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28/12/2003 - 07h43

Artigo: Lula cumpre tudo o que não prometeu

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MARCELO COELHO
colunista da Folha de S.Paulo

Uma avaliação do governo Lula? Daria até para fazer um artigo equilibrado: não aconteceu nenhuma tragédia, afastou-se a ameaça de caos econômico. Quanto ao resto, os desacertos são normais, deu-se o necessário ajuste entre utopia e realidade, entre o velho sonho petista e as possibilidades concretas de mudança.

O artigo seria equilibrado, mas injusto. Durante os últimos 20 anos, o PT sempre acusou os governantes de inércia, de conformismo, de "falta de vontade política", de submissão aos interesses do FMI.

Bastava alguém mencionar o mundo econômico real, a ética da responsabilidade, o devagar-com-o-andor, o Roma-não-se-fez-num-dia e outras patranhas do tipo para que Lula partisse para o ataque, de dedo em riste, falando em nome dos milhões de desempregados e excluídos.

Não é justo tolerar neste governo o que o PT considerava intolerável nos governos anteriores. Mas tudo isso já foi dito e redito. Cai no vazio. Os índices de popularidade do presidente e do seu governo continuam muito altos; vive-se ainda um período em que toda crítica, por mais pertinente que seja, simplesmente não encontra repercussão política real.

Torna-se birra de jornalistas, de intelectuais e dos poucos "radicais" que sobram no partido. Exigir do governo, não digo coerência ideológica, mas certo pudor de atitudes, parece inócuo. E onde está o grande escândalo, afinal?

Sempre que Lula se candidatava a alguma coisa, tanto seus adversários quanto seus adeptos mais fervorosos concordavam num ponto. Era notório que Lula não iria pôr em prática nem metade do que dizia.

Na última campanha presidencial, até essa constatação se tornou desnecessária. Lula já havia parado de dizer coisa com coisa. Seu discurso era vazio, uma espécie de jingle sem produto, fusão lacrimejante de Walt Disney com Nelson Ned, papo-cabeça de Supla com o bispo Macedo, a senilidade de Fidel junto com os restos inaproveitados da última campanha malufista.

Agora, Lula está cumprindo rigorosamente o que não prometeu.
Imagino que sua popularidade se deva a esse fato: o de corresponder finalmente à ampla e majoritária vontade nacional de não-mudança que, ao longo de décadas, impedira-o de se eleger.

Há um alívio generalizado. Era difícil confessar que se votou em Lula por sentimentalismo, desfastio, comodidade mental, cristianismo atávico ou seja, por todos os motivos, especialmente os imaginários, mas nunca pela expectativa de mudar o país. Ao renegar qualquer vestígio de petismo, o governo sacramentou a idéia de que nada do que se afirma em política deve ser levado a sério.

Gostar de miséria é coisa de intelectual, dizia Joãosinho Trinta; mas não só isso. Gostar de programa partidário, gostar de coerência, gostar de criticar, gostar de não gostar, tudo isso sempre foi coisa de intelectual, especialmente de intelectual fora do poder.

O PT livrou-se dos seus intelectuais e se aboleta no poder. A maioria da população assiste embasbacada a esse milagre sublime: pela segunda vez em uma década, o grande inimigo do povo, o Intelectual de Esquerda --grilo falante ridículo e importuno, a postar-se de dono da verdade, ordenando-lhe que faça a revolução, que faça a greve, que faça a reforma social, que faça o diabo a quatro--, pois bem, esse inimigo foi duplamente derrotado e humilhado.

Da primeira vez (no governo Fernando Henrique) um intelectual frio, vaidoso, irônico e sem coração encarregou-se de desprezar seus pares. Agora, em ato supremo de justiça social, um homem do povo, um operário sem instrução, cheio de amor para dar, liberta-se do resto dessa patotinha universitária, desses fracassomaníacos, desses especialistas do negativismo, e entrega-se ao mundo maravilhoso dos carros oficiais, dos palácios de Brasília, dos banquetes, das viagens e das festas de casamento.

Enquanto o presidente e dona Marisa cumprem o script desse conto de fadas, outros dois segmentos tratam de se vingar dos intelectuais do PT: a burocracia partidária, que carregava o piano enquanto os teóricos... teorizavam, e os marqueteiros, que entraram tarde no barco, mas mostraram como é que se vence uma eleição.

Haja gosto pela prática! Lula e seu núcleo de "apparatchiks" se mostram os felizes protagonistas de uma novela de ascensão social; ingressaram com algum atraso ao clube que, oito anos antes, abrira suas portas ao tucanato. É a última parte de uma novela que começou há tempos. Seu enredo? A integração ao estamento burocrático dos elementos perseguidos pelo regime de 64.

Não é que o governo Lula esteja fazendo o mesmo que o de Fernando Henrique. Há diferenças.

Mas são como as diferenças entre a Globo e o SBT. Lula faz o fernandohenriquismo dos pobres. O falso brilho professoral foi substituído por uma didática pequeno-burguesa, travestida em sabedoria popular, em pronunciamento memorável do líder: "é preciso plantar para depois colher", "é devagar que se vai ao longe", "é de pequenino que se torce o pepino", "criança boazinha não faz xixi na cama" etc.

De FHC a Lula, o narcisismo bom-de-bico dá lugar a um contentamento de churrascaria; a arrogância no estilo da revista "Veja" cede às emoções mais autênticas de "Caras", e o cinismo ilustrado se desmancha em lágrimas de pura parvoíce.

A direita estava mentindo, quando dizia temer um governo feito de guerrilheiros radicais conduzido por não sei que tipo de inocente ou Dom Quixote. Na verdade, pensava-se no advento de um Exército de Brancaleone dominado por algum personagem de Peter Sellers. A realidade é outra: tem-se um comitê de burocratas e propagandistas profissionais fingindo que quem manda é Sancho Pança.
 

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