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02/02/2003 - 05h13

Lula é mais teatro que ação, diz intelectual

FERNANDO RODRIGUES
da Folha de S.Paulo, em Brasília

Estudioso dos políticos e das classes trabalhadoras, o cientista político Leôncio Martins Rodrigues, 69, vê um "descompasso" entre a "capacidade teatral" e a "capacidade de execução" do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas ressalva que ainda é muito cedo para julgamentos definitivos: "Apenas julgo que muito do que se propõe não sairá do papel".

Comunista de orientação trotskista na juventude, Leôncio hoje se autoclassifica como "um liberal no sentido dado ao termo nos Estados Unidos, não com a conotação pejorativa empregada aqui à expressão neoliberal". Ao analisar o primeiro mês do governo Lula, acredita que o PT seguiu o único caminho possível ao fazer acordos à direita, com políticos como José Sarney (PMDB-AP): "A esquerda mais radical imagina, ingenuamente, que segmentos dominantes da sociedade ficariam assistindo, de braços cruzados, Lula levar o país para a esquerda".

Leôncio vê "elementos de semelhança" entre o relacionamento de Lula com o Congresso e aquele mantido por Fernando Henrique Cardoso. "Eu acho até que Lula tem condições de montar um rolo compressor mais forte que do que o PT e a oposição acusavam o Fernando Henrique de fazer."

Para o cientista político, a figura do presidente da República tem se sobreposto à imagem do governo -"entre os pobres, tem sido tratado como um Padim Ciço"- a exemplo do que ocorreu com Fernando Collor de Mello (90-92).

"O Collor começou se sobrepondo aos partidos e ao Congresso e acabou mal. Claro que o Lula não é o Collor, mas estou constatando o fato: há uma sobrevalorização da figura do Lula. Por enquanto é um fato a constatar e observar seu desenvolvimento." A seguir, trechos da entrevista:

Folha - Qual é a sua avaliação sobre o novo Congresso? É melhor ou pior do que o anterior?

Leôncio Martins Rodrigues
- É cedo para julgar. Um ponto que não conta favoravelmente à nova legislatura é o alto número de parlamentares que já mudaram de legenda. Mas, embora o fato não agregue pontos a favor da consistência doutrinária dos migrantes, também não é necessariamente prejudicial para governabilidade.

Folha - É a primeira vez que o partido do presidente eleito diretamente tem a maior bancada na Câmara depois do regime militar. Isso tem algum significado?

Leôncio
- Esse indicador favorece a governabilidade, mas diz pouco sobre a qualidade da representação dos eleitores no Congresso. A não ser que sejamos petistas a ponto de dizer que, se o PT elegeu mais deputados, isso significa necessariamente melhoria da qualidade da representação.

Folha - A representação na Câmara melhora com a prática eleitoral?

Leôncio
- O corpo político sempre é recrutado de um número pequeno de pessoas em relação ao eleitorado. São mais ou menos os membros dos mesmos segmentos ocupacionais, ainda que variações ocorram no peso relativo desses segmentos. Na imensa maioria, são empresários, profissionais liberais, professores, funcionários da alta administração.

Muitos vêm de famílias que se ocupam da política há muitas gerações. Mas, para que não se pense que se trata de mais um defeito de nossa classe política, deve-se dizer que isso ocorre em quase todos os países.

As variáveis no recrutamento têm relações com os partidos que obtêm mais votos em cada eleição. Nessa última eleição, como o PT elegeu mais gente, o número de ex-sindicalistas é expressivo no Congresso, além obviamente dos professores.

Se partidos de direita tivessem vencido, seguramente haveria mais empresários na Câmara.

Folha - Não estaria havendo um volume excessivo de acordos para divisão dos postos de comando do Congresso Nacional?

Leôncio
- Sim, tal como o PT acusava o governo de FHC. Mas entendo que isso faz parte do jogo político dentro do sistema da democracia pluripartidária brasileira. Não adianta dizer "que vergonha esses nossos políticos". Com fragmentação partidária, não é possível governar sem acordo. Desse ponto de vista, é uma crítica um tanto puritana feita pela esquerda petista apontar o acordo de Lula com Sarney e outros partidos "de direita" como traição aos ideais petistas originais.

Mas não deixa de ser verdade que essas críticas encontram muito fundamento diante do comportamento anterior do partido.

Se condutas radicais anteriores, como votar contra a atual Constituição, não tivessem ocorrido, ninguém poderia acusar o PT de traição aos princípios "socialistas". Mas não adianta ficar olhando para o passado.

Vendo a questão como ela se coloca para o futuro, todo partido que quiser governar tem que buscar acordos com o centro e/ou com a direita.

Seria impossível governar só com a esquerda. Finalmente, Lula não foi eleito para lançar as bases da construção do socialismo, mas para realizar o que se poderia dizer, de modo um tanto vago, um "bom governo" e, a partir daí, tentar novas vitórias eleitorais.

Folha - A salada nos acordos para distribuição do poder no Congresso não é desmoralizante para a democracia e para os partidos?

Leôncio
- Sim, mas qual a alternativa? A salada partidária seria menos variada se um partido (ou um coligação de partidos de apenas uma tendência ideológica) obtivesse a maioria das cadeiras no Congresso (para não falarmos das Assembléias Legislativas). Será que isso seria melhor para a democracia brasileira?

Folha - Seria?

Leôncio - Esse hipotético partido hegemônico teria mais condições de impor suas propostas. Isso implicaria uma diminuição do consenso que poderia levar a um radicalismo, de esquerda ou direita, que exacerbaria o clima político.

A esquerda mais radical imagina, ingenuamente, que segmentos dominantes da sociedade (como empresários, militares e as classes médias) ficariam assistindo de braços cruzados Lula levar o país para a esquerda. O nosso pluripartidarismo estimula a busca do consenso, o que leva à diminuição do extremismo.

Folha - O relacionamento inicial do governo Lula com o Congresso é semelhante ao mantido por FHC?

Leôncio
- Há elementos de semelhança, embora o estilo seja diferente. Não há como escapar dessa tentativa de bom relacionamento com o Legislativo. Eu acho até que Lula tem condições de montar um rolo compressor mais forte que o PT e a oposição acusavam Fernando Henrique de fazer.

Folha - Numericamente a base de apoio ao Planalto tem hoje menos deputados que nos anos FHC.

Leôncio
- É verdade. Só que já há a predisposição de adesão de parte do PMDB e de outros partidos. A impressão que tenho é que, nesse aspecto, o Lula obteve mais do que se esperaria de um partido "de esquerda".

Folha - Por quê?

Leôncio
- Pelo enorme apoio que o Lula encontra entre todos os setores da sociedade. Entre os pobres, tem sido tratado como um Padim Ciço. No momento, o Lula está sendo mais julgado pelas ações de teatro, de palanque, de candidato, do que pelas suas realizações governamentais.

Sei que é cedo para um julgamento nessa área. Quero apenas constatar que o apoio tem vindo mais da figura, do carisma do candidato e das promessas do que das realizações.

No geral, até agora, há um descompasso entre a capacidade teatral do Lula e a sua capacidade de execução. A capacidade teatral é maior -embora o governo esteja ainda no começo e seja preciso reconhecer o enorme talento do presidente de ficar no centro dos holofotes, até mesmo em escala internacional. Não acho que isso seja necessariamente mal para o país. Apenas julgo que muito do que se propõe não sairá do papel.

Folha - O sr. está pessimista em relação ao governo Lula?

Leôncio
- Estou. Olha, estou torcendo muito para que dê certo. Tenho um certo receio da partidarização da administração pública. Vencer eleições para o Executivo implica uma espécie de "colonização" do Estado, expressa na distribuição de cargos para os membros das cúpulas superiores dos partidos e para os amigos. Isso sempre aconteceu. No caso do PT, um partido mais ideológico e cujos membros vieram mais de baixo, a ocupação do Estado parece mais acentuada. O fator ideológico pesa demais sobre a competência. Por exemplo, o Ministério do Trabalho, como acusam sindicalistas de outras tendências, foi quase inteiramente entregue aos quadros da CUT.

Folha - Como é possível resolver esse tipo de "ocupação do Estado" pela classe política?
Leôncio
- Em todos os países isso ocorre, por vias autoritárias ou democráticas. Em países como o Brasil, onde o Estado é um grande empregador e um meio de ascensão social e econômica -além da ascensão política-, a luta por cargos na burocracia pública, com o enorme excesso de mordomias que oferece, é mais acirrada.

Folha - Há possibilidade de mudança nesse padrão?
Leôncio
- Alguma mudança vem ocorrendo. Especialmente no Sudeste e Sul, onde a chamada "sociedade civil" é comparativamente mais forte do que nas outras regiões. Essa mudança se caracteriza principalmente por uma transformação na composição da elite política, com a entrada de pessoas saídas das classes médias.

Nesse sentido, os sindicatos têm sido trampolins importantes de ascensão política para os que vêm das classes trabalhadoras ou das classes médias. O caso de Lula é paradigmático, mas está longe de ser o único.

Provavelmente, a longo prazo, a melhoria do padrão de vida da população, o aumento do grau de escolaridade dos eleitores devem proporcionar melhores escolhas e pressionar por reformas. A intolerância com os corruptos e incompetentes tenderá a ser maior. Facilitará o aparecimento de novos líderes. Não quero dizer que serão sempre mais honestos que os outros, mas vão complicar o jogo partidário porque terão compromissos com outros segmentos da sociedade.

Folha - O processo é demorado. Não existem atalhos?

Leôncio
- Uma ruptura com a ordem institucional não deu certo em parte nenhuma. Os militares aqui poderiam ter feito muita coisa e não fizeram. Os bolcheviques, na União Soviética, proclamaram que iam melhorar tudo e pioraram tudo. As promessas de reformulação social total e de construção de uma "nova sociedade" sempre acabam mal.

Folha - Qual a sua expectativa para os quatro anos do governo Lula?

Leôncio
- O governo Lula pode ser qualquer coisa: muito bom, muito ruim... ou mais ou menos. O que está havendo é uma enorme dominação da figura do Lula sobre todo o sistema político, como há muito não ocorria.

Folha - É bom isso?

Leôncio
- Não sei. Depende de como ele vai usar isso. No momento, com a avaliação tão boa, ninguém ousa se opor ao presidente. Lula é o centro de tudo, dentro do partido dele e fora. Nos casos Sarney, Itamar, FHC não foi assim: não eram figuras tão carismáticas. Dependiam muito de seus partidos. Collor começou se sobrepondo aos partidos e ao Congresso e acabou mal. Claro que Lula não é Collor, mas estou constatando o fato: há uma sobrevalorização da figura do Lula.

Folha - O sr. falou ontem entre o descompasso entre a propaganda e a
capacidade de ação do governo. Como isso se dá?

Leôncio
- O Lula foi a Davos e defendeu uma política para acabar com a miséria no mundo. Trata-se de uma pretensão monumental. É bom que ele chame a atenção para os pobres, mas é óbvio que eliminar a pobreza não vai depender dele nem do Brasil.

Folha - Como avalia o Conselho de Desenvolvimento Social?

Leôncio
- Não tenho opinião ainda. É difícil prognosticar sua eficiência. É visível que o Lula está pondo muita ficha nas forças ditas sociais, até mesmo porque foi sindicalista e sua experiência parlamentar é pequena. Parece tentado a correr por fora do Congresso. Isso é bom? É mal? Se o contato com a "sociedade civil" for para coletar informações, para ouvi-la, pode não causar muito estrago.
 

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