em São Paulo Graham Griffiths. Tendo gravado pela Paulus o "Officium 1816", ele faz, neste ano, a primeira gravação em CD do "Réquiem" do padre-mestre.

"Quando cheguei ao Brasil, em 1986, poucas pessoas haviam ouvido falar em música colonial brasileira", conta. "Hoje, essa música saiu das salas de aula das universidades para chegar aos melhores músicos do país."

 

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