Pesquisadores discutem as principais teorias sobre a questão racial no Brasil nos 300 anos da morte do líder negro Zumbi

Visões do Negro

MARILENE FELINTO
Da Equipe de Articulistas


No século 15, quando o infante Dom Henrique ordenou que suas caravelas fossem ao país da Guiné, "onde as gentes são extremamente negras", em busca de cristãos e especiarias, estavam lançadas as sementes da gênese americana e brasileira.
Com o correr dos séculos, o contato entre brancos e negros não só foi conformando a geografia física e humana das Américas como se constituiu na primeira tomada de consciência da unidade do planeta.

O fim do século 20 tem sido marcado pela rediscussão da participação e do direito da raça negra na conformação daquele novo mundo.

No Brasil, onde já em fins do século 18 havia cerca de um milhão de brancos contra dois milhões de negros e pardos, estudos sobre a presença do negro na formação do "caráter nacional brasileiro" vêm sendo feitos desde meados do século 19.

Verdade que a visão do negro na principal historiografia brasileira é até hoje trabalho de branco: são brancos Silvio Romero, Gilberto Freyre e Euclides da Cunha, para citar apenas alguns dos mais importantes estudiosos do assunto.

Este número do "Mais!", que reúne a história das principais idéias sobre o negro brasileiro, inicia a cobertura especial que a Folha fará durante o ano sobre problemas raciais e a condição do negro no Brasil, por ocasião dos 300 anos da morte de Zumbi, comemorados em 20 de novembro.

Zumbi foi chefe do Quilombo dos Palmares, o mais importante movimento de rebeldia de escravos negros do Brasil colonial.

Além de uma série de reportagens, a Folha realizará sobre o tema eventos, exposições, conferências e debates abertos ao público.



(continuação)

A sociologia brasileira que trata de negros e sai pelos portões da academia hoje em dia —sociologia de maioria branca, embora tenha crescido o número de negros e mestiços dedicados ao assunto— gosta de chamar de "a problemática negra" seu tema.

A expressão, típica do jargão especulativo dessa ciência, tem pompa, não quer dizer muita coisa, mas é papagaiada de um para outro jovem (ou não) sociólogo ou antropólogo acadêmico, esvaziando-se pelo caminho.

Igual a esse, há outro cacoete típico da sociologia contemporânea brasileira: a crítica quase unânime que se faz a Gilberto Freyre —especialmente de "Casa Grande e Senzala"—, por uma infundada "democracia racial" divisada na obra do maior estudioso dos fundamentos da nossa sociedade.

Embora reconheçam que "Casa Grande e Senzala" é um livro-marco por ter tirado dos domínios da sociobiologia racista e levado para a sociologia histórica a discussão sobre o papel do negro na formação do povo brasileiro, acusa-se Freyre de dar pouca importância ou de ocultar a exploração do escravo negro pelo senhor branco.

Crítica infundada, já que Gilberto Freyre foi o primeiro a reconhecer que "o que houve no Brasil (...) foi a degradação das raças atrasadas pelo domínio da adiantada. Esta desde o princípio reduziu os indígenas ao cativeiro e à prostituição. Entre brancos e mulheres de cor estabeleceram-se relações de vencedores com vencidos (...)".

É bem verdade que Freyre fez o elogio da nossa sorte, a apologia do destino mestiçado brasileiro, branco apaixonado —mas nem por isso menos científico, metódico ou distanciado do que deve ser um estudioso— que era pela raça negra.

Sempre soube ver que, apesar do "constante estado de guerra" entre brancos e negros, nunca se excluiu a miscigenação nem a atração sexual entre as duas raças, muito menos o intercurso entre as duas culturas.

A feição anti-racista e democrática que o sociólogo traça da sociedade brasileira desde a sua formação não elimina, portanto, o conflito do ajuntamento racial.

É sobretudo uma feição desenhada a partir da comparação —que Freyre já fazia desde os anos 30— entre a sociedade brasileira e a americana etnocêntrica e organicamente racista: o Brasil foi incomparavelmente menos atingido que os Estados Unidos pelo suposto mal da "raça inferior", Gilberto Freyre observa em "Casa Grande e Senzala".

É daí que vem senão o elogio do sociólogo ao português (o luso-tropicalismo), pelo menos o reconhecimento de que tivemos a sorte de ser colonizados por um povo de formação antes religiosa que etnocêntrica; povo católico, mais tolerante e hospitaleiro, de moral sexual menos rígida que os reprimidos protestantes germânicos e holandeses do Norte —afinal estes últimos dariam nos boeres ultra-racistas da África do Sul.

A moral sexual dos portugueses, diz Freyre, era "a moçárabe, a católica amaciada pelo contato com a maometana, e mais frouxa, mais relassa que a dos homens do Norte. Nem era entre eles a religião o mesmo duro e rígido sistema que entre os povos do Norte reformado e da Castela dramaticamente católica, mas uma liturgia antes social que religiosa, um doce cristianismo lírico, com muitas reminiscências fálicas e animistas das religiões pagãs: os santos e os anjos só faltando tornar-se carne e descer dos altares nos dias de festa para se divertirem com o povo".

O Brasil formou-se, continua ele, despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza da raça. Durante quase todo o século 16, a colônia esteve escancarada a estrangeiros, só importando às autoridades coloniais que fossem de fé ou de religião católica.

"O perigo não estava no estrangeiro nem no indivíduo disgênico ou cacogênico, mas no herege. Soubesse rezar o padre-nosso e a ave-maria (...) —e o estrangeiro era bem-vindo no Brasil colonial. (...) Ao passo que o anglo-saxão só considera de sua raça o indivíduo que tem o mesmo tipo físico, o português esquece raça e considera seu igual aquele que tem religião igual à que professa".

A perspectiva sob a qual Gilberto Freyre —perspectiva de um escritor, de um artista, não a de um simples sociólogo— vê a participação do elemento negro na formação da raça brasileira ainda é o mais original e amplo dos estudos que se tem por aqui nessa área.

Freyre viu por dentro a introdução e a penetração da raça negra no estofo social do nosso povo. Por dentro... talvez literalmente por dentro: como quem foi se misturando "gostosamente" com mulheres de cor, segundo ele próprio diz dos colonizadores portugueses que se multiplicaram em filhos mestiços numerosos.

Viu com conhecimento de causa —como quem, sinhozinho branco, fez troca-troca com negrinhos escravos, companheiros de brinquedos, nos esconderijos dos quintais do solar de Apipucos, em Recife— e viu de Pernambuco: o ponto mais perto da Europa, capaz de conservar, portanto (segundo Freyre), um equilíbrio entre as três influências, a indígena, a africana e a portuguesa.

Em Pernambuco, em Recife dos anos 60, me lembro que nós, crianças mestiças, umas mais negróides que outras, passávamos horas invejando uns olhos azuis do vizinho branco ou os cabelos lisos e longos de uma de nossas avós, filha de pai índio.

Sentíamos isso com uma naturalidade que soaria hoje "politicamente incorreta". Achávamo-nos talvez no direito de sentir, tínhamos o direito do mestiço (que tem doses das três raças pelo corpo). Dávamo-nos o direito da inveja, a mesma inveja que sentíamos, aliás, das crianças católicas da rua, que comiam as misteriosas —e proibidas para nós, filhos de protestantes- hóstias da missa.

Gilberto Freyre preocupou-se com a influência do escravo negro nos meandros da vida sexual e de família do brasileiro.

Preocupou-se com o trânsito estabelecido entre a casa-grande e a senzala, viu a grande vantagem que é a mestiçagem, tirou daí a tese da atração natural (pura, por sadismo ou por masoquismo) e entre as raças negra e branca.

Não mostrou apenas o que há de harmonia nesse contato, mostrou também o que há de desarmônico, contraditório, antagônico e carnavalesco.

Sua teoria se aplica hoje do mesmo modo que no Brasil colônia. Peguemos um exemplo bem brasileiro do fim deste século: um jovem jogador de futebol escuro e semi-favelado toma como primeira providência, depois de conquistar fama e dinheiro, comprar o carro mais caro do mercado (que raramente sabe usar) e se casar com uma loira (aguada, às vezes oxigenada).

Exemplos desse fenômeno hilário são abundantes (basta ver Romário e o sempre Pelé). É como se no inconsciente do menino escuro morasse uma branca loira, do mesmo modo que morava o carro importado (acabará estranhando também a tecnologia da loira). Mas o inconsciente do menino escuro não difere do inconsciente do historiador burguês, branco e racista.

Gilberto Freyre teve, afinal, a coragem de apontar, na sociedade patriarcal brasileira, o convencionalismo social da superioridade da mulher branca, da inferioridade da preta e da preferência sexual pela mulata: "Branca para casar, mulata para f..., negra para trabalhar" diz ele, com todas as letras, e cita as taras de Nina Rodrigues e José Veríssimo:

"Entre nós, já vimos que Nina Rodrigues considerou a mulata um tipo anormal de superexcitada sexual; e até José Veríssimo, de ordinário tão sóbrio, escreveu da mestiça brasileira: 'um dissolvente de nossa virilidade física e moral'."

O que a crítica acadêmica parece querer fazer hoje é diminuir a importância dessa abordagem freyriana da "problemática negra".

Como se ela fosse menos importante do que, por exemplo, a avaliação da importância do negro no progresso econômico do Brasil ou coisa que o valha.

Menos importante não pode ser, pois se trata exatamente da essência do que somos. Gilberto Freyre estava coberto de razão ao ressaltar, na formação da sociedade brasileira, o elemento anti-racista, a despeito da enorme carga de preconceito que as elites brancas arrastam pela história do mundo.

De resto, a obra de Freyre é vítima de uma tendência generalizada —de acadêmicos e não acadêmicos brasileiros— de avaliar as relações raciais no Brasil de hoje como se aqui fossem os Estados Unidos. Por falta de sensibilidade e informação histórica, por submissão à metrópole cultural, deve ser. (Marilene Felinto)

Leia mais: A voz dissonante de Joaquim Nabuco


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