Dois autores atormentados com o mundo tropical das raças mistas

LILIA MORITZ SCHWARCZ
Especial para a Folha


No Brasil o tema da identidade nacional é quase uma obsessão. Na verdade, essa mania de refletir sobre o que somos e o que não somos; ou acerca do que faz do Brazil, Brasil, não é de hoje. Mas se a questão é antiga, foi no século 19 que a inquietação se manifestou de forma mais evidente.

Com efeito, independente politicamente a partir de 1822, essa monarquia tropical, cercada de repúblicas por todos os lados, precisava provar para os outros e para si mesma que aqui havia uma nação e quiçá um povo.

Porém, o Brasil romântico dos anos 800 elegeu sobretudo o indígena como seu símbolo e representação, preferindo deixar esquecida sua realidade negra e mestiça. De fato, apesar do projeto do naturalista K. von Martius, que já em 1844 chamava a atenção para a especificidade da "civilização local" —onde "três raças humanas são colocadas uma ao lado da outra de maneira desconhecida"—, o Brasil dos Institutos Históricos, das Academias Imperiais e das benesses do monarca apagou de seu registro o africano.

Homens de "sciencia"
Foi só no final do século passado que o negro passou a ser tema da intelectualidade nacional, nesse contexto, profundamente influenciada por modelos deterministas e evolutivos de análise.
Nesse panorama, destacam-se dois autores —Nina Rodrigues (1862-1906), da Faculdade de Medicina da Bahia, e Silvio Romero (1851-1914), da Escola de Direito de Recife— que passam, enquanto "homens de sciencia", a lidar com a questão, sem esconder suas apreensões.

Como afirmava de forma impiedosa Silvio Romero, no prefácio à obra de Nina Rodrigues, "Africanos no Brasil", "o negro não é só uma máquina econômica; ele é antes de tudo, e malgrado a sua ignorância, um objeto de sciencia".

Tratado como objeto de ciência, o negro virava tema de estudos acadêmicos, que em geral oscilavam entre, de um lado, reconhecer o caráter singular desse país miscigenado e, de outro, divulgar as conclusões pessimistas dos mestres europeus que não viam futuro "em um país de raças mistas".

O imperador mulato
O momento não estava, porém, para consensos. Enquanto Silvio Romero advogava, em 1888, a idéia de que "o mestiço é a nação em formação" e concluía que "somos um país mestiço, se não no sangue ao menos na alma (...) pouco adianta discutir se isso é um bem ou um mal; é um fato e basta" —e ainda se dava ao luxo de ironizar a situação: "O primeiro imperador foi deposto porque não era nato, o segundo há de sê-lo porque não é mulato"; já autores como Nina Rodrigues revelavam ora curiosidade, ora temor frente a essa nação mestiça.

Assim, se foi esse médico maranhense o primeiro a se preocupar em catalogar as várias nações africanas que vieram ao Brasil, ou mesmo a denunciar a violenta repressão policial aos "candomblés da Bahia", também foi ele quem passou a vida toda atormentado pelo que chamou ser "o problema negro", ou seja, nossa falta de "uniformidade étnica" e "fraqueza biológica".

Apesar de se dizer um "simpatizante das populações negras", Rodrigues defendeu posições radicais, um ano antes da abolição da escravidão, criticando "a irresponsabilidade dos juristas", que não viam que "a igualdade de direitos era uma utopia". "Os homens nascem diferentes", rebatia, defendendo a tese de que "as disparidades raciais deveriam levar à conformação de códigos penais também diversos, adaptados aos diferentes graus de evolução".

Originalidade nacional
A defesa da diferença nem sempre se fez, portanto, em uma só direção. Com efeito, essa foi uma geração atormentada entre a vontade de reconhecer e elogiar uma certa originalidade nacional ou fazer jus às teorias estrangeiras que viam na mistura um mal e na diferença entre as raças um elemento fundamental.

Afirmar, na época, que "era preciso não ter preconceito e reconhecer as diferenças", como o fez Silvio Romero, não significava exaltar particularidades, mas antes resignar-se às desigualdades e à idéia da inferioridade de certos grupos. Objeto de análise, objeto de raça e de sua condição, aos negros, nesse contexto intelectual, não cabia qualquer local para a auto-afirmação.

No entanto, se é evidente o grau de racismo presente na obra desses intelectuais do 19 —tão deslumbrados pelo caráter premonitório dos modelos evolucionistas, que garantiam aos brancos a supremacia e a civilização—, talvez tenham sido eles os inspiradores de uma certa representação, anos depois vitoriosa. Afinal, foi nos anos 30 e sobretudo a partir da interpretação culturalista de Gilberto Freyre que o mestiço, de desalento, se transforma em fortuna, "na sua mais completa tradução".

LILIA K. MORITZ SCHWARCZ é professora de antropologia na USP, autora de "Retrato em Branco e Negro" (Companhia das Letras)

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