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10/10/2003 - 17h32

Veja a íntegra do discurso de Lula na Confederação Nacional do Comércio

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da Folha Online

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursou hoje na cerimônia em comemoração ao alcance da meta de implantação do programa Mesa Brasil, do Sesc, na Confederação Nacional do Comércio.

O programa age como uma ponte entre empresas que têm alimentos excedentes --sem valor comercial, mas em condições de consumo-- e entidades que atendem à população carente.

Veja abaixo a íntegra do discurso:

"Meu caro Antonio Oliveira dos Santos, presidente da Confederação Nacional do Comércio e do Conselho Nacional do Serviço Social do Comércio,
Meu caro companheiro José Graziano, ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome,
Meu caro companheiro Miro Teixeira, ministro das Comunicações,
Minha querida companheira Marisa,
Meus companheiros, minhas companheiras,
Meu caro amigo Oded Grajew, assessor especial da Presidência da República,
Deputado Paulo Delgado,
Deputado Paes Landim,
O senador Paulo Octávio já foi embora,
Meus amigos e minhas amigas,

Eu fico atento. Mas só o fato de ele ter vindo já foi extraordinário.

O nosso grande problema é convencer a sociedade de que a solidariedade não pode acontecer de quando em quando na nossa passagem pela terra. A solidariedade tem que se tornar uma prática cotidiana da sociedade brasileira e do ser humano como um todo. Sem ela sobreviveremos pouco. E sem ela não seremos os seres racionais que Deus quis que nós fôssemos.

Certas palavras circulam entre nós apenas com meia vida; meio sentido --desprovidas de seu significado pleno e profundo. Solidariedade é uma delas. A maior parte do tempo nós só reconhecemos o seu conteúdo imediato, como se fosse mero sinônimo de ajuda emergencial. É muito mais que isso. A solidariedade é um pilar da civilização humana. É uma condição de vida em sociedade.

E esta cerimônia --que marca a conclusão da primeira fase do programa Mesa Brasil--, conduzido pela Confederação Nacional do Comércio através do Sesc, ilustra bem o significado afirmativo e transformador contido na palavra solidariedade. Somente nesta etapa, o Mesa Brasil já implantou bancos de alimentos em todos os estados do país.

A verdade é que não é possível construir uma sociedade justa, solidária e republicana como o Brasil quer ser, se a gente não abdicar pelo menos do desperdício. O desperdício é o escárnio da desigualdade: é o privilégio que vai para o lixo. Combatê-lo, portanto, é um compromisso ético e prático com a mudança. É um aprendizado indispensável, uma demonstração de que a sociedade brasileira avança para colocar a solidariedade como um valor que renova o presente e redefine o futuro.

Mais que um gesto individual de generosidade, a solidariedade é a defesa coletiva de um povo contra as forças que ameaçam romper seus laços sociais --e a miséria e a fome são as mais perversas formas de desintegração de um agrupamento humano.

O Estado não pode nem deve obrigar uma sociedade a ser de um jeito que ela não queira. Mas deve criar as condições para que o individualismo ceda lugar à lógica do consenso, como temos feito nas negociações das reformas e na criação de novas instâncias democráticas de discussão do país.

Não se trata de passar por cima dos conflitos de interesses, porque a política existe justamente para legitimar o diálogo entre as diferenças. Mas se trata, sim, de reforçar convergências que nos permitam reconhecer no interesse do outro, uma parte do nosso próprio interesse - sem o quê fica muito difícil construir um projeto democrático de desenvolvimento nacional. A Previdência Social é um bom exemplo dessa convergência solidária.

Por isso fizemos a sua reforma, para que ela se mantenha como uma ponte sólida entre gerações, na qual os jovens pagam hoje para sustentar os que pagaram ontem, porque também serão beneficiados pelos que virão amanhã.

A legislação tributária é outra ferramenta de solidariedade porque permite redistribuir a riqueza e evitar a guerra fiscal que desarmoniza a federação e aprofunda os desequilíbrios regionais. É o que faz dela outra prioridade de nossa agenda. O mesmo acontece com a luta contra a fome e o desperdício.

Quando nos preocupamos com a desumanização do outro, estamos respeitando a nossa própria humanidade. E é isso que eleva a sociedade humana além de um mero destino biológico, para credenciá-la como protagonista do futuro e sujeito da sua própria história.

Por isso é que nós damos enorme valor a iniciativas como essa do Mesa Brasil e às políticas do programa Fome Zero. Há nelas uma transição de uma velha cultura para outra, mais justa e generosa --e sem a qual, insisto, é muito difícil aprofundar uma trajetória democrática que faça do futuro um destino melhor para todos. Estou convencido de que não existe nada mais estrutural na construção de um país do que a argamassa da solidariedade. E o Mesa Brasil demonstra que os setores expressivos da sociedade brasileira já tomaram consciência disso. Mais que uma opção, a solidariedade é um imperativo de transformação pacífica de uma sociedade.

A maior prova desse engajamento são os números alcançados na primeira fase do Mesa Brasil. O Sesc já implantou bancos de alimentos, como foi dito aqui, em 30 cidades, incluindo-se aí todas as capitais, como já foi ressaltado. Agora, deve iniciar o processo de interiorização do programa, que já arrecada mais de 570 toneladas de alimentos por mês; tem cerca de 750 empresas parceiras, envolve oito mil voluntários e beneficia quase 115 mil pessoas diariamente: 60% delas, jovens e crianças.

Quem subestima a relevância dos bancos de alimentos desconhece as grandezas em jogo. O desperdício na sociedade brasileira é uma fotografia escandalosa dos nossos desequilíbrios de renda. Excesso e escassez convivem lado a lado.

A ONU calcula que cerca de um quarto de todo alimento produzido no país é desperdiçado. Significa que 23% das frutas, verduras e legumes, ou 13 milhões de toneladas/ano, não são aproveitados. Mais de 20% da colheita de grãos --algo como 20 milhões de toneladas por safra, ficam perdidos entre o campo e a cidade.
Sem falar do descarte anual de treze milhões de toneladas de alimentos nos supermercados, além de mil toneladas sacrificadas diariamente nas feiras-livres. A mesma distorção se reproduz em ponto menor na vida de cada um de nós: 60% do lixo recolhido na área urbana é formado por alimentos não aproveitados. O resultado dessa absurda matemática da subtração é que o fosso do desperdício guarda comida suficiente para alimentar mais de trinta milhões de brasileiros famintos.

A mão invisível da solidariedade não pode tudo. Mas pode estabelecer uma ponte para estreitar as duas margens desse abismo - e transferir de onde sobra para onde falta. É isso que o Mesa Brasil tem feito em todo o país. E quem pensa que é uma simples fuga para a frente num país de desequilíbrios extremados, engana-se.

O Canadá é um dos países mais ricos do mundo. Mesmo assim, não descuida da ação solidária contra o desperdício e a favor dos excluídos: é uma opção humanista da sociedade. O Canadá possui uma central de bancos de alimentos informatizada, conduzida exclusivamente pela sociedade civil. Atende 800 mil pessoas por dia e --graças a uma experiência de vinte anos-- consegue redistribuir cargas e doações com a máxima eficiência, num território maior do que o Brasil.

Se a solidariedade é importante no país que tem o melhor índice de desenvolvimento humano do planeta, não podemos subestimar seu papel entre nós.

Meus amigos e minhas amigas, o governo está fazendo a sua parte. O programa Fome Zero já está presente em 1.277 municípios e cresce multiplicando ações e parcerias em várias frentes. Neste início de outubro, o Cartão-Alimentação foi pago a um milhão e setenta mil famílias. Trata-se de um salto de 43% em relação aos números de setembro. Mais de 174 mil famílias de sem-terra; quase quinze mil de quilombolas e cerca de onze mil e quinhentas famílias indígenas também receberam cestas de alimentos.

Dobramos o valor da merenda na pré-escola para beneficiar 4,3 milhões de crianças de quatro a seis anos. Iniciamos a construção de vinte e duas mil cisternas no Nordeste e, pasmem, em parceria com a Febraban. Exemplo de solidariedade. Até setembro, oitenta e duas grandes empresas credenciaram-se como parceiras do Fome Zero e quase seis milhões de reais foram doados ao combate à fome. Iniciamos aquisições de alimentos da agricultura familiar com recursos de R$ 400 milhões de reais para compra inicial de 150 mil toneladas.

Vamos comprar cerca de um milhão de litros de leite por dia de pequenos produtores para redistribuí-lo às populações carentes através das prefeituras. Uma rede de restaurantes populares está em implantação nas capitais brasileiras. É enorme o impacto transformador de ações como essas, que estão sendo semeadas em vários partes do Brasil.

Outro dia li num jornal que o dono de um salão de beleza, em Guaribas, no Piauí --onde foi iniciado o Fome Zero-- quer entrar para o livro dos recordes. E com razão: ele passou vinte e cinco horas, seguidas, penteando os cabelos e fazendo maquiagem nas moças do lugar.

Pode parecer um detalhe, mas quem já sofreu privação na vida sabe que a auto-estima só rebrota assim quando o futuro reaparece na linha do horizonte. Ninguém se cuida, penteia cabelo, troca de roupa, faz a barba, faz a unha, vai passear, dançar ou namorar se tudo em volta soa falso, triste e feio como uma roda gigante parada e sem luz. Esse tipo de coisa não acontece por acaso: o salão de beleza de Guaribas é um termômetro de um Brasil em ponto de mutação.

Nos municípios onde o Fome Zero já se consolidou uma vida nova está despontando. E as pessoas do lugar já estão usufruindo dos frutos da solidariedade e da mudança. Esse é um broto verde de esperança que nós vamos continuar regando e cuidando com carinho, para que ele se multiplique e anuncie aquilo que o Brasil tanto espera: a chegada da primavera social na vida da nossa gente.

Meus amigos e minhas amigas, não é fácil despertar, na sociedade brasileira, a solidariedade em um país onde, durante muitos anos, fomos educados a achar que a solução dos nossos problemas dependia da nossa individualidade. E muito mais difícil você ter um programa de combate à fome, num país onde mesmo as pessoas que estão com fome, não têm coragem de dizer que estão com fome.

Não é fácil, meu caro Antonio, presidente da Confederação, a gente fazer uma pessoa dizer que está com fome. Porque estar com fome não é não ter comido nada. O estar com fome é as pessoas não terem comido as calorias e as proteínas necessárias à sobrevivência humana. Muitas vezes a gente vê as pessoas comendo, como no Nordeste, comendo palmas, e a gente fala: essas pessoas estão comendo. Mas as calorias, e as proteínas que têm aquela comida que a pessoa está ingerindo? Às vezes nenhuma. E nós sabemos perfeitamente bem que incentivar as pessoas a comerem adequadamente significa deixar de investir dinheiro na área da saúde, para investir em outras coisas, porque quem come tem menos possibilidade de ficar doente do que quem não come.

Guaribas é um exemplo e nós citamos sempre Guaribas porque foi a primeira cidade. Guaribas tinha praticamente 250 crianças, que procuravam mensalmente os médicos, com diarréia. Isso baixou para 30 e poucas crianças. Guaribas tinha 35 crianças que morriam, para cada mil que nascia. Este ano, graças a Deus, não morreu nenhuma. E quem conhece as regiões mais pobres do país, sabe o que é a desnutrição; sabe o que é criança mal alimentada. Sabe o que é crianças em idade escolar que não conseguem aprender, porque não se alimentaram e, portanto, vão perdendo a sua visão.

Cuidar desse país não é se preocupar com as estatísticas, é se preocupar com o ser humano. Imaginem se todos os brasileiros e brasileiras tivessem a sensibilidade que vocês tiveram, construindo esse extraordinário programa chamado Mesa Brasil. É pouco ainda, Antonio, eu sei que vocês podem muito mais. Todos nós podemos, sempre, fazer mais do que nós fazemos. É apenas querer, é apenas ter vontade de fazer e as coisas acontecem. E eu acho que, sobretudo vocês, da área do comércio, têm muita clareza.

Eu, de vez em quando, perguntava para o meu amigo Oded, quando nós conversávamos, ainda no tempo que ele estava dirigindo a sua empresa, que tipo de freguês que vocês querem que entre na loja de vocês: aquele que só entra para olhar e sai do jeito que entrou, ou aquele que vai no supermercado e fica tentando comprar apenas produtos de segunda e terceira, sem ter o privilégio de colocar a mão num produto de primeira. Obviamente que, como comerciantes que são, todos gostariam que as pessoas comprassem tudo do bom e do melhor, porque é no bom e no melhor que a gente pode obter um preço mais compatível com a nossa sobrevivência. E esse é o desejo final.

Nós dizemos sempre: o programa Fome Zero, o programa que vocês criaram, o Mesa Brasil, nós sonhamos que um dia não precisemos mais dele. Nós sonhamos que um dia o povo possa trabalhar, ganhar o seu salário, comprar sua comida, levar para casa, sem precisar que a gente faça isso. Mas o que está acontecendo? Na verdade, nenhum país, por mais rico que seja, pode prescindir de um programa desses, porque se até no Canadá, que tem uma das maiores rendas per capita do mundo, tem gente que passa fome, imagina o nosso querido Brasil.

Então eu quero, meu caro Antonio, parabenizar a Confederação Nacional do Comércio, parabenizar as federações estaduais, parabenizar o Sesc, com a esperança que o gesto que vocês estão fazendo possa se multiplicar o mais rapidamente possível. Porque todos nós podemos esperar alguma coisa, mas quem está com fome não pode esperar.

Meus parabéns. Que Deus abençoe vocês, e que eu possa voltar aqui o ano que vem e receber números muito mais auspiciosos do que os de hoje. E que eu possa retribuir dando números muito mais auspiciosos do que os de hoje. E assim, quem sabe, todos nós serviremos de exemplo para aqueles que ainda são descrentes com a palavra chamada solidariedade.

Muito obrigado."
 

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