MARCELO COELHO
Da Equipe de Articulistas
Fazer um balanço do regime militar, 30 anos depois de sua
instauração e quase dez depois de seu colapso, é
uma tarefa complicada.
Há mesmo algo de suspeito nesse termo, "balanço".
Como se fosse possível, numa avaliação equilibrada,
pesar os "prós" e os "contras" do movimento.
É assim que, no ambiente conciliador em que vivemos, diz-se
que, "por um lado", houve autoritarismo, mas "por
outro lado" crescimento econômico.
Esse tom isento com que se fala de 64 é enganoso.
Não há "prós" num regime que torturou,
prendeu e assassinou seus adversários. A violência
e a estupidez dos governos militares refuta qualquer esforço
de indulgência histórica.
Foi um período infame e odioso, e isso basta.
Sim, houve crescimento econômico. Mas o decisivo, no caso,
não é medir o quanto o PIB aumentou, quantos quilômetros
de rodovias se construíram, quantos megawatts de energia
se geraram. Stalin fez muita coisa na URSS.
O problema é que esse crescimento econômico não
foi um crescimento econômico qualquer. Foi um de tipo determinado.
Foi um crescimento econômico com autoritarismo, repressão
política e exclusão social.
Diz-se, agora, que o movimento de 64 modernizou a infra-estrutura
econômica do país. Nada tão sintomático
do uso fácil que a palavra "modernização"
tem hoje em dia.
Modernizou, sim, mas em que sentido? Não no sentido dos
investimentos em educação básica, que nos
tornasse preparados para o século 21. Não no sentido
de diminuir as desigualdades sociais.
Hoje dispomos, por exemplo, dos mais "modernos" equipamentos
para evitar roubo de carros, portarias eletrônicas nos prédios
de apartamento, e de antenas de TV no mais miserável barraco
de favela.
Quero dizer com isso que "crescimento econômico"
e "modernização" não são
termos neutros, que reflitam realidades automaticamente positivas.
Há crescimentos e crescimentos, há modelos e modelos
de desenvolvimento, e cada qual decorre de opções
políticas.
O crescimento promovido pelo regime de 64 resultou de um projeto
político claro. Estava em jogo: 1) acabar com as pressões
para maior distribuição de renda; 2) impedir a reforma
agrária; 3) dar segurança a condições
de investimento às empresas multinacionais; 4) atender
às pressões corporativas e devaneios de Brasil-potência
dos próprios militares, com programa nuclear, transamazônicas
e estatais de todo tipo; 5) assegurar um sistema de favorecimento
político e econômico, do qual se beneficiariam empresários
privados e membros do governo.
Foi, definitivamente, o sonho do capitalismo sem risco. Sem risco
de oposição política, sem risco de greve,
sem risco de concorrência, sem risco de reforma agrária,
sem risco de falência (isto, nos anos 70).
Não admira que o país tenha crescido economicamente.
Não admira, também, que o crescimento econômico
tenha sido do jeito que foi.
O curioso, nos dias atuais, é que todos os promotores do
modelo econômico vigente em 64, ou a partir de 68, sejam
críticos do estatismo das esquerdas, do capitalismo sem
concorrência, do corporativismo geral...
É como se Lula e Brizola tivessem assumido o poder em 64.
Certamente, dentro do regime militar houve divergências
entre modelos liberais e estaticizante. O fato é que essas
divergências foram minimizadas na prática, em torno
de um bloco sacrossanto contra as esquerdas, sob o notável
apoio de arenistas, depois pedessistas, que hoje enunciam seu
ponto de vista moderno contra os retrógrados do PT.
Assiste-me, então, a uma irônica, e talvez bem brasileira,
troca de posições. Parte considerável da
esquerda defendendo o patrimônio, ou a herança, das
empresas construídas durante o regime militar, e os adeptos
da ditadura assumindo candidamente o papel de democratas e liberais.
O fenômeno é talvez muito complexo para analisar
aqui. Há que considerar, por exemplo, a base de organização
que os partidos de esquerda têm no funcionalismo público.
Mas este é um aspecto menor.
O mais importante exige algum espaço para explicar.
O regime de 64, quando surgiu, parecia um mero golpe americanófilo
para barrar o avanço do comunismo e impedir os sonhos nacionalistas
de crescimento independente acalentados pela esquerda no período
anterior.
Mas o projeto desenvolvimentista terminou sendo incorporado pelos
militantes. Repetiram as ambições de Vargas e JK.
Talvez não tivessem outra saída. Sem reforma agrária
e redistribuição de renda, a única forma
de escape para as tensões sociais e a desigualdade era
prometer, num ambiente de elevadas taxas de crescimento, oportunidade
para todos para o filho do pequeno comerciante cursar uma
faculdade particular, para o sujeito enriquecer montando um negócio,
para que novos empregos surgissem, absorvendo o migrante nordestino.
Isso dera, ao governo JK, razoável estabilidade política
sem que fosse necessário mudar o regime de propriedade
da terra, sem que se precisasse mexer com oligarquias rurais ou
brigar muito com sindicatos.
Para reproduzir esse estado de coisas, os governos militares introduziram
um sistema de crescimento econômico à força.
À força no sentido literal, dando oportunidades
paradisíacas ao empresário, e à força
no sentido da artificialidade do processo: aproveitando-se de
grandes empréstimos de capital externo.
Até que a situação internacional desandou,
a "ilha de prosperidade" de que falava o presidente
Geisel teve de se curvar à alta dos juros e à crise
do petróleo.
Se o regime militar estava com os dias contados a partir de 1979,
ocorria algo interessante no campo das oposições.
É que, naturalmente, a reivindicação de liberdade
política, de direito ao voto e à greve, assumia
o primeiro plano. A campanha pelas diretas, a greve no ABC, até
a sunga de Gabeira e a luta pela liberação do filme
"O Último Tango em Paris", referiam-se fundamentalmente
à reivindicação de se "poder fazer alguma
coisa".
Não se referiam muito claramente, por exemplo, a uma "volta"
aos tempos de Goulart, ou a um projeto social alternativo. Nem
havia suficiente discussão para isso.
Antes de 64, idéias de desenvolvimento, de crescimento,
de grandeza nacional eram defendidas pela esquerda. Com Médici,
o ufanismo ou qualquer versão moderada desse estado de
espírito foi tomado pela direita. A esquerda criticava,
e muito, o poder das multinacionais, etc. Mas o tônus, o
estado de espírito "Brasil que vai pra frente",
tornou-se direitista.
A esquerda, desde o tropicalismo, insistiu na realidade subdesenvolvida.
Era uma forma de crítica.
O resultado é que, durante a "abertura", a luta
pelos direitos políticos foi muito mais institucional do
que reflexo de um projeto econômico. Não à
toa, foi o tempo dos bacharéis em direito tomarem a palavra.
Enquanto isso, a vitória contra o regime militar se conjugava
com a crise final do sistema soviético, com a ascensão
de Thatcher, Reagan e João Paulo 2º.
O neoliberalismo assumiu-se como a última palavra da "modernidade".
Novamente, idéias como redistribuição de
renda, reforma agrária, etc., foram estigmatizadas. A direita
pôde assumir, no Brasil, o mesmo lugar que ocupou durante
o regime de 64, sem precisar de tanques e concessões à
Nuclebrás e outras estatais. A esquerda ficou no "contrapé"
à medida mesma que a democracia se reinstaurava.
O resultado é que se criou um impasse ideológico,
só na aparência superado pelas caricaturas eleitorais.
O "moderno" e "liberalizante" Collor fazendo
do Estado instrumento de favores para seus cupinchas e familiares.
Lula, surgindo como o "estatista" e "xenófobo",
uma vez que manietado para apresentar outro projeto econômico
além do legado populista. Fernando Henrique, precisando
como sempre se precisou das oligarquias nordestinas.
O legado de 64 é coisa difícil de avaliar. Muitos
fatores intervieram, no plano internacional, para se saber o que
é de responsabilidade própria do regime. O quanto
a crise atual é resquício de Médici e Geisel,
o quanto é culpa de Sarney e Itamar, eis um problema complicadíssimo.
Mas que não venham com "balanços". Aquilo
foi uma tremenda e odiosa estupidez.