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05/03/2010 - 08h39

Millhauser, Cathay, tristeza

IVAN LESSA
colunista da BBC Brasil

Palavra que não é preguiça. Acontece que uma das cismas envolvidas no processo do escrever é a vontade de compartilhar. Aí estão, ora informatizados, os blogs que só vêm a comprovar aquilo que sempre soubemos: que ir ao jogo de futebol com os companheiros, que papear no botequim com os amigos são apenas duas das coisas que nos dignifica e dá sentido à vida. Em meio aos horrores do mundo dignifica-nos e nos consola a humana vontade de partilhar de algo que, por isso ou aquilo outro, admiramos ou mesmo --exageremos logo-- amamos.

Adoro Steven Millhauser. Há décadas. Um escritor americano que não acredito traduzido no Brasil. Mais um ledo ivo engano. Muito gente deve conhecê-lo daquele filme "O Ilusionista", baseado em um conto seu.

Millhauser pode ser, e geralmente é, cansativo, repetitivo, denso, exasperante, hermético, altamente literário.

Nabokov, Beckett e, principalmente, Jorge Luís Borges são nítidas influências em seus livros, em geral de contos, com algumas exceções, feito "Martin Dressler", que acabou levando o importante prêmio do National Book Award de 1996 nos EUA. Li em julho do ano passado. Fascinante. Você acompanha atento e, após a última página, ao fechar o volume, olha para um ponto no espaço e, mentalmente, ou não, diz, "Hem? O quê? Como é que é?" Você vai em frente e, com você, vão também as páginas e as palavras de Millhauser.

Seu conto "Cathay", contido no livro "In The Penny Arcade", eu dei cabo, ou ele de mim, nesta semana que passou. "Cathay". Era o nome que se dava à China. Principalmente ao norte da China. Especula-se que a palavra tenha sido introduzida na Europa por freis franciscanos por volta de 1254, mas foi Marco Polo mesmo quem o popularizou neste continente 50 anos mais tarde.

O conto, de 17 páginas, é composto de 21 pequenas vinhetas, cada uma com título próprio, cada uma delas, como o gato Cheshire de Lewis Carroll, desaparecendo dentro de si mesma. Um desses pequenos parágrafos, "Tristeza", que segue abaixo, eu o li umas 10 ou 12 vezes. Resolvi, agora --e repito que não é por preguiça de escrever algo manquitola mas meu--, transcrevê-lo numa tradução (dá muito mais trabalho que "criar") que, vou avisando logo, manca das duas pernas.

Peço apenas, à distinta e reduzida plateia presente, paciência e, se possível for, tentar o acesso a todos os 21 livros de Steven Millhauser. A chateação é pródiga em recompensas.

"Tristeza

As Doze Imagens da Tristeza são: a lua de outono por trás de três galhos escuros, um espelho quando não reflete uma face, uma única pétala branca de ameixa dependurada num galho, os olhos de uma linda dama ao entardecer, um jardim sob a chuva de verão, bafo glacial numa noite de outono, um velho contemplando um rio, um leque esmaecido, um pardal morto na neve, um amante deixando sua amada de madrugada, uma antiga ampulheta abandonada, o perfil negro de um pato selvagem de encontro ao rubro sol poente. Estas são as tristezas conhecidas por todos os homens, mas há uma tristeza que é só de Cathay. Nossa tristeza é a tristeza oculta nas profundas tardes azuis-escuras do verão, a tristeza dos raios de sol batendo na árvore de ameixa a florescer, a tristeza que repousa como uma débil sombra púrpura na íris de uma linda menina a sorrir."

 

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