Documentos estão à espera de brasileiros

Do enviado a Lisboa


A preocupação com a revolta dos negros poucas vezes foi além do Conselho Ultramarino.

A este conselho cabia traçar as políticas gerais para as colônias. No mais das vezes, o rei se limitava a um curto despacho à margem do mesmo documento.

Para cada papel do conselho destinado às colônias, uma cópia era conservada em Lisboa. É esta montanha de papéis que forma hoje o Arquivo Histórico Ultramarino, instalado no antigo palácio dos condes de Egas, na calçada da Boa Hora, no bairro do Belém.
Da janela do salão de festas do palácio _um dos mais bonitos de Lisboa e hoje em reforma_ se avista o rio Tejo. No auge dos descobrimentos, dali se avistavam as naus que partiam ou retornavam de viagem.

A primeira seção do Arquivo Ultramarino reúne manuscritos avulsos. ''O Brasil sozinho tem o dobro da documentação de todas as ex-colônias juntas'', diz Maria Luisa Abrantes, funcionária do arquivo há 31 anos e hoje diretora.

São 140 mil conjuntos de documentos sobre o Brasil, distribuídos em 3.990 caixas ou gavetas.

A capitania de Pernambuco _palco das guerras aos negros de Palmares_ tem 234 caixas com cerca de 17 mil documentos.
São poucos os pesquisadores brasileiros que já vasculharam esses papéis em busca dos passos de Zumbi, diz a diretora Maria Luisa. O códice 265 _um conjunto de documentos com mais de 40 papéis que tratam de Palmares_ foi microfilmado há dois anos. Duas semanas atrás, quando a Folha esteve no arquivo, o microfilme não tinha sido tocado.

É por meio das cartas dos governadores e das consultas que o conselho fazia ao rei que os pesquisadores vêm montando a epopéia de Palmares.

Trezentos anos depois de morto, Zumbi permanece na vala comum dos personagens que tiveram pouca importância para Portugal.

Nada indica que se levantará daí um dia. Nas seis universidades com graduação ou mestrado em história do Brasil, nenhum dos estudantes se dedicou ou vem se dedicando ao tema.

''Zumbi não chegou a tirar o sono do rei'', acredita o pesquisador Jorge Couto, 44, professor de história do Brasil na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

''As notícias que chegavam ao rei sobre esses motins locais eram distorcidas e nem sempre correspondiam à verdade'', diz Jorge Borges de Macedo, historiador e diretor do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo.

Aos olhos da coroa, o episódio de Palmares foi ofuscado pela ''guerra da Restauração'' contra a Espanha _de 1640 a 1660_ e pela invasão holandesa no Nordeste, que durou de 1630 a 1654.
No novo prédio da Torre do Tombo, localizado no campus da Universidade de Lisboa e onde se arquivam os documentos régios, pouco há sobre Palmares.

Nenhum documento foi deixado pelos palmarinos, embora Zumbi soubesse português e latim.

Tivesse ele escrito um diário, e talvez a história de Palmares pudesse ser contada de uma outra maneira.
(Aureliano Biancarelli)

Colaborou Jair Rattner, especial para a Folha, de Lisboa

Leia mais: Relato trata do cotidiano de Palmares


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