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Ex-mulher de Castor rouba apartamento
Cúpula do bicho e das escolas de samba comparece a velório
AJB 12/04/97 19h46
Do Rio de Janeiro
A cena cabia perfeitamente em um dos três filmes da série "O poderoso chefão". Pouco depois da meia-noite, na quadra da Mocidade Independente de Padre Miguel, funcionários da funerária ainda ajeitavam flores no caixão de cerejeira de Castor de Andrade -chefe de todos os chefes da contravenção carioca falecido aos 71 anos na sexta. Paulo Andrade, filho de Castor, foi informado de que Ana Cristina Bastos Moreira, mãe dos dois filhos mais novos do contraventor, havia arrombado o cofre do apartamento do bicheiro, na avenida Atlântica, em Copacabana. Ana Cristina levou R$ 65 mil em dinheiro, jóias, relógios e documentos.
No pátio atrás da quadra e na rua Coronel Tamarino, onde fica a entrada
principal, uma fila de carros importados destoava diante das casas de tijolo
aparente e pequenas biroscas que vendiam cerveja gelada a R$ 1,50. Por volta
da 1h, dois jipes Cherokee pretos de vidro fumê, um Honda Accord preto, um
Mitsubishi Eclipse vermelho e um Mercedes azul marinho -símbolos da riqueza
construída pelas quadrilhas de jogo do bicho- estavam estacionados, um
perto do outro. Lá dentro, prestavam homenagens a Castor, entre outros, os
bicheiros Carlinhos Maracanã e Aílton Guimarães Jorge, o
"Capitão Guimarães", que agora passa a ser o novo "chefão" da contravenção.
Não houve comoção que tirasse o sangue frio de
Paulinho, como Paulo Andrade é conhecido no samba e no bicho, diante
da notícia de arrombamento do apartamento do pai. Celular minúsculo em
punho, o herdeiro do bicheiro comandou uma operação para intimidar
Ana Cristina Bastos Moreira, que chamou um chaveiro para ajudar a abrir o
cofre à força.
"Isso é crime. Se ela cometeu crime, registre queixa na delegacia",
determinou ao advogado Wilson Lopes dos Santos, que tinha chegado ao velório
havia pouco. Lá foi Wilson Lopes, velho amigo de Castor, para a 12ª DP, em
Copacabana, denunciar Ana Cristina por furto qualificado (artigo 155 do
Código Penal).
Paulinho, de 46 anos, que -como o pai e outros 12 bicheiros- foi
condenado em 1993 por formação de quadrilha (artigo 288 do Código
Penal), não quer perdão para Ana Cristina. "Não
imaginei que ela fosse capaz de fazer isso. Mas, se fez, agora tem que ser
processada. Eu não quis botar um segurança na porta da casa do meu
pai porque essa mulher ia fazer escândalo. Agora, olha o que aconteceu",
reclamava Paulo Andrade, indignado.
Passava das 4h e o filho de Castor conferia com Carlos Frederico Portela,
outro advogado da família, as providências que haviam sido tomadas. "Fique
aí, aguardando a perícia", orientou pelo celular, enquanto permanecia
sentado em uma cadeira, a poucos metros do caixão do pai. "Ela
não é mulher do meu pai. Ele nunca se separou de minha mãe e,
portanto, a Cristina não tem direito a nada. Só os filhos dela",
explicava Paulo, já prevendo futuras brigas com Ana Cristina por causa da
herança do bicheiro.
Dona Wilma, mulher de Castor, mãe de Paulo e de
Carmen Lúcia, estava na Ilha Grande e só chegaria para o enterro.
Depois de viverem juntos por mais de dez anos, Ana Cristina e Castor se
separaram quando o bicheiro estava preso. Há um ano, porém, depois de muitas
brigas e trocas de insultos, fizeram as pazes. "Eles não estavam
morando juntos, mas, de fato, reataram. Meu pai era muito apaixonado por
Cristina", contou Paulo Andrade, agora emocionado. Olhou para o pai no
caixão e brincou: "Ele era vaidoso. Está com a roupa que escolheu
para ser enterrado". Era um paletó tipo jaquetão cinza escuro, com
camisa azul clara e lenço estampado na lapela.
Apesar de ter que comandar as medidas contra Ana Cristina, Paulo recebeu com
simpatia e atenção os amigos e parentes que foram ao velório durante
a madrugada. Na verdade, eram bem poucos. Menos de 200 pessoas estiveram na
Mocidade para saudar Castor de Andrade durante a noite. Na madrugada, a
quadra parecia grande demais para a solenidade. "O pessoal vem mesmo de dia,
pouco antes do enterro", preparava-se o filho do bicheiro que virou mito na
Zona Oeste carioca, por causa das benfeitorias que promovia no bairro com o
dinheiro ganho com o jogo.
Castor construiu a igreja de Padre Miguel, patrocinou várias obras na quadra
da Mocidade, da qual era patrono, foi durante anos o mecenas do Bangu
Atlético Clube e cansou de emprestar dinheiro e arranjar emprego para os
moradores da comunidade de Vila Vintém. "Não vou esquecer nunca que o
doutor Castor me ajudou a terminar a obra da minha casa. Eu precisava de uma
injeção de grana e ele me deu", lembrava, choroso, José Carlos de
Oliveira, o Coé, há três anos mestre da bateria da Mocidade.
Se o dinheiro da casa veio do crime, não é problema para Coé. "Só
quero saber que ele era um homem muito bom e tenho meu canto do jeito que é
graças a ele", elogiou o mestre, dono de uma casa de sala, dois quartos e
cozinha na Travessa Santo Agostinho, a poucos metros do local onde o
bicheiro era velado.
Ao lado do caixão, Carlinhos Maracanã, patrono da Portela,
lembrou a última vez em que esteve com Castor. "Estávamos numa
situação péssima", foi só o que disse. A explicação: os dois
bicheiros se viram pela última vez no Fórum, há quatro anos, poucos dias
antes de a juíza Denise Frossard ler a sentença que condenou 14
contraventores -ente eles, Castor e Carlinhos- por formação de
quadrilha e bando armado.
José Carlos Monassa, o manda-chuva da campeã Unidos de Viradouro e
também bicheiro, que conseguiu escapar da condenação, lembrou que o
último encontro com Castor de Andrade não foi na melhor das
situações. "Foi na Polinter. Tenho essa lembrança dele preso", disse
Monassa. Já de manhã, chegou Aniz Abraão David, o
Anísio, bicheiro e patrono da Beija-Flor.
Dos integrantes da famosa lista de propinas do jogo do bicho, descoberta em
março de 1994, na fortaleza de Castor, em Bangu, apenas dois personagens: os
radialistas Washington Rodrigues e Cidinha Campos.
O mundo do samba, porém, foi bem mais fiel: bandeiras de várias escolas
enfeitavam os ferros que serviam de divisória, para o momento em que a
quadra ficasse tomada de admiradores, como esperava a família.
A porta-bandeira Selminha Sorriso levou a da Beija-Flor. Dodô da Portela,
primeira porta-bandeira da azul e branca, carregou e estendeu cuidadosamente
o símbolo de sua escola. Aos 77 anos, Dodô, que chegou pouco depois da
meia-noite, prometia ficar até a hora do enterro, no fim da tarde.
"Não vou deixar a bandeira da Portela sozinha. Vou olhar para ela,
cuidar e depois que acabar tudo levar para casa", prometeu. Cansaço? Muito
menos do que o de jovens como o casal de porta-bandeira e mestre-sala da
Mocidade, Lucinha e Rogério, que também fizeram vigília durante a noite
inteira. Às 6h, Dodô continuava sentadinha em uma cadeira, vez ou outra
cochilando, mas atento aos mínimos ruídos.
Às 4h50, uma surpresa assustou os poucos amigos e muitos seguranças -pelo
menos 20, da Mocidade e da guarda pessoal de Paulo Andrade e sua mulher,
Beth- que estavam na quadra. Faltou luz. Ainda estava escuro lá fora e os
únicos objetos acesos eram as quatro velas, uma em cada ponta do
caixão. Foi tenebroso. Ninguém falou nada durante quase meia hora,
quando finalmente voltou a luz. Nem os parrudos seguranças abriam a boca.
Àquela altura, só quem falava era José Pedro Cardoso, um bêbado conhecido na
área. Na porta da quadra, José Pedro repetia um discurso constrangedor. "Ele
não está morto, não, está só dormindo. Era meu padrinho, meu
padrinho. Tinha gente que queria que morresse de tiro, de tiro. Mas
não. Tá só dormindo. Dormindo".
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