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24/02/2003 - 03h52

Guerra só interessa aos EUA, diz Saramago

ALCINO LEITE NETO
da Folha de S.Paulo, em Paris

"O único país a quem a guerra hoje realmente interessa é os Estados Unidos. O seu projeto imperial e neo-colonial precisa dela para se consolidar." As palavras são do escritor português José Saramago, 80, Prêmio Nobel de Literatura de 1998, um homem que não costuma se refugiar no silêncio quando as situações políticas agravam a incompreensão entre os homens e proliferam a injustiça social.

Há uma semana, na ilha espanhola de Lanzarote, onde vive Saramago, foi realizado um encontro entre o primeiro-ministro espanhol José Maria Aznar e o chanceler alemão Gerhard Schröeder, dois líderes que se opõem radicalmente a respeito da intervenção militar no Iraque. A Espanha está próxima dos Estados Unidos, pregando uma ação preventiva, e a Alemanha recusava todo tipo de ataque, até que aceitou na última cúpula da União Européia a ação militar como "último recurso".

Com uma crise desse tamanho batendo quase à porta de Saramago, na calma ilha no arquipélago das Canárias, a Folha resolveu propor ao escritor uma entrevista sobre a crise iraquiana. Ele aceitou fazê-la por escrito. As suas respostas seguem abaixo.

"O Iraque, diga o que diga o sr. Bush, não representa neste momento um perigo para a segurança mundial, e isto não quer dizer que eu considere Saddam Hussein um cordeirinho inocente", diz Saramago.

Folha - O sr. assinou recentemente um manifesto contra a intervenção militar no Iraque. O sr. é absolutamente contra a guerra ou admite que possa haver uma ação contra o país caso seja essa ação aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU?
José Saramago
- Sou contra as guerras como qualquer pessoa normal... Quanto a admitir que possa haver, segundo as suas palavras, uma ação contra Iraque se for aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU, necessitaria saber primeiro se dessa maneira ficaria autorizada para o futuro qualquer "guerra preventiva". Se assim for, o Conselho de Segurança ter-se-á tornado numa espécie de carimbo automático que aprovará toda e qualquer guerra em que esteja interessado um país suficientemente poderoso para controlar as suas decisões. Iraque, diga o que diga o sr. Bush, não representa neste momento um perigo para a segurança mundial, e isto não quer dizer que eu considere Saddam Hussein um cordeirinho inocente. Saddam Hussein é um ditador, e dos piores, mas o maior problema de Iraque é estar onde está e ser o segundo produtor mundial de petróleo. Tendo mantido ao longo de todos estes uma cabeça de ponte no Próximo Oriente, isto é, em Israel (que não cumpriu até hoje nenhuma das resoluções da ONU e não foi castigado por isso...), os Estados Unidos precisam de controlar agora o Oriente Médio, por causa do petróleo, mas também como a porta para a Ásia. O Afeganistão (não esqueçamos que por ali passará o pipe-line do gás natural) já está sob o seu controle, as simpatias do Uzbequistão vão todas para os norte-americanos... A estratégia dos Estados Unidos é clara: pôr as suas "fronteiras" o mais longe possível de Washington. Não é possível entender doutra maneira, por exemplo, duas guerras anteriores, a do Vietnã e a da Coréia.

Folha - Como o sr. vê a divisão instalada no seio da comunidade européia por causa da questão iraquiana? O sr. pensa que uma guerra contra o Iraque pode colocar em crise a União Européia?
Saramago
- Em rigor, a "União" Européia ainda não existe. Cometeu-se o erro de pensar que os factores económicos resolveriam tudo, que a economia acabaria por integrar harmoniosamente os diferentes países, e agora descobre-se que é necessário voltar à política e repensar tudo desde o princípio. Não é de estranhar, portanto, que a crise tenha estalado. Do meu ponto de vista, é um bom sinal. A União Européia tem de nascer outra vez, e isso não acontecerá sem crises. Esta e as mais que hão de vir.

Folha - A própria Otan encontra-se em crise depois que França e Bélgica se opuseram ao envio de ajuda militar à Turquia. O sr. teme que outras instituições internacionais e multilaterais, como a ONU, possam cair no descrédito, com o desenrolar dos fatos, rumo a uma guerra?
Saramago
- O maior responsável pelo descrédito em que caiu a ONU chama-se Estados Unidos, e isto ninguém o poderá negar. Quanto ao alinhamento militar da Europa pelos Estados Unidos, melhor seria chamar-lhe submetimento. São muitos os países onde os norte-americanos têm bases militares, mas não me consta que qualquer desses países tenha bases nos Estados Unidos... As bases na Europa tiveram como razão de ser o que se denominou "perigo soviético". Esse perigo desapareceu, e as bases continuam onde estavam. E não vale a pena lançar poeira aos olhos: o único país a quem a guerra hoje realmente interessa é os Estados Unidos. O seu projeto imperial e neo-colonial precisa dela para se consolidar.

Folha - A opinião pública encontra-se majoritariamente em oposição à guerra, como provam as manifestações realizadas. Como o sr. interpreta o contraste que se está criando entre a posição de certos governos, como Portugal, Espanha e Inglaterra, eleitos democraticamente, e a opinião de seus países? Por que o presidente francês Jacques Chirac teria resolvido afrontar os Estados Unidos?
Saramago
- Democraticamente podem ser eleitos bons e maus governos. O voto não purifica nem absolve. Berlusconi foi eleito democraticamente, e quem é Berlusconi? As ditaduras impõem-se à vontade dos povos, não é raro que as democracias façam o mesmo. Aliás, esta conversa sobre a democracia levar-nos-ia longe... Como é que se pode falar de democracia quando o poder real não é político, mas econômico? Como se pode falar de democracia, quando o poder real não é político, mas militar? Quanto a Chirac, o que ele fez foi recordar-se de De Gaulle, pensar que a França deverá ser a cabeça política da Europa. É uma jogada arriscada. Veremos se os Estados Unidos estão dispostos a admitir veleidades "independentistas" por parte de Europa...

Folha - O sr. comparou no ano passado os ataques de Israel aos palestinos com o assassinato dos judeus pelos nazistas. Sua declaração gerou enorme polêmica. Como o sr. se posiciona em relação aos ataques, inclusive a civis, que os próprios palestinos promovem contra Israel? O sr. é pró-árabe? Como interpreta o crescimento do sentimento antiamericano e anti-Israel na Europa?
Saramago
- Não sou anti-semita nem pró-árabe. Sou apenas um dos muitos que pensam que o povo palestino tem direito a viver no seu próprio país, sou apenas do um dos muitos que perceberam que no projeto de Grande Israel, esse que habita a cabeça dos políticos israelitas e de uma grande parte da população, os palestinos não têm lugar. Em Cisjordânia e Gaza há mais de 200 colonatos, onde vivem cerca de 300 mil judeus. Esses colonatos, fortemente militarizados, estão ligados por uma rede de estradas por onde os palestinos não podem circular. A triste verdade é que Israel delapidou o capital de respeito e simpatia que a Europa lhe dedicava. Não é culpa minha que Israel esteja a comportar-se todos os dias à margem dos mais elementares preceitos do direito internacional e do simples respeito humano.

Folha - O sr. teme que a guerra ao Iraque possa acentuar a crise no Oriente Médio e possa também levar a ataques terroristas na Europa, como dizem alguns líderes? Que mundo é este que passou a viver sob vigilância contínua em decorrência das suspeitas aventadas de ataques sorrateiros e cruéis? Que Estados Unidos são estes que vivem agora em permanente apreensão?
Saramago
- Não posso prever as consequências que terá a guerra contra Iraque numa região desde sempre instável como é o Oriente Médio. Que o terrorismo continuará? É mais do que certo. Que Europa poderá vir a ser vítima de ações terroristas? É muito provável. A chamada civilização ocidental semeou ventos, agora colhe tempestades. É absolutamente legítimo, de qualquer ângulo que se examine a situação, lutar contra o terrorismo, mas eu aconselharia a que se estudassem as raízes profundas deste terrorismo e as responsabilidades históricas do próprio Ocidente na sua formação e eclosão. Dizer "Nós somos inocentes do mal que eles sofreram e sofrem, estávamos tranquilos na nossa casa e vieram atacar-nos" é uma pura hipocrisia. Se amanhã os índios da Amazônia descerem em pé de guerra contra São Paulo (permita-se-me esta hipótese fantástica), não se lembrem os paulistas de dizer que estavam inocentes, que não tinham a culpa...

Folha - Na condição de escritor, como o sr. descreveria o significado para nosso mundo de um homem como Bin Laden, este personagem esquivo, que não se sabe se está vivo ou não, que passou a representar, sobretudo para os EUA, uma espécie de antípoda e inimigo maior da civilização ocidental?
Saramago
- Bin Laden é inimigo da civilização ocidental, mas o inimigo maior da civilização ocidental é ela própria. Geramos o monstro que nos devorará. Esse monstro chama-se soberba, insolência, egoísmo feroz. Aqueles a quem espezinhamos cansaram-se de ser espezinhados. E nós somos incapazes de ouvir o gemido de um mundo que está a extinguir-se de fome, de doença, de miséria, de ignorância, de injustiça. Que têm que ver os Bin Laden com tudo isto? Essa é a pergunta, mas para ela só temos uma resposta: acabar com os Bin Laden. Claro que sim, há que acabar com os Bin Laden, mas talvez não fosse má ideia perguntar-nos também por que desceriam os índios da Amazônia contra São Paulo...
 

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