CINGAPURA 2


Família mora dentro de ponte

Seis crianças e oito adultos vivem há cerca de um mês na ponte Bernardo Goldfarb, sobre o Pinheiros

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 12 de janeiro de 1996

ROGERIO WASSERMANN
Da Reportagem Local

Quem circula diariamente pela ponte Bernardo Goldfarb, em Pinheiros (zona oeste de São Paulo), não imagina que está passando com a roda de seu carro apenas um palmo acima de uma ''casa'' onde vivem 14 pessoas.
Cícera Raimunda da Silva, 42, mora há cerca de um mês em um vão, literalmente dentro da ponte. Moram com ela cinco filhos, uma nora, um genro, dois sobrinhos e quatro netos.
O ''apartamento'' da família de Cícera tem cerca de 18 metros de comprimento, 4 de largura e 1,5 metro de altura.
A entrada, que é também a única janela, é uma circunferência com cerca de quatro palmos de diâmetro, servida por uma escada de madeira com seis degraus.
A porta é uma tampa de ferro que a família abriu quando chegou a São Paulo, vindos de Campinas (99 km a noroeste de SP), há pouco mais de um mês.
Dentro do vão, pedaços de carpete forram o chão, onde dormem os 14 membros da família. Malas e sacolas de roupas dividem o espaço com um pequeno fogão de duas bocas e uma televisão branco e preto, que funciona à bateria.
Um pequeno lampião é aceso à noite, para evitar a escuridão. Para tomar banho, eles utilizam o ''método da canequinha'', ao lado da ponte, protegidos dos olhares curiosos por uma tábua de madeira.
De sua moradia, a família tem poucas queixas. Quando um dos 440 ônibus ou dez caminhões que passam por hora pela ponte atravessa o seu ''telhado'', a casa balança. ''Treme tudo'', diz Cícera. Assim mesmo, eles dizem que o barulho não chega a atrapalhar o sono. De acordo com a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), passam ainda pela ponte 1.689 carros por hora no pico do tráfego pela manhã, das 7h às 9h.
Os ''vizinhos'' são outro problema. De vez em quando, alguns mendigos embriagados vêm dormir embaixo da ponte, logo abaixo da entrada do vão. ''Eles tentam entrar aqui e ficam tirando sarro da nossa cara'', diz o filho de Cícera.
A família diz que a estadia na ponte deve ser curta. Eles estão tentando arrumar dinheiro para voltar para Mossoró (RN), de onde saíram há um ano e meio e onde ainda vivem a mãe e nove irmãos de Cícera. Ela diz que pretende passar o Carnaval no Rio Grande do Norte (leia abaixo).
O que a família mais teme hoje é sofrer um despejo. ''Não atrapalhamos ninguém aqui. Todo dia varremos a calçada e não bagunçamos nada, para ninguém ter do que reclamar'', afirma Cícera.

Esperança é voltar para o RN

Da Reportagem Local

Cícera Raimunda da Silva diz que pretende sair de dentro da ponte quando conseguir dinheiro para comprar passagens para a sua família voltar para Mossoró (RN), sua terra natal, de onde saíram há um ano e meio.
Pelas suas contas, são necessários R$ 945,00 para comprar as nove passagens de que necessita.
Os filhos e os sobrinhos de Cícera trabalham vendendo doces em ônibus. Conseguem até R$ 40 por dia. Calculam que até o final do mês terão juntado todo o dinheiro.
Antes de chegar a São Paulo, a família passou por São José dos Campos (97 km a nordeste de SP) e Campinas (99 km a noroeste de SP), de onde guardam más lembranças.
''Nós morávamos em uma favela, e um matador que morava lá queria namorar minha irmã à força. Ele ameaçou nos matar se não conseguisse e tivemos que fugir'', conta Francisco Tertulino da Silva, 18, um dos filhos de Cícera.
Por causa dessa experiência, a família de Cícera rejeita a idéia de voltar a morar em uma favela. ''Preferimos ficar aqui, onde não incomodamos ninguém e ninguém nos incomoda'', afirma outro dos filhos de Cícera, Raimundo Nonato da Silva, 24.
Raimundo tem uma filha de três anos e a mulher, de 17, está grávida de ''sete ou oito meses''. Ele diz ter esperanças de conseguir voltar para o Rio Grande do Norte antes do nascimento do filho.
''Quero voltar porque lá pelo menos tinha emprego, trabalhava na colheita do caju em uma empresa que faz suco. Pensamos que aqui era melhor, mas nos enganamos'', diz Cícera.

© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.