Yothu Yindi traz temas aborígines ao Brasil

Grupo faz shows em São Paulo, Curitiba e Porto Alegre

Agência Folha 03/04/97 18h09
De São Paulo

Reprodução
yothu
Capa do disco "Tribal Voice", que está sendo lançado no Brasil
O grupo aborígine australiano Yothu Yindi chega ao Brasil na próxima semana, para quatro shows, dois em São Paulo (terça e quarta-feiras, às 21h30, no Palace), um em Curitiba/PR (dia 11) e outro em Porto Alegre/RS (dia 12).

Totalmente desconhecido por aqui, o Yothu Yindi (pronuncia-se iutu indi) é unanimidade em seu país natal, seja por suas características musicais, seja pela luta que desenvolve na defesa dos direitos de seu povo, tão subjugado lá quanto os indígenas aqui.

Yothu Yindi, é um termo Yolngu (um dos povos aborígines da Austrália) e significa "filho e mãe", é um termo utilizado para descrever as relações entre os clãs aborígines da região australiana de Arnhem, de onde vem o grupo.

O grupo, que existe há dez anos, se apresenta com nove integrantes, sendo que alguns são australianos brancos (balandas), o que lhe confere o lado pop.

O grupo começou a se destacar em 1988, quando participou de vários shows de protesto durante o bicentenário da Austrália. Como aborígine, o grupo não tinha nada a comemorar. No mesmo ano, partiu para uma turnê por 32 cidade norte-americanas, abrindo para o grupo Midnight Oil. Na volta, gravou "Homeland Movement", seu primeiro disco.

O sucesso nacional veio com o segundo disco, "Tribal Voice", que está sendo lançado no Brasil, via Polygram. O disco faz uma mescla perfeita de ritmos tribais aborígines e ritmos pops, como rock e reggae.

O disco foi considerado o melhor disco indígena de 1992 e "Treaty", uma de suas faixas, a melhor canção do ano, entre outros prêmios.

Multimídia

SomTrecho de "Treaty"
Leia: Instruções para acessar arquivos de áudio

Em entrevista à Folha de S.Paulo, por telefone, de Saarbruecken, na Alemanha, durante turnê européia, Mandawuy Yunupingu, 40, o líder do grupo, falou de sua carreira e da luta que desenvolvem para manter sua identidade.

Folha de S.Paulo - Quando você decidiu ser músico?
Mandawuy Yunupingu - Sempre pensei em música, pois ela é uma força motora de toda a minha cultura, mas a idéia de ser um músico contemporâneo veio entre 1985 e 1986.

Folha de S.Paulo - Você já teve problemas com seu povo por misturar sua música nativa com música pop?
Yunupingu - A música "balanda" é uma nova idéia para nosso povo. Mas sempre que pretendemos trazer um novo conhecimento para a nossa cultura, algo que possa em algum momento denegrir nossa cultura, sempre pedimos que os mais velhos nos guiem.

Folha de S.Paulo - Sua cultura é aberta para o uso de novas tecnologias?
Yunupingu - Muito. Meu povo pensa no que a tecnologia faz para as outras culturas e aceita algo que compreenda como novo, fresco e limpo. E a música é o meio que escolhemos para discutir nossas questões políticas e sociais hoje.

Folha de S.Paulo - Como foi a experiência de tocar com o Midnight Oil?
Yunupingu - Comecei a ouvir o Midnight Oil no início dos anos 80, quando eles eram muito fortes na Austrália. Faixas de sucesso, como "Burnie", tratavam de problemas australianos, e eu me senti muito ligado ao seu discurso. Em 1988, quando a Austrália completou seu bicentenário, o Midnight Oil boicotou as comemorações e pediu que acompanhássemos o grupo em uma turnê de sete semanas nos Estados Unidos. Nós não tínhamos nenhum disco ainda. Partimos na turnê porque os Estados Unidos eram uma nação que nos interessava. Era um país onde as nações indígenas tinham os mesmos anseios que nós em relação ao direito à terra e à cultura nativa. Acho que o Midnight Oil funcionou como um catalisador de todo esse processo de conscientização.

Folha de S.Paulo - Você fala em boicote, mas o Yothu Yindi não luta por um "acordo" com o governo australiano sobre os direitos aborígines?
Yunupingu - Nunca tivemos um acordo com os brancos na Austrália. Ainda estamos em um tipo de guerra. A nível político, ainda somos subjugados.

Folha de S.Paulo - No site do Yothu Yindi na Internet vocês apóiam o combate à cegueira na África. Por que esse interesse nos problemas de outro continente?
Yunupingu - Basicamente, apoiamos a The Fred Hollows Foundation, que iniciou seus trabalhos no centro da Austrália e que se espalhou pelo mundo, principalmente na África. Também é uma forma de chamar a atenção para os problemas de saúde de nossas populações, que não recebem o mesmo tipo de atenção do governo federal que a população branca recebe. É por tudo isso que estabelecemos essa relação com a Fred Hollows.

Folha de S.Paulo - Os aborígines tem mais consciência de sua identidade?
Yunupingu - É uma evolução mundial. Todas as populações indígenas estão lutando por seus pontos de vista. Queremos manter nossa identidade, formas de expressão e nosso direito à terra.
Basicamente, estamos pedindo por direitos humanos e pelo reconhecimento pela nossa forma de vida. O desafio é conciliar o estilo contemporâneo de vida na Austrália e as nossas tradições.

Folha de S.Paulo - Como a sua língua é preservada?
Yunupingu - Eu sou um professor e muitas escolas das regiões aborígines aplicam uma política nacional de manutenção das línguas nativas, em escolas bilíngues.
A região de onde venho tem uma cultura muito forte, que existe há milhares de anos e que ainda é praticada em nossa sociedade democrática, nossa língua, nossa arte, nossa música, nossa dança.

Folha de S.Paulo - Quantas línguas se fala na Austrália?
Yunupingu - A Austrália fala cerca 200 línguas e dialetos, mas já falou mais de 700.

Folha de S.Paulo - E quantas pessoas falam a sua língua?
Yunupingu - Minha tribo tem cerca de 600 pessoas, mas eu falo cerca de 20 dialetos.

Folha de S.Paulo - A população indígena australiana está em crescimento?
Yunupingu - Não existem estatísticas, mas acredito que estejamos passando por um "baby boom".

Álbum do Yothu Yindi
tem lançamento no Brasil

O disco "Tribal Voice", lançado agora no Brasil, é o segundo do grupo Yothu Yindi e marca sua conquista definitiva do mercado australiano, além do rompimento das fronteiras do continente.

A receita é a que percorre a carreira do grupo: combinar rock e outros ritmos ocidentais contemporâneos e canções do repertório tribal Yolngu (basicamente dos clãs Gumatj e Rirratjingu).

Assim, é possível ouvir desde um canto tribal totalmente acústico, como "Gapu", em que ainda sobressaem dois instrumentos aborígines: o percussivo "bilma", composto por pedaços de madeira batidos um no outro, e o "yidaki", longo cilindro de sopro.

"Treaty" trabalha com uma tradição mais contemporânea, a surf music, e utiliza instrumentação eletrônica, como guitarras, baixo e teclado. É impossível ficar parado nessa faixa, que ganha ainda remix tecno e dançante no final do CD. A surf music volta ainda em faixas como "Djapana" e "Hope".

A riqueza rítmica e o ecletismo do grupo se manifestará ainda em "Gapirri" (rockabilly que concilia percussão tribal e solos de guitarra) e "Dharpa" (rock com arranjos básicos, quase punk). O público brasileiro deve se esbaldar mais ainda com a levada reggae de "Matjala".

Site da banda descreve
tradição aborígine

Os aborígines aceitam mesmo a tecnologia e provam isso no site do Yothu Yindi na Internet.

Em algumas de suas janelas, o site não difere muito dos inúmeros disponíveis sobre bandas de rock. Traz, por exemplo, um calendário completo da turnê da banda.

Também elenca a discografia do grupo, com trechos de músicas e vídeos, além de histórico da banda e das gravações, com todo o processo que solidificou sua carreira.

O site traz ainda ao trabalho que desenvolvem com a The Fred Hol- lows Foundation, instituição que luta pelo combate à cegueira na África (3,5 milhões vítimas de catarata, só na região subsaariana).

Uma galeria de arte apresenta trabalhos da tradição Gumatj, com seus animais e simbologias.

No site, também é possível tomar conhecimento das principais mazelas do povo Yolngu (poluição, fim das florestas e mares, roubo de terras, fim das línguas nativas) e de seus anseios: busca de uma nova harmonia e estabilidade para as próximas gerações.

Os membros da tribo Yolngu vivem no nordeste de Arnhem Land, no Território do Norte (centro da Austrália). Cerca de 800 nativos vivem em Yrrkala. Outros 800 Yolngu vivem em agrupamentos familiares nas matas da região. São os "homelands centres", movimento de retorno dos nativos às matas que deu nome a uma canção da banda: "Homeland Movement".

Os membros do Yothu Yindi saíram de dois clãs da região: Gumatj e Rirratjingu. Suas tradições culturais, religiosas e artísticas são das mais fortes da Austrália, principalmente devido ao tardio contato com os balandas (europeus), ocorrido há cerca de 60 anos.

Gravadora traz
álbum do Gang Gajang

Os australianos do Yothu Yindi não estão chegando sozinhos, mas isso talvez não seja uma boa notícia. Junto com a chegada do grupo aborígine, a gravadora Spotlight coloca no mercado nacional o CD "Lingo", do Gang Gajang.

O grupo é o primeiro do projeto Australian Connection, que conta ainda com os nomes Hoodoo Gurus, Colin Hay (ex-cantor do Men at Work) e Shock Poets.

Apesar do nome sugestivo, o Gang Gajang não é lá grande coisa. Aliás, seria muito otimismo esperar alguma coisa de uma gravadora que tem em seu cast nomes como o grupo Double You e a cantora Corona.

O discurso da banda até é semelhante ao do Yothu Yindi, mas a forma é outra.

Com arranjos consistentes e bons instrumentistas, o Gang Gajang constrói rocks e baladas palatáveis, feitos sob encomenda para as FMs e para o corpo chacoalhar sem compromisso. Mas cuidado, depois de duas audições, eles deixam seus refrões indelevelmente fixados em sua memória.

Cantam a mãe natureza, amores perdidos e a efemeridade da vida. "Hundreds of Languages", por exemplo, fala de um espírito que se levanta sobre centenas de línguas, de um lugar onde tantas palavras tem o mesmo significado, uma clara referência às singularidades territoriais australianas.(Celso Fioravante)