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28/10/2002 - 05h26

José Arthur Giannotti: PT, saudações

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
Especial para a Folha de S.Paulo

Não convém diminuir a extraordinária vitória do PT: Lula chega à Presidência carregando grandes esperanças, tendo chances de compor um ministério articulado e formar uma bancada no Congresso que lhe dê governabilidade e sucesso. Como tudo não será um mar de rosas, terminada uma campanha que não delineou com precisão os rumos de seu governo _indefinição que acarreta intranqüilidade- é hora de começar a esfriar a cabeça e refletir sobre o que aconteceu e poderá acontecer.

Até que ponto o governo de FHC e o projeto social-democrata dos tucanos foram derrotados? Não há dúvida de que se subestimou a onda de insatisfação instalada no país principalmente durante o segundo mandato, já que a bonança do primeiro fora por água abaixo, as condições de emprego se deterioraram e as perspectivas de desenvolvimento, sucessivamente frustradas. Isso não significa, porém, que o eleitorado tenha sido atraído pelas teses tradicionais do PT, pela promessa de total mudança do "modelo econômico" (que para muitos ainda soa como sucedâneo da revolução socialista) ou pela proposta de um Estado intervencionista de perfil keynesiano. Pelo contrário, o sentimento de frustração, desde logo, separou o governo da figura do presidente Fernando Henrique, cujo índice de popularidade continua muito razoável tendo em vista as vicissitudes desgastantes de oito anos no poder. Além do mais, convém lembrar que a maioria dos eleitores começou apostando na candidatura de Roseana Sarney, migrou para aquela de Ciro Gomes para desembocar na de Lula. Se não se converteu ao socialismo do antigo PT, ao menos acreditou que sua virada social-democrata será capaz de enfrentar as enormes dificuldades por que passa o país. Agora espera que o vencedor leve a cabo as vagas promessas de campanha com as forças políticas que aglutinou. Mas é interessante desde logo observar que algumas pesquisas qualitativas associavam a imagem de Fernando Henrique, presidente negociador e paciente, à de Lula paz e amor, ao invés de ligá-la àquela do candidato José Serra. Entre o atual e o futuro governo não me parece que a ruptura será tão profunda como se apregoa.

Tudo parece indicar que Lula venceu as eleições porque acrescentou a seu carisma a marca da nova engenharia política de cunho social-democrata, desenvolvida na gestão de José Dirceu. O PT vitorioso não está próximo de se ajustar ao programa originário do PSDB? Troquemos em miúdos essa indagação provocativa. A hegemonia de FHC se configurou a partir do momento em que firmou uma aliança de centro-direita que passou a levar em consideração as forças efetivas responsáveis pelo travejamento do jogo político brasileiro. Se nesse choque de realidade os perfis ideológicos começaram a se apagar, agora, que uma nova aliança se aglutina a partir do centro, o pragmatismo parece ter posto fim às diferenças ideológicas. Não há dúvida de que, no caso de FHC, eram partidos que se aglutinavam para traçar um projeto de abertura comercial e de reestruturação do Estado, obrigando o presidente a refazer frequentemente seus acordos mediante técnicas de malabarista, porquanto estava sempre balanceando interesses nem sempre convergentes. No caso de Lula é muito significativo que o caminho para a direita comece com o entendimento com o PL, passe pela aliança com Orestes Quercia e José Sarney e deságue, no segundo turno, num pacto com Paulo Maluf. É como se o PT se espraiasse semelhantemente à mancha de óleo, sem perder sua consistência na medida em que fagocitava células desgarradas do processo político. Considerando, porém, que em política não há boca livre, se não há de imediato a necessidade de uma aliança explícita entre os partidos a compartilhar o poder, tudo indica que o novo grupo hegemônico se torna poroso a interesses muito particulares de velhos oligarcas. O perigo é que se generalize a barganha caso a caso que tem caracterizado certas administrações petistas, a exemplo do que ocorre na Prefeitura de São Paulo.

Não há, porém, de se negar a renovação e o progresso. Visto que o PT no poder só pode abandonar a estratégia da constante negação, há de perder sua vocação missionária; será obrigado a agir estrategicamente, ponderando suas próprias forças e aquelas do adversário, a reconhecer por fim a necessidade de alianças eventuais, sem que com isso caia em pecado. Em vez de pensar a política como missão de suprimir a própria política, o que em geral dá lugar para jogadas mesquinhas pintadas de altruísmo, passa a lhe conferir um lugar na sociabilidade humana. No poder a esquerda cai na real, deixa de ser desculpa para golpes autoritários, constituindo-se assim numa efetiva força de transformação dessa realidade.

Messianismo
Não nos apressemos, entretanto, considerando que essa perda de princípios ideológicos implica mover-se no plano da "realpolitik", como se importassem apenas a tomada e a manutenção do poder. Um político não perde suas convicções quando se alia a adversários ideológicos, apenas segue a prática revolucionária, adaptada aos tempos em que a Revolução desapareceu do horizonte a médio prazo, de abrir fogo contra o elo mais fraco. Ora, a oposição sistemática que o PT fez ao governo de FHC, dificultando até mesmo a aprovação de projetos de interesse dos trabalhadores, como a reforma da CLT, ou necessários para a reestruturação do Estado, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, sempre foi mais do que estratégia de assalto ao poder. No fundo se ancorava na crença de que toda reforma que não se processasse sob a liderança do partido, seria irremediavelmente traída, já que só ele preservava o sentido do processo histórico. É esse messianismo que caiu por terra, de sorte que o PT está prestes a reconhecer que as mudanças, no plano da política, se fazem como navegar contra o vento, cada grupo ao chegar ao poder desenhando um fragmento do ziguezague que leva o barco para a frente. Ora, como todos os programas têm convergido para o centro, já que é por aí que se abre a possibilidade de a sociedade brasileira integrar-se no processo de globalização; como todos eles, diante de uma abertura da economia e da sociedade às vezes desregulada, tratam de propor mudanças no sentido de diminuir nossa famosa "fragilidade financeira", privilegiar a produção nacional e refundar um projeto de nação, o traçado a ser marcado por Lula não me parece muito diferente daquele projetado por José Serra. Na linguagem da esquerda, ambos tinham diante de si a tarefa de gerir o capital, como se dizia há tempos, enfrentando os mesmos percalços, mas pretendendo colher dos cacos e das jóias que produz a nova revolução capitalista o material de uma sociedade mais justa e mais humana.

Isso não significa, porém, que os dois candidatos se propunham a mesma trajetória, como se divisassem os mesmos obstáculos. Obviamente agora interessa desenhar aqueles que o presidente Lula há de enfrentar tendo em vista a situação do país e os instrumentos de que dispõe. Já que o passado é necessário, não há como deixar de partir da herança que recebe do governo de FHC. De mais imediato uma terrível crise cambial. Mas não creio que seria de bom alvitre interpretá-la como se resultasse de erros cometidos porque se seguiu a cartilha neoliberal de forma muito subserviente ao Consenso de Washington. Esse tipo de explicação apraz àqueles economistas que propõem receitas sem considerar o conjunto dos fatores favoráveis e desfavoráveis do momento político e aos politicólogos convencidos de que tudo se resolve no plano de uma vontade absoluta. No final de contas, se isso fosse verdade, seria preciso passar um atestado de burrice a todos os governos da América Latina com certas nuanças em relação ao Chile que, como bois caminhando cegamente para o matadouro, teriam caído na mesma esparrela. No final das contas, a história recente da América Latina não nos mostra que todos nós nos defrontamos com uma constelação de oportunidades e barreiras criada pela expansão do capital e que nos identifica como região particular?

Cabe lembrar que o desenho do Plano Real se, de um lado, se apoiava numa âncora cambial, de outro, apostava num período de crescimento do capitalismo hegemônico, o que permitia imaginar a possibilidade de engatar nele nossa economia sem exigir aqueles sacrifícios da população necessários ao processo de desenvolvimento baseado na poupança interna. Duvido de que haveria condições políticas para essa opção, de que os brasileiros fossem capazes de se comportar como coreanos e chineses, mas acredito, em contrapartida, que nosso balanço de pagamentos não precisava ter sido tão descuidado.

Deixemos, porém, essa questão de lado, já que ela passou a tema de pesquisa histórica. Em todo o caso, o governo de FHC apostou e perdeu e, além do mais, não contava com resistência tão forte e intransigente a reformas cujas necessidades lhe pareciam evidentes. Exemplo mais ilustrativo é a reforma da Previdência. À primeira vista nada parece mais irracional do que assistir ao crescimento astronômico do desequilíbrio entre gastos e receitas, sem se mover na direção de um pacto capaz de evitar o desastre que prejudicará a todos. No fundo cada grupo imagina que há recursos para manter seu nível de renda sem prejuízo para outros até que uma crise venha a colocá-los num patamar inferior. Mas essa irracionalidade apenas demonstra que a ação política é muito diferente da gestão de uma empresa, visto que certos segmentos sociais são capazes de levar uma sociedade à breca antes de perder seus privilégios.

Se um dos primeiros desafios do governo Lula é desatar o nó da Previdência, se as resistências políticas à mudança cresceram na medida em que o novo governo recebe apoio diferenciado daqueles que se beneficiam com o desequilíbrio dos valores das aposentadorias, é melhor que aproveite do capital político a ele conferido pelas eleições, a fim de estancar rapidamente essa sangria. Que os benefícios atuais sejam em grande parte justos, que a extensão da aposentadoria aos trabalhadores rurais tenha sido uma sadia medida de redistribuição de renda, não há como duvidar. A dificuldade é, todavia, como equilibrar gastos com receitas. E como não há fórmula mágica, o maior desafio do novo governo é fazer a reforma sem colocar contra a parede a massa dos funcionários públicos que o apóia.

Aliança no Congresso
Desde logo os vitoriosos de hoje precisam corresponder à enorme esperança de transformações profundas que as eleições alimentaram, isso, porém, numa situação de crise econômica nacional e internacional. Como encontrar recursos para uma política social pró-ativa quando o crescimento sustentável, embora latente, não se divisa a curto prazo? Como tornar mais lábil a alocação de recursos diante da rigidez do Orçamento? Para resolver impasses desse jaez a administração Lula precisa urgentemente alinhavar uma aliança no Congresso (com aqueles 300 picaretas, como dizia o barbudo Lula) capaz de avançar a reforma do Estado, refazer o pacto federativo, a reforma tributária e assim por diante. Não basta prometer que toda a sociedade será convocada. Mesmo que os movimentos sociais pressionem o sistema político, este possui uma dinâmica própria capaz de amortecer pressões que não visem objetivos definidos e não tenham conseguido juntar forças que ameaçam seu equilíbrio. A não ser que se aventure num jogo populista de ruptura da democracia. Mas para avançar nessa direção terá de vencer desde já dois grandes obstáculos

O primeiro é a necessidade de reconfigurar o jogo político. Um dos grandes méritos do governo de FHC foi ter reforçado a democracia brasileira, a ponto de, nesse momento, criar um gabinete de transição e passar civilizadamente a faixa presidencial àquele sucessor que por oito anos tentou desestabilizá-lo. É bom que se lembre que o mote "Fora FHC" esteve na boca de muitos petistas. Mas, a despeito de o sistema político brasileiro ser mais consistente do que parece à primeira vista, essa eleição, assim o creio, provoca nele uma remexida considerável. Não é apenas um antigo torneiro mecânico que se torna presidente da República; importa mais um partido, cujas raízes se alastram até as classes médias mais baixas, ser capaz de falar ao povão e atrair segmentos das classes altas. Não é pela primeira vez que essas classes médias passam, por meio de instituições próprias, a participar como agentes articulados do jogo político? Convenhamos, Lula foi também eleito pelo povão, mas suas raízes políticas provêm seja de um partido de classes médias, seja de instituições como a CUT, a Andes, o baixo clero e outras mais, cuja ascensão social é recente e moderada. Por certo a participação desses grupos sociais como agentes diferenciados e articulados do jogo político enriquece a democracia brasileira, não deixa, porém, de criar problemas, seja porque traz demandas impossíveis de serem cumpridas em virtude de nossa situação de dependência econômica e social, seja porque tanto mais radicaliza o discurso quanto menos os agentes possuem condições de efetivá-lo. O pragmatismo da estratégia política da atual direção do PT, vitoriosa no plano eleitoral, terá condições de enfrentar o tom elevado dos corifeus do voluntarismo, daqueles que pensam a política como se fosse mero processo de cunhar moedas sem levar em conta a estratégia dos adversários? Desse ponto de vista, deverá enfrentar setores do próprio PT, quer os deserdados do socialismo, que ainda propõem um Estado centralizador e produtivo; quer os representantes dos movimentos sociais mais duros, que platonicamente acreditam que a missão tem a virtude de criar recursos. Não exageremos, porém, tensões desse tipo podem ser muitas vezes anuladas por cargos e escrivaninhas.

Lula paz e amor
Não é, todavia, o que diz o PT. Retomemos a questão da Previdência; como pretende tratá-la? Ouvindo, conversando e negociando, em busca de um acordo que possa satisfazer a grande maioria. Ao menos no plano da retórica a política proposta por Lula paz e amor nega que a sociedade seja travada por contradições irreconciliáveis, como se o interesse se alguns não contrariasse interesses de outros. É bem verdade que a sociedade contemporânea não se estrutura em classes delineadas, mas isso não significa que a velha luta de classe tenha ido por água abaixo. Não há dúvida de que, diante do poder do Império, se reforcem interesses nacionais. Mas seriam eles capazes de anular interesses de classes médias que o processo planetário de globalização tem posto em xeque? Em que medida a vitória do PT não significa a desforra dessas classes que o governo de FHC não soube ou não quis proteger? Se ainda estivéssemos nos expressando nos moldes do marxismo, o projeto de Lula teria sido tachado de pequeno-burguês, aquele que concilia no imaginário contradições reais. Conforme o figurino contemporâneo, o mesmo projeto se torna habermasiano, coloca, diante dos conflitos reais, o ideal de uma república constituída por anjos falantes.

O perigo é a nova administração perder o empuxe inicial e se envolver na própria retórica. Ao tomar conhecimento efetivo dos constrangimentos que o capital internacional impõe ao desenvolvimento dos países "emergentes", ao se confrontar com as resistências dos aliados de hoje que aderiram embalados pelo discurso ambíguo da campanha, por fim, ao se desgastar no conflito com as ideologias do passado, não estaria tentado a retomar velhas idéias e hábitos antigos, voltando-se para o passado, a uma política de fechamento de nossa economia e de bravatas verbais? É bom lembrar que o PT namorou um nacionalismo de tipo Hugo Cháves e ainda mantém uma posição ambígua em relação a um Fidel Castro ossificado. O desafio é saltar para a frente, limpar os olhos de fantasmas do século passado, encarar a extraordinária expansão de um novo capitalismo que, a despeito de suas crises periódicas, se refaz vertiginosamente e cujo redemoinho internacional nos ameaça, nos joga de lado, assim como nos empurra para diante. Como logrará se situar em relação a um capital globalizado e que se aglutina em torno de um novo Império? E já nos primeiros tempos essa administração terá que se haver com a dificuldade muito concreta de negociar com a Alca, da qual não podemos ficar fora, mas também não podemos ficar dentro nas condições que nos são apresentadas. E para complicar a situação ainda é preciso ter o cuidado de não ferir suscetibilidade de um destrambelhado vestido de cruzado.

Reeducação
Não há dúvida de que o grupo hegemônico no PT, responsável pela vitória, tem se mostrado muito ciente de que é preciso transformar os avanços políticos num programa coordenado de reforma e de governo. A nova aliança arejará a política e colocará novos agentes na máquina administrativa. Por certo quadros ainda inexperientes, mas capazes de aprender com aqueles adversários do passado que souberem cooptar. Essa reeducação não será fácil, de um lado, por causa de sua urgência, de outro porque a reforma petista se move numa atmosfera inflada por classes médias que, por sua própria natureza, acreditam muito mais na "vontade política" do que na coordenação racional.

O PSDB, partido de quadros, porque estava convicto de suas fórmulas mágicas, tendia a desqualificar o adversário, por conseguinte se convertia na presa fácil da arrogância. A nova aliança em torno do PT, marcando a ascensão das classes médias ao nível da política articulada, corre o risco, no primeiro momento, de se empolgar pelo discurso da conciliação, no segundo, em virtude do fracasso de uma negociação que não distingue claramente amigos e inimigos, pode ser tentada a lançar mão de medidas de cunho autoritário. Em vez da arrogância, é possível que a intolerância se desenhe no horizonte.

Além disso, se "a paulistada foi varrida do Planalto", como gostam de dizer os esquerdistas cariocas, a mudança traz outra leva de paulistas, mas agora de "companheiros e trabalhadores". Ao contrário das revoluções que se pretendiam fazer pela raiz, as quais, pelo menos no seu início se associava a uma vanguarda cultural, a revolução perfumada dos nossos tempos tende a promover tanto a efervescência do pensamento sem suas condições de efetivação, como o kitsch pasteurizado pela mídia e pela propaganda. Mas os dados estão lançados, temos pela frente um governo Lula, cuja armação ainda está por se fazer, com suas virtualidades e seus perigos. Cabe a todos nós apostar no seu bom êxito, mesmo se, para alguns, a tarefa se imponha como oposição consciente e responsável.

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, 71, filósofo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor de "Trabalho e Reflexão" (Brasiliense), entre outros.

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