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29/10/2002 - 07h49

Lula é refundação do Brasil, diz sociólogo

SYLVIA COLOMBO
RAFAEL CARIELLO
da Folha de S.Paulo, em Caxambu

A vitória de Lula significa uma refundação do Brasil, só comparável a outros três momentos históricos -a Abolição, a proclamação da República e a Revolução de 30-, diz o sociólogo Francisco de Oliveira, 68, professor titular aposentado da FFLCH-USP e um dos principais e mais influentes intelectuais do PT.

A ressalva, porém, é imediata. Para ele, Lula não fará um governo de esquerda e é "pouco provável" que consiga criar os 10 milhões de empregos mencionados em seu programa.

Leia a seguir trechos da entrevista, concedida durante o encontro anual da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), que aconteceu em Caxambu, na semana passada.

Folha - A vitória de Lula é um acontecimento histórico de que magnitude?
Francisco de Oliveira
- Vou falar na perspectiva de hoje, porque haverá um tempo posterior que a confirmará ou não. Eu diria que a vitória do Lula é uma espécie de refundação do Brasil. Nós tivemos, nos últimos 150 anos, alguns grandes marcos que foram verdadeiras refundações do Brasil. Começando pela Abolição, pela República e a Revolução de 30.

Lula é o quarto marco. Não estou tomado pelo otimismo ingênuo de achar que as coisas vão mudar muito. O que nos autoriza a pensar em refundação é o fato de que, pela primeira vez, os dominados estão fazendo a história.

Folha - O sr. crê que esse marco vai completar o que a Revolução de 30 deixou inacabada?
Oliveira
- A Revolução de 30 introduziu o Brasil de uma vez no tempo moderno, marcado pela industrialização, pela urbanização, pela modificação na sociedade. A Revolução de 30 abriu um ciclo que tem sido chamado de "longa via passiva brasileira", um processo de modificações, às vezes radicais, conduzidas pela classe dominante ou por frações dela.

A vitória do Lula pode significar o fechamento do ciclo da Revolução de 30. Nós podemos sair de uma história passiva, conduzida pelos blocos dominantes, para uma história ativa, em que os dominados dão uma marca muito forte na política do Estado.

Folha - O líder do MST, João Pedro Stédile, disse recentemente que ou Lula atende às demandas sociais ou pode virar um De la Rúa. Pode?
Oliveira
- A verdadeira dimensão da vitória do Lula só será reconhecida depois de muito tempo. Do ponto de vista do seu mandato, de atendimento das enormes demandas sociais que estão aí, ele pode até frustrar bastante. Eu não o julgaria por este lado. Tudo indica que será um mandato muito difícil. Não diria que será um De la Rúa, pois a mais longo prazo saberemos se Lula realmente fechou esse ciclo ou não.

Folha - Se Lula não conseguir responder às promessas de mudança, o que acontecerá?
Oliveira
- Ele será cobrado e as demandas são fortes. Muitas foram reprimidas no período FHC e muitas são novas. Se pensarmos num mandato que possa satisfazer todas as demandas sociais, certamente ele não vai conseguir, isso exigiria milagres, e o pior que uma sociedade pode pedir são milagres. O governo será muito complicado e lento nas modificações. Exigirá muito acordo para a formação de um consenso.

O Lula não é o líder de uma revolução do tipo das grandes revoluções sociais desde o século 18 até o século 20. É o líder da formação de um consenso que requererá muito engenho e arte.

Não é de um golpe súbito que a situação se transformará. Mais importante será prestar atenção nas medidas de integração social, de recriação do Estado, de sua capacidade de devolver à sociedade normas de convivência. É por aí que devemos medir este governo.

Folha - O sr. espera um início de governo comportado, ortodoxo, em termos econômicos?
Oliveira
- Isso pode ser um elemento de frustração de certa parte da opinião pública, pois ele tende a ser um governo no princípio conservador. Falando de uma forma mais jocosa, de não fazer muita marola. Se fizer muita marola, os riscos são enormes.

Folha - De que natureza são esses riscos?
Oliveira
- Há o risco internacional, pois o governo dos EUA é muito hostil a mudanças, embora esteja emitindo sinais que, para um governo Bush, são surpreendentes. Mas não há que se enganar. Se mexer em alguns interesses internacionais, a hostilidade virá rápido. Por exemplo, se tentar renegociar já a dívida externa.

Folha - E quais são os principais obstáculos internos?
Oliveira
- Não convém fazer tábula rasa da herança desintegradora desses últimos dez anos. A taxa de desemprego e a dívida interna recordes e as tensões inflacionárias. Este conjunto colocará o governo em posição de cautela.

Folha - O sr. vê a possibilidade concreta de uma reação interna?
Oliveira
- Não. Seria muita afobação. Mas não se faz omelete sem quebrar os ovos. Para renegociar a dívida interna, para ganhar maior margem de manobra, vai ser preciso estabelecer uma agenda de novos compromissos em que o empresariado conceda um prazo bastante largo para que as coisas possam se rearrumar.

Folha - O pacto nacional é viável?
Oliveira
- Esse pacto é uma obra de bordado do Ceará, que requer extrema habilidade política. Acho que o PT tem a capacidade de fazer. Mas, como Garrincha nos lembrou, é preciso saber se isso está combinado com o outro lado, com entidades patronais, com o empresariado, com sindicatos, movimentos sociais, para que o governo tenha fôlego para retomar o crescimento. Na verdade, o grande pacto só se dá se o crescimento econômico for retomado.

Folha - O modelo de desenvolvimento orientado pelo Estado até aqui não funcionou. Qual é a saída para o Brasil voltar a crescer?
Oliveira
- Não é verdade que não funcionou. Dos anos 30 aos anos 80, o Estado teve uma forte participação no direcionamento da economia. O Estado investia junto com o setor privado, indicava caminhos e armou conjuntos de empresas produtivas que foram eficazes para a industrialização.

Folha - Essa capacidade de investimento não se esgotou?
Oliveira
- Havia se esgotado nos anos 80, devido à brincadeira da dívida externa. Foi a dívida externa que liquidou com a capacidade financeira do Estado brasileiro. Suas estatais foram usadas para resolver problemas de balanço de pagamentos, por isso se endividaram. Foram usadas como instrumentos de política econômica.

Em resumo, não se pensa em nenhuma volta à estatização, mas uma coisa é certa: sem a recriação da capacidade reguladora e da capacidade do Estado de sustentar políticas de desenvolvimento, as chances são poucas. A periferia, na qual se situa o Brasil, não pode se contentar com o mercado. Nossos países não têm moeda forte, portanto não têm outro recurso a não ser usar a força estatal.

Folha - O crescimento de 5% ao ano nos próximos quatro anos, que é o que foi anunciado como necessário para a criação de 10 milhões de empregos, é viável?
Oliveira
- Não. A curto prazo, não vai dar. Não nos façamos ilusões.

Folha - A criação de 10 milhões de empregos é difícil, então...
Oliveira
- É difícil. Criar 10 milhões de empregos em quatro anos não é nada fácil. Até porque a pressão sobre a balança de pagamentos pode ser imediata. Há aí uma contradição imediata: toda pressão sobre balanço de pagamentos agrava a dívida externa e, ao fazê-lo, comprime de novo a possibilidade de crescimento.

Folha - Pode-se dizer que é improvável?
Oliveira
- Diria que é pouco provável. Sobretudo a criação de emprego formal, que traga consigo garantias sociais. O emprego informal não custa nada. Mas não é desse emprego que precisamos.

Folha - O que será do PSDB agora?
Oliveira
- Não vai acontecer nada de muito radical. O PSDB é uma das novas experiências da política brasileira, assim como o PT. Foram digeridos pela enorme capacidade de cooptação que a política brasileira produz. O PSDB vai tentar liderar a oposição, não por uma questão ideológica. É uma razão que vem da estrutura social.

Esse é um país muito complexo, que não comporta clivagens muito taxativas. Não é por outra razão que o PT foi para o centro. Não foi por cooptação ou fuga ideológica, como geralmente se pensa. É que a sociedade é complexa. O PSDB vai liderar a oposição porque sabe que partes da sociedade não vão estar satisfeitas com o governo.

Folha - O sr. acha que o PT não vai tentar reformas à esquerda?
Oliveira
- Não.

Folha - Por quê? Se tentasse, não passariam no Congresso?
Oliveira
- Não passam. Reformas mais à esquerda não passam no Congresso.

Folha - O sr. acredita que o Congresso continua conservador?
Oliveira
- Sim, embora tenha havido uma renovação importante, da qual o PT é um protagonista importante. Mas o Congresso continua conservador. Há uma confusão que está sendo feita, que as eleições teriam mostrado um avanço da esquerda. Houve uma enorme renovação e uma indicação de oposição. Isso quer dizer uma demanda por mudança na orientação econômica e por novos empregos, mas não uma demanda de esquerda.

Isso aconteceu por causa do quadro deteriorado que existe hoje no Brasil. O PT não vai tentar reformas à esquerda.

Folha - Mas o que é ser de esquerda?
Oliveira
- Ser de esquerda, noutros tempos, significava tentar socializar os meios de produção. Isso não está na pauta posta por nenhuma força política.

Sou marxista. Uso a teoria de Marx para entender a sociedade contemporânea. Na definição de Marx, ser de esquerda é pôr o acento na igualdade.

Em termos ideológicos clássicos, ser de esquerda era querer que os trabalhadores assumissem o controle do Estado. Radicalmente, ser de esquerda ainda é isso. Hoje, é retirar todas as discriminações possíveis, introduzir as classes populares nas instituições republicanas mais importantes.

É dizer que é preciso controle de quem trabalha dentro das empresas capitalistas. Dito hoje, isso é um enorme escândalo. Como eu não sou governo, não tenho responsabilidades de governo, posso continuar dizendo. Enquanto a empresa capitalista continuar sendo o reduto férreo da ditadura do capital, a democracia e a igualdade não estarão realizadas.

Folha - O governo do PT não será, então, um governo de esquerda?
Oliveira
- Nesses termos, certamente não. Como se faz isso? Não desapropriando os empresários. A primeira vez que subi num caixão de gás para fazer política, era isso que eu pensava. A idade faz você ficar mais moderado.

Folha - Qual o significado para o grupo de intelectuais do qual o sr. faz parte da vitória de Lula?
Oliveira
- Os intelectuais fizeram a crítica do passado, o PT apropriou-se dessa crítica. Não inventamos o partido, mas a contribuição dos intelectuais foi muito importante. Para esse grupo, a sensação é a que nós temos uma responsabilidade enorme em mergulhar de cabeça nesse processo. Por muitas razões. A primeira delas é não permitir que a direita avance sobre uma conquista popular. Continuar a fazer a crítica para que a direita não avance.

Da perspectiva mais restrita da minha geração, é uma espécie de confirmação da crítica que fizemos no passado. Esses intelectuais devem encarar esse enorme desafio que é mergulhar de cabeça. Até onde sou parte desse sentimento, posso dizer que não estou me equivocando. É mergulhar de cabeça para fazer avançar. Nosso processo é sempre montado em dois pontos: preservar para avançar. O socialismo é isso.

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