REGIME DE 64 SONHOU CAPITALISMO SEM RISCOS


Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 1º de abril de 1994

Governos militares introduziram um sistema de crescimento econômico à força com o movimento de 31 de março

MARCELO COELHO
Da Equipe de Articulistas

Fazer um balanço do regime militar, 30 anos depois de sua instauração e quase dez depois de seu colapso, é uma tarefa complicada.
Há mesmo algo de suspeito nesse termo, "balanço". Como se fosse possível, numa avaliação equilibrada, pesar os "prós" e os "contras" do movimento.
É assim que, no ambiente conciliador em que vivemos, diz-se que, "por um lado", houve autoritarismo, mas "por outro lado" crescimento econômico.
Esse tom isento com que se fala de 64 é enganoso.
Não há "prós" num regime que torturou, prendeu e assassinou seus adversários. A violência e a estupidez dos governos militares refuta qualquer esforço de indulgência histórica.
Foi um período infame e odioso, e isso basta.
Sim, houve crescimento econômico. Mas o decisivo, no caso, não é medir o quanto o PIB aumentou, quantos quilômetros de rodovias se construíram, quantos megawatts de energia se geraram. Stalin fez muita coisa na URSS.
O problema é que esse crescimento econômico não foi um crescimento econômico qualquer. Foi um de tipo determinado. Foi um crescimento econômico com autoritarismo, repressão política e exclusão social.
Diz-se, agora, que o movimento de 64 modernizou a infra-estrutura econômica do país. Nada tão sintomático do uso fácil que a palavra "modernização" tem hoje em dia.
Modernizou, sim, mas em que sentido? Não no sentido dos investimentos em educação básica, que nos tornasse preparados para o século 21. Não no sentido de diminuir as desigualdades sociais.
Hoje dispomos, por exemplo, dos mais "modernos" equipamentos para evitar roubo de carros, portarias eletrônicas nos prédios de apartamento, e de antenas de TV no mais miserável barraco de favela.
Quero dizer com isso que "crescimento econômico" e "modernização" não são termos neutros, que reflitam realidades automaticamente positivas. Há crescimentos e crescimentos, há modelos e modelos de desenvolvimento, e cada qual decorre de opções políticas.
O crescimento promovido pelo regime de 64 resultou de um projeto político claro. Estava em jogo: 1) acabar com as pressões para maior distribuição de renda; 2) impedir a reforma agrária; 3) dar segurança a condições de investimento às empresas multinacionais; 4) atender às pressões corporativas e devaneios de Brasil-potência dos próprios militares, com programa nuclear, transamazônicas e estatais de todo tipo; 5) assegurar um sistema de favorecimento político e econômico, do qual se beneficiariam empresários privados e membros do governo.
Foi, definitivamente, o sonho do capitalismo sem risco. Sem risco de oposição política, sem risco de greve, sem risco de concorrência, sem risco de reforma agrária, sem risco de falência (isto, nos anos 70).
Não admira que o país tenha crescido economicamente. Não admira, também, que o crescimento econômico tenha sido do jeito que foi.
O curioso, nos dias atuais, é que todos os promotores do modelo econômico vigente em 64, ou a partir de 68, sejam críticos do estatismo das esquerdas, do capitalismo sem concorrência, do corporativismo geral...
É como se Lula e Brizola tivessem assumido o poder em 64.
Certamente, dentro do regime militar houve divergências entre modelos liberais e estaticizante. O fato é que essas divergências foram minimizadas na prática, em torno de um bloco sacrossanto contra as esquerdas, sob o notável apoio de arenistas, depois pedessistas, que hoje enunciam seu ponto de vista moderno contra os retrógrados do PT.
Assiste-me, então, a uma irônica, e talvez bem brasileira, troca de posições. Parte considerável da esquerda defendendo o patrimônio, ou a herança, das empresas construídas durante o regime militar, e os adeptos da ditadura assumindo candidamente o papel de democratas e liberais.
O fenômeno é talvez muito complexo para analisar aqui. Há que considerar, por exemplo, a base de organização que os partidos de esquerda têm no funcionalismo público. Mas este é um aspecto menor.
O mais importante exige algum espaço para explicar.
O regime de 64, quando surgiu, parecia um mero golpe americanófilo para barrar o avanço do comunismo e impedir os sonhos nacionalistas de crescimento independente acalentados pela esquerda no período anterior.
Mas o projeto desenvolvimentista terminou sendo incorporado pelos militantes. Repetiram as ambições de Vargas e JK. Talvez não tivessem outra saída. Sem reforma agrária e redistribuição de renda, a única forma de escape para as tensões sociais e a desigualdade era prometer, num ambiente de elevadas taxas de crescimento, oportunidade para todos –para o filho do pequeno comerciante cursar uma faculdade particular, para o sujeito enriquecer montando um negócio, para que novos empregos surgissem, absorvendo o migrante nordestino.
Isso dera, ao governo JK, razoável estabilidade política sem que fosse necessário mudar o regime de propriedade da terra, sem que se precisasse mexer com oligarquias rurais ou brigar muito com sindicatos.
Para reproduzir esse estado de coisas, os governos militares introduziram um sistema de crescimento econômico à força. À força no sentido literal, dando oportunidades paradisíacas ao empresário, e à força no sentido da artificialidade do processo: aproveitando-se de grandes empréstimos de capital externo.
Até que a situação internacional desandou, a "ilha de prosperidade" de que falava o presidente Geisel teve de se curvar à alta dos juros e à crise do petróleo.
Se o regime militar estava com os dias contados a partir de 1979, ocorria algo interessante no campo das oposições.
É que, naturalmente, a reivindicação de liberdade política, de direito ao voto e à greve, assumia o primeiro plano. A campanha pelas diretas, a greve no ABC, até a sunga de Gabeira e a luta pela liberação do filme "O Último Tango em Paris", referiam-se fundamentalmente à reivindicação de se "poder fazer alguma coisa".
Não se referiam muito claramente, por exemplo, a uma "volta" aos tempos de Goulart, ou a um projeto social alternativo. Nem havia suficiente discussão para isso.
Antes de 64, idéias de desenvolvimento, de crescimento, de grandeza nacional eram defendidas pela esquerda. Com Médici, o ufanismo ou qualquer versão moderada desse estado de espírito foi tomado pela direita. A esquerda criticava, e muito, o poder das multinacionais, etc. Mas o tônus, o estado de espírito "Brasil que vai pra frente", tornou-se direitista.
A esquerda, desde o tropicalismo, insistiu na realidade subdesenvolvida. Era uma forma de crítica.
O resultado é que, durante a "abertura", a luta pelos direitos políticos foi muito mais institucional do que reflexo de um projeto econômico. Não à toa, foi o tempo dos bacharéis em direito tomarem a palavra.
Enquanto isso, a vitória contra o regime militar se conjugava com a crise final do sistema soviético, com a ascensão de Thatcher, Reagan e João Paulo 2º.
O neoliberalismo assumiu-se como a última palavra da "modernidade". Novamente, idéias como redistribuição de renda, reforma agrária, etc., foram estigmatizadas. A direita pôde assumir, no Brasil, o mesmo lugar que ocupou durante o regime de 64, sem precisar de tanques e concessões à Nuclebrás e outras estatais. A esquerda ficou no "contrapé" à medida mesma que a democracia se reinstaurava.
O resultado é que se criou um impasse ideológico, só na aparência superado pelas caricaturas eleitorais. O "moderno" e "liberalizante" Collor fazendo do Estado instrumento de favores para seus cupinchas e familiares. Lula, surgindo como o "estatista" e "xenófobo", uma vez que manietado para apresentar outro projeto econômico além do legado populista. Fernando Henrique, precisando como sempre se precisou das oligarquias nordestinas.
O legado de 64 é coisa difícil de avaliar. Muitos fatores intervieram, no plano internacional, para se saber o que é de responsabilidade própria do regime. O quanto a crise atual é resquício de Médici e Geisel, o quanto é culpa de Sarney e Itamar, eis um problema complicadíssimo.
Mas que não venham com "balanços". Aquilo foi uma tremenda e odiosa estupidez.


© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.