DELEGADO FAZ AUTOCRÍTICA DE PRISÕES EM 68

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 12 de outubro de 1993

José Paulo Bonchristiano retorna a Ibiúna 25 anos após ter chefiado ação policial que dissolveu reunião estudantil

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Enviado especial a Ibiúna

"Fizemos tudo isso para quê? Prendemos os estudantes, lutamos, defendemos a revolução (movimento militar de 64) e o Brasil está assim, desse jeito. A turma do Zé Dirceu é que estava certa. Hoje eu não acredito em mais nada". É assim que o delegado José Paulo Bonchristiano, 63, avalia hoje o ano de 68, quando pertencia ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Ele foi o responsável pela operação que, no dia 12 de outubro de 1968, dissolveu o 30.º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), então ilegal, e prendeu cerca de 700 estudantes no sítio de Murundu, a 15 km de Ibiúna (70 km a Oeste de São Paulo).
Na última sexta-feira, depois de 25 anos, Bonchristiano, aposentado desde 84, voltou pela primeira vez ao local. Foi no Santana do deputado José Dirceu (PT-SP), acompanhado pela reportagem da Folha. Quando estiveram juntos pela última vez, lembra José Dirceu, foi Bonchristiano quem lhe "deu carona". Ao lado de Vladimir Palmeira (hoje líder do PT na Câmara dos Deputados) e Luís Travassos (então presidente da UNE), Dirceu foi levado pelo delegado numa perua rural Willys para a sede do Dops, em São Paulo. Preso, de lá só sairia 11 meses depois para o exílio e a clandestinidade.
Cacete e bala
Ao chegar no sítio, Bonchristiano relembra os detalhes da invasão. "Chegamos a pé e de carroça. Ninguém passava de carro por causa da lama. Cercamos o vale, demos uns tiros para o alto e todos se renderam. Foi umas das operações mais bem sucedidas que fiz na vida. Disso eu me orgulho".
Chamado na época pelos colegas de "Cacete e Bala" –devido à fama de linha-dura–, Bonchristiano fez então jus ao apelido. Conforme prendia os estudantes, ia distribuindo balas, mas de açucar, a cada um deles. "Nós estávamos preparados para enfrentar gente armada, guerrilheiros perigosos. Quando vimos, era um bando de adolescentes com frio, amarelos, passando fome, sem a menor chance de resistir", lembra o delegado do Dops.
Lama e sectarismo
A versão de José Dirceu vai no mesmo sentido. "Sem chuva, o local já seria inadequado. Havia chovido 30 dias sem parar e a coisa ficou insuportável. A gente dormia na lama, as meninas passavam mal, várias chegaram a desmaiar", lembra o deputado. Não havia como tomar banho, os banheiros eram improvisados e faltavam mantimentos aos estudantes. "Se pudesse voltar no tempo, não faria o congresso em Ibiúna. Arriscaria fazer no Crusp (Centro Residencial da USP)", avalia Dirceu.
Além das adversidades naturaia, o clima de sectarismo que dominava o 30.º Congresso da UNE contribuiu de forma decisiva para o seu fracasso. De Ibiúna deveria sair o novo presidente da entidade, substituindo Luís Travassos –ligado à tendência do movimento estudantil Ação Popular (AP). Os candidatos eram três: José Dirceu, apoiado por Vladimir Palmeira e ligado ao grupo chamado Dissidência; Jean-Marc van der Weid, apoiado por Travassos; e Marcos Medeiros, do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, o PCBR.
Na madrugada de sexta para sábado, chegou aos estudantes a informação de que estavam cercados e seriam presos na manhã do dia seguinte. "O grupo do Travassos viu nisso uma manobra política", diz José Dirceu. "Eles estavam perdendo as eleições e queriam tempo para reverter a situação. Pensavam que a história da polícia era um golpe para que saísse vitorioso". Não era.
O "delator"
O folclore que cerca o 30.º Congresso da UNE produziu várias versões sobre as razões da descoberta dos estudantes pela polícia. "Diziam que a gente ia sem parar à cidade para comprar pinga, cobertores, travesseiros. Há muito exagero nisso", diz José Dirceu.
O congresso foi descoberto, segundo ele, quando o lavrador Miguel Goes foi ao sítio do Murundu cobrar a dívida de um saco de milho. Ao chegar, Goes foi preso pelos estudantes, que o soltaram dois dias depois, no dia 1.º de outubro. "Foi ele quem avisou o delegado de Ibiúna". diz Dirceu.
"É verdade. A polícia só funciona assim, na base de caguetagem", confirma o delegado Bonchristiano. "Até recebermos essa informação, estávamos procurando eles na região de Vinhedo (85 km a Noroeste de São Paulo)".
O fracasso do 30.º Congresso da UNE foi a gota que faltava para emprurrar os estudantes da clandestinidade para a ilegalidade. Depois dessa data, lembra José Dirceu, a ordem era entrar para a luta armada e organizar a guerrilha contra o regime militar. Do sectarismo ao ensandecimento, foi um passo.

© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.