FERNANDO DE BARROS E SILVA
Enviado especial a Ibiúna
"Fizemos tudo isso para quê? Prendemos os estudantes,
lutamos, defendemos a revolução (movimento militar
de 64) e o Brasil está assim, desse jeito. A turma do Zé
Dirceu é que estava certa. Hoje eu não acredito em
mais nada". É assim que o delegado José Paulo
Bonchristiano, 63, avalia hoje o ano de 68, quando pertencia ao
Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Ele foi o
responsável pela operação que, no dia 12 de
outubro de 1968, dissolveu o 30.º Congresso da União
Nacional dos Estudantes (UNE), então ilegal, e prendeu cerca
de 700 estudantes no sítio de Murundu, a 15 km de Ibiúna
(70 km a Oeste de São Paulo).
Na última sexta-feira, depois de 25 anos, Bonchristiano,
aposentado desde 84, voltou pela primeira vez ao local. Foi no Santana
do deputado José Dirceu (PT-SP), acompanhado pela reportagem
da Folha. Quando estiveram juntos pela última vez, lembra
José Dirceu, foi Bonchristiano quem lhe "deu carona".
Ao lado de Vladimir Palmeira (hoje líder do PT na Câmara
dos Deputados) e Luís Travassos (então presidente
da UNE), Dirceu foi levado pelo delegado numa perua rural Willys
para a sede do Dops, em São Paulo. Preso, de lá só
sairia 11 meses depois para o exílio e a clandestinidade.
Cacete e bala
Ao chegar no sítio, Bonchristiano relembra os detalhes da
invasão. "Chegamos a pé e de carroça.
Ninguém passava de carro por causa da lama. Cercamos o vale,
demos uns tiros para o alto e todos se renderam. Foi umas das operações
mais bem sucedidas que fiz na vida. Disso eu me orgulho".
Chamado na época pelos colegas de "Cacete e Bala"
devido à fama de linha-dura, Bonchristiano fez
então jus ao apelido. Conforme prendia os estudantes, ia
distribuindo balas, mas de açucar, a cada um deles. "Nós
estávamos preparados para enfrentar gente armada, guerrilheiros
perigosos. Quando vimos, era um bando de adolescentes com frio,
amarelos, passando fome, sem a menor chance de resistir", lembra
o delegado do Dops.
Lama e sectarismo
A versão de José Dirceu vai no mesmo sentido. "Sem
chuva, o local já seria inadequado. Havia chovido 30 dias
sem parar e a coisa ficou insuportável. A gente dormia na
lama, as meninas passavam mal, várias chegaram a desmaiar",
lembra o deputado. Não havia como tomar banho, os banheiros
eram improvisados e faltavam mantimentos aos estudantes. "Se
pudesse voltar no tempo, não faria o congresso em Ibiúna.
Arriscaria fazer no Crusp (Centro Residencial da USP)", avalia
Dirceu.
Além das adversidades naturaia, o clima de sectarismo que
dominava o 30.º Congresso da UNE contribuiu de forma decisiva
para o seu fracasso. De Ibiúna deveria sair o novo presidente
da entidade, substituindo Luís Travassos ligado à
tendência do movimento estudantil Ação Popular
(AP). Os candidatos eram três: José Dirceu, apoiado
por Vladimir Palmeira e ligado ao grupo chamado Dissidência;
Jean-Marc van der Weid, apoiado por Travassos; e Marcos Medeiros,
do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, o PCBR.
Na madrugada de sexta para sábado, chegou aos estudantes
a informação de que estavam cercados e seriam presos
na manhã do dia seguinte. "O grupo do Travassos viu
nisso uma manobra política", diz José Dirceu.
"Eles estavam perdendo as eleições e queriam
tempo para reverter a situação. Pensavam que a história
da polícia era um golpe para que saísse vitorioso".
Não era.
O "delator"
O folclore que cerca o 30.º Congresso da UNE produziu várias
versões sobre as razões da descoberta dos estudantes
pela polícia. "Diziam que a gente ia sem parar à
cidade para comprar pinga, cobertores, travesseiros. Há muito
exagero nisso", diz José Dirceu.
O congresso foi descoberto, segundo ele, quando o lavrador Miguel
Goes foi ao sítio do Murundu cobrar a dívida de um
saco de milho. Ao chegar, Goes foi preso pelos estudantes, que o
soltaram dois dias depois, no dia 1.º de outubro. "Foi
ele quem avisou o delegado de Ibiúna". diz Dirceu.
"É verdade. A polícia só funciona assim,
na base de caguetagem", confirma o delegado Bonchristiano.
"Até recebermos essa informação, estávamos
procurando eles na região de Vinhedo (85 km a Noroeste de
São Paulo)".
O fracasso do 30.º Congresso da UNE foi a gota que faltava
para emprurrar os estudantes da clandestinidade para a ilegalidade.
Depois dessa data, lembra José Dirceu, a ordem era entrar
para a luta armada e organizar a guerrilha contra o regime militar.
Do sectarismo ao ensandecimento, foi um passo.
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