'Guerra de Canudos' chega ao circuito comercial

Filme exprime vertente dos grandes temas históricos

Agência Folha 03/10/97 20h02
De São Paulo

''Guerra de Canudos'', que chega aos cinemas exatamente cem anos depois do massacre que descreve, é o exemplo mais acabado de uma certa vertente do cinema brasileiro, a dos ''grandes temas da nossa história''. Com uma grande produção orçada em R$ 6 milhões, milhares de figurantes, astros famosos, cenografia impecável, o filme tenta estar à altura da tragédia que aborda: o confronto sangrento entre as forças arcaicas e místicas do sertão e as forças ''modernas'' da República, do qual saíram mortos 20 mil seguidores do beato Antonio Conselheiro e 5.000 soldados.

A Guerra de Canudos foi o avesso de uma epopéia, um fato militar e político que revelou não o heroísmo ou a bravura, mas os traços mais sórdidos da sociedade brasileira: miséria, ignorância, autoritarismo, covardia, desatino. Há uma passagem no filme que define bem a insanidade geral daquele momento: o coronel Moreira César (Tonico Pereira), num febril discurso positivista, investe contra a ''loucura! loucura!'' dos seguidores do Conselheiro e, em seguida, transtornado, sucumbe a um ataque epilético.

Ponto para o roteiro. Mas, para que o filme conseguisse comunicar de modo propriamente cinematográfico aquele descarrilamento da história que foi Canudos, seria preciso que a câmera enlouquecesse também um pouco. A impressão que se tem é a de que o diretor Sérgio Rezende foi respeitoso demais com seu assunto, a ponto de ficar submisso diante dele. Buscou recompor o arraial de Canudos exatinho como era, assim como a igreja do povoado, a roupa dos beatos, a barba do Conselheiro etc.

Mas talvez esse mimetismo exterior, de superfície, não seja a melhor maneira de o cinema tentar se aproximar de uma realidade ou ao menos da ''sua'' verdade. Veja-se, por exemplo, a cena de ''Deus e o Diabo na Terra do Sol'' em que o vaqueiro Manuel adere ao beato Sebastião. Dois atores, poucos figurantes, uma câmera na mão e a música de Villa-Lobos bastam para expressar o fervor místico e criar um momento de força e grandeza inexcedíveis.

Na ''Guerra de Canudos'', ao contrário, há um peso teatral que embaraça os movimentos dos personagens e da câmera. É um cinema ''ilustrativo'', cujos valores mais positivos são, por assim dizer, extracinematográficos. Há momentos de exceção a essa regra. O mais memorável deles é a cena noturna em que os soldados, munidos de tochas, invadem os barracos de Canudos em busca de sobreviventes. Com movimentos mais nervosos de câmera, a iluminação cambiante revela, aos fragmentos, um quadro de horror: cadáveres para todo lado.

O diretor optou, de modo louvável, por um viés ''lateral'', em que o protagonista não é o Conselheiro, mas sim os membros de uma família sertaneja atropelada pela história. Só que o desenvolvimento desse drama familiar é tributário de certa dramaturgia televisiva. A filha bonitinha (Cláudia Abreu) rompe com os pais (Paulo Betti e Marieta Severo) quando estes aderem ao Conselheiro. Depois de virar prostituta, ela casa justamente com um soldado (Tuca Andrade) que luta contra os beatos.

O melodrama da família não se entrelaça propriamente à tragédia da guerra. São como duas narrativas distintas e acopladas. Nos momentos em que se tenta, a fórceps, juntar o plano histórico e o ficcional, o resultado soa artificial e forçado, como na cena em que o Conselheiro surge do nada e intervém na briga entre pai e filha, no meio do arraial. As motivações de Antonio Conselheiro, aliás, ficam num apagadíssimo segundo plano, com um José Wilker meio sonambúlico no papel-título, emperucado e mumificado como um personagem de Chico Anysio.

Tomados isoladamente, alguns planos, sobretudo da multidão no arraial de Canudos, são muito expressivos, graças principalmente à belíssima fotografia de Antônio Luís Mendes. A música de Edu Lobo, entretanto, parece exterior ao filme, o que contribui para a impressão geral de artificialismo. Com tudo isso, ''Guerra de Canudos'' merece ser visto, no mínimo, como uma introdução a um episódio incontornável da formação histórica brasileira. Se os estudantes forem assistir e depois se interessarem em ler ''Os Sertões'', de Euclides da Cunha, o esforço terá valido a pena. (por José Geraldo Couto)
 

   
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