A maioria dos 2.000 residentes apóia obras como o "Pataxopping", para venda de artesanato; "Acho que a gente perdeu um pouco da nossa história", diz índia

(27/2/2000)

Celebração do Descobrimento
muda cotidiano dos pataxós


CHRISTIANNE GONZÁLEZ
da Agência Folha, em Santa Cruz Cabrália


Principal local das comemorações dos 500 anos de Descobrimento do Brasil, a reserva indígena de Coroa Vermelha (sul da Bahia), em Santa Cruz Cabrália, está sendo descaracterizada por obras voltadas para os turistas.

No lugar dos "kigemes" -residências de madeira e telhado de piaçava-, quem visitar a reserva pataxó vai encontrar casas de alvenaria, o Pataxopping (com 90 pontos comerciais), um museu e ruas pavimentadas. Notará ainda uma cruz de granito e aço com 15 metros de altura, feita pelo artista plástico Mário Cravo Júnior, para assinalar o local em que o frei Henrique Soares de Coimbra teria celebrado a primeira missa em terra, em 26 de abril de 1500.

Realizadas pelo Ministério do Esporte e do Turismo, em parceria com o governo da Bahia, as obras integram um pacote voltado para as comemorações dos 500 anos do Descobrimento, em 22 de abril próximo. O total de investimentos previstos chega a R$ 150 milhões, em toda a Costa do Descobrimento -Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália e Belmonte.

No caso dos pataxós, as ações incluem um curso patrocinadopelo governo baiano para dar aos índios orientação sobre como receber turistas e como administrar as lojas de artesanato típico que serão abertas (leia abaixo).
Os pataxós são índios da família macro-jê e fazem parte do grupo dos botocudos -também chamados de aimorés ou tapuias.

Quando chegaram os primeiros europeus, os botocudos ocupavam grandes faixas da mata atlântica, da baía de Todos os Santos até a foz do rio Doce, no Espírito Santo.

As melhorias na área indígena são guiadas pela preocupação de agradar aos visitantes. "A aldeia de Coroa Vermelha parecia uma favela, com barracos, palafitas e sem rede de esgoto. A sujeira no local provocava a proliferação de doenças e repelia o turista", diz a secretária de Turismo de Santa Cruz Cabrália, Lígia Barros.

A socióloga Vera Andrade, da Conder (Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia), diz que as obras ajudarão os índios a recuperar a auto-estima e a resgatar sua cultura.

"Eles vão ganhar um museu para contar sua história e um centro comercial para vender seus produtos. Com o tempo, vão entender o quanto é importante preservar seus valores", diz ela.

A maioria dos 2.000 pataxós da reserva apóia as obras, que, para eles, melhoram suas condições de vida. Entre eles, porém, há quem as veja de forma crítica. "Essas construções estão tirando a característica da aldeia.

Antes, mesmo com os barracos e palafitas, dava para perceber que era uma área indígena. Acho que a gente acabou perdendo um pouco da nossa história", diz Arari Pataxó, 36, representante das mulheres da reserva.

O gerente regional da Funai (Fundação Nacional do Índio) em Porto Seguro, Antonio Manoel da Silva, responsável pela reserva, afirmou que os pataxós foram "iludidos" pelo ministério. "Os índios aprovaram o projeto porque foram seduzidos pela promessa de ter água encanada, esgoto e casas confortáveis, mas isso não está sendo cumprido. O projeto não tem nada a ver com a cultura indígena", declarou.

Lígia Barros disse que a aldeia pataxó já estava descaracterizada antes do início das obras. "O convívio com a comunidade branca já causara essa transformação."

Quem visita a reserva só vê índios com aspecto tradicional nas áreas de comércio -para atrair a atenção dos turistas- e na área da Jaqueira, onde um grupo de 30 pataxós construiu uma aldeia típica voltada para turistas.
A índia Arari disse que a comunidade deixou de se reunir para o ritual do auê (dança típica) e que poucos na aldeia falam pataxó. "Com a chegada dos brancos, o índio passou a desejar coisas que não conhecia. Isso traz facilidades para a vida de hoje, mas a comunidade era mais unida e feliz antes", afirma.

A reserva de Coroa Vermelha está localizada às margens da BR-367, que liga Porto Seguro a Santa Cruz Cabrália. Atualmente a reserva está dividida em três áreas -uma de preservação ambiental (Jaqueira), uma destinada à agricultura e outra comercial.

Aos índios, o governo prometeu 150 casas de alvenaria, só concluiu dez e tem mais 31 previstas para acabar até o início dos festejos. Os pataxós temem que o resto não seja feito, pois as obras só estão adiantadas no Pataxopping, no museu e no monumento. Até agora, cerca de 50 famílias deixaram suas casas por causa das novas construções e foram, na maioria, para casas da reserva.

Aruã Pataxó, 25, da comissão que acompanha as obras, diz que a aldeia está descontente com o tamanho das novas casas. "O índio tem família grande, e as casas têm só 43 m2. Além disso, o material não é de boa qualidade."

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