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ISAIAS RAW Em defesa da razão
Estou chegando aos 70
anos. Minha geração assistiu a mais revoluçöes científicas,
tecnológicas e sociais do que todas as geraçöes
anteriores. Com essa experiência de vida, preocupa-me o
que estamos deixando para os nossos netos: um mundo onde
as pessoas desconfiam dos cientistas e se entregam às
crendices. Um mundo de violência, injustiça e
desencanto, que abre espaço para a exploração do
desespero da população. Durante décadas, lutei
desesperadamente para trazer racionalidade às geraçöes
que me sucederiam, acreditando na ciência e em suas
conquistas. A caminhada do homem na Lua, as fotos dos
planetas distantes, os computadores, a televisão direta
dos satélites, as vacinas que eliminaram da face da
Terra a varíola e a poliomielite, os remédios
desenhados em computadores que curam o câncer quando
detectado a tempo, os transplantes de coração e rins, a
biotecnologia gerando plantas mais resistentes e mais
produtivas, que liquidaram com a profecia de Malthus,
afastando o perigo da fome universal. E, apesar disso, o
que colhemos? Uma geração de crédulos sem capacidade
crítica. Até mesmo pessoas que seguiram carreira técnico-científica
não entendem a racionalidade da ciência. Consomem toneladas
de pseudomedicamentos sem nenhum efeito positivo para o organismo.
Engolem comprimidos de vitaminas que serão eliminadas na urina.
Consomem extratos de plantas com substâncias tóxicas e abandonam
o tratamento médico. Gastam fortunas com diferentes
marcas de xampu que contêm sempre o mesmo detergente mas
anunciam "alimentos" para os cabelos, quando
estes recebem nutrientes diretamente do sangue que irriga
suas raízes. Há os que untam o rosto com colágeno - geléia
de mocotó - e ovos e acham que estão rejuvenescendo.
Fui professor de colégio e de faculdade de medicina.
Fiz pesquisas, formei uma dúzia de discípulos que hoje
pesquisam, são professores universitários e já criaram
meia centena de meus netos intelectuais. Na universidade, desenvolvi
um novo modelo de ensino médico. Revolucionei o ensino
das ciências nas escolas e improvisei na televisão o
primeiro programa de ensino de ciência. Produzimos novos
livros substituindo totalmente o conteúdo do ensino. Por
tudo isso, fico pasmado ao ver que, às portas do ano
2000, as pessoas lêem horóscopos sem jamais comparar as
previsöes da véspera com o que realmente aconteceu.
Desconfiam dos cientistas, mas acreditam nas cartomantes,
que prevêem o óbvio. Formamos uma geração de
pseudo-educados, que querem ser enganados nas farmácias, pelos
curandeiros que enfiam agulhas em seus pés e manipulam
sua coluna, pelos ufologistas, que vêem extraterrestres
chegar e sair sem ser detectados pelos radares. Uma
geração que se deixa levar por benzedeiras e charlatães
com suas poçöes, por anúncios desonestos na televisão
e por pregadores a quem entregam parte do salário. Saem
as descobertas e as experiências científicas e entram
os duendes, anjos e bruxos.
Mas nem tudo está perdido. Ainda há quem encontre
motivação para se guiar pelo racionalismo e pela
ciência - e para mudar. E há muito que fazer. É
preciso combater o irracionalismo e as mistificaçöes,
onde quer que eles se manifestem: na televisão, nos
locais de trabalho, nas faculdades. Podemos começar pela
educação. Hoje, as pessoas passam um terço da vida nas
salas de aula sem aprender e ninguém se importa. Criamos
robôs que nos permitem ter uma produção cada vez maior
de bens, mas ficamos prisioneiros de uma sociedade cada
vez menos justa. Numa sociedade em que a ciência
expandiu a longevidade do homem, não oferecemos à
maioria da população segurança física nem acesso ao
que a medicina moderna pode oferecer - nem mesmo a
garantia de teto e comida. Enfim, criamos um campo
propício para a proliferação dos enganadores. Está na
hora de quebrar a insensibilidade dos governos e das
lideranças para tentar corrigir isso. Não será nos
entregando à irracionalidade que sairemos desse buraco e
construiremos um futuro melhor para os nossos netos.
Isaias Raw é diretor do Instituto Butantan, em
São Paulo
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