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A Igreja Católica enfrenta um terrível desafio. Precisa
disputar a hegemonia cultural e espiritual entre dois mundos que
ameaçam a sua existência e sobrevivência. O capital
comercializa a fé e a converte em uma fonte de lucro. Mas
dilacera as bases morais e religiosas da fé. O movimento
socialista e comunista superou várias superstições:
mas a sua principal tendência não pode abrir mão
de sua filosofia histórica materialista. Uma convivência
tornou-se possível, mas os dois lados precisariam superar-se
para conviver criativamente. Uma revolução ecumênica
forjou as bases de um entendimento. Outrossim, a barbárie
gerada pela civilização da época do capitalismo
monopolista, em sua forma mais avançada, jogou nas mesmas
masmorras cristãos e libertários, católicos
e comunistas. Tornou-se possível, pois, a superação,
a defesa da humanidade como um valor absoluto e primordial. A condição
para que essa superação se convertesse em processo
histórico permanente consistia em que a Igreja Católica
se descolasse do seu útero materno, um sistema universal
e autocrático de pompa, riqueza e poder. Isso lançaria
a Igreja Católica adiante de todas as forças culturais
e políticas, que pretendem engendrar o novo homem e a nova
sociedade. No entanto, com o correr do tempo o tradicionalismo e
o conservantismo se recompuseram, restabeleceram os centros e os
nervos do antigo sistema absolutista e autocrático de poder,
e anularam os papéis pastorais do sacerdote e dos núcleos
de base. Nunca o papa representou tão centralizadamente a
onisciência e a onipotência, destroçando por
completo as perspectivas de uma teologia democrática, unificadora
e de comunhão fraternal dos "homens de boa vontade",
católicos ou não.
Esse processo histórico já foi investigado por vários
tipos de especialistas. O fato é que Roma voltou a brilhar
como a corte do dignitário mais poderoso do universo e a
Europa reconquistou a condição de espaço privilegiado
do poder institucional da Igreja Católica. A periferia é
um celeiro de fiéis, de cérebros, de riqueza e do
poder de um vasto império, que passa a valer cada vez menos,
à medida em que a "restauração" atinge
o seu auge. Como o sistema capitalista de poder, a Igreja Católica
desfruta de uma periferia, de subsistemas associados e dependentes
do pólo imperial. O poder do papa se multiplicou por cem,
depois que ele se projetou energicamente, à frente de todos
e de tudo, como o depositário da fé e da esperanças
inerentes ao catolicismo e aos vínculos com outras Igrejas
cristãs, identificadas com a defesa ativa do capitalismo
monopolista e da rendição passiva dos "povos
em desenvolvimento"...
Quem perde com isso? Sem dúvida, a própria Igreja
Católica, que vive o drama interno da "restauração",
por natureza uma contra-revolução prolongada. O pior
é que prevaleceram os interesses materiais e a missão
terrena mais estreita da Igreja Católica, como sistema mundial
de poder autocrático. Mas ao perder, ela ganha, no jogo dialético
do poder temporal, institucionalizado hierarquicamente e em interação
com os aliados preferidos, os quais defendem a família, a
liberdade e a civilização cristã, submetendo
a periferia a um processo sem fim de espoliação neocolonial
crescente. Os "condenados da terra", aqueles que deveriam
ser os prediletos, recebem, em partilha com os que os exploram impiedosamente,
a parte que lhes cabe no ósculo ritual sobre o solo "pátrio".
Os milhões de miseráveis, que acorrem ao papa para
receber a sua benção, a sua mensagem de fé
e de esperança, esses ficam privados até da ilusão
de que poderiam possuir humanidade nos limites da religião
e da compreensão pastoral evangélica de sua prioridade
na órbita puramente religiosa.
Aqui está o busílis da questão. Não
podemos ser indiferentes ao significado concreto e às consequências
desse imenso drama. Eles nos toca diretamente! Nos momentos de dor
e sofrimento, de tortura e humilhação, d. Paulo Evaristo
Arns não se escondeu atrás de suas responsabilidades
pastorais. Não usou duas linguagens, dois códigos
éticos, dois sistemas de comportamento: um íntimo;
outro exteriorizado. Sem arroubos teatrais, modestamente, como alguém
que se via realizando uma missão dolorosa, pelo que ela continha
de aviltante, para os que praticavam a violência e para os
que a sofriam, ele sempre estava no lugar certo na hora exata (e
perigosa). Além disso, modernizou a sua diocese metropolitana,
tratou do estudo da pobreza e dos menores abandonados em São
Paulo, dos errantes da terra, estilhaçou o isolamento intelectual
da Igreja Católica, dinamizou a PUC e deu ênfase às
funções culturais do Tuca, abriu novas vias de relação
com os jovens e com os estudantes, providenciou para que a tortura
não ficasse oculta, sob vários véus intransponíveis,
realizou tantas outras coisas que seria difícil enumerar
e pôr em uma ordem correta. Essa é a "nova Igreja
Católica", que deveria expandir-se na periferia. São
Paulo é um exemplo, talvez o maior e o mais dignificante
de todos. E o que recebe por isso? Os conservadores católicos,
pastores ou crentes, se unem não para imitá-lo e louvá-lo,
mas para "tornar este mundo mais seguro", para os míopes
e os que se aferram a privilégios como a razão de
ser de sua vida.
Deixo de lado o mal que se praticou com d. Lucino Mendes de Almeida,
um ilustre bispo, porque é um desdobramento das distorções
que a "restauração" reservou para São
Paulo. Trata-se de uma inversão grotesca, que não
honra a imaginação dos que a puseram em prática
- atos sem grandeza e destituídos de sentido. Porque há
algo ainda mais escandaloso: as violências que se pretendem
impor a d. Pedro Casadáliga, bispo de São Félix
do Araguaia. Um poeta, pertencente a uma plêiade de grandes
homens da Igreja Católica, no Norte e no Nordeste, um sacerdote
de incomparável coragem física e moral, um defensor
enérgico dos índios e dos pobres mais oprimidos e
espoliados. É um símbolo da renovação,
da Igreja revolucionária, que repele a hipocrisia, a covardia,
o poder, a ostentação. Mexer com ele, tentar condená-lo!
Em nome do quê? A Igreja Católica restaurada pretende
selecionar seus mártires entre as suas melhores e mais representativas
figuras?
Este não é o momento de calar, de recorrer à
solidariedade convencional. Travamos os mesmos combates, tendo em
vista objetivos análogos, embora defendamos valores por vezes
em conflito e empreguemos meios diferentes de luta para formar o
novo homem e a nova sociedade. Orgulho-me desses companheiros de
viagem e declaro meu integral repudio às injustiças
que estão enfrentando. Sem acreditar em milagres, espero
que o bom senso prevaleça, porque a Igreja Católica
não pode, nos dias que correm, produzir mártires como
se ela fosse uma réplica barata das ditaduras mais hediondas
de nossa era. Como combater Pinochet com uma das mãos (embora
ignorando o destino trágico do Haiti) e com a outra destruir
sacerdotes, bispos e cardeais que se batem contra Pinochet, como
se opõem, em campo aberto, destemidos, contra o despotismo
militar e o ódio arrasador da violência civil "conservadora"?
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