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15/08/2004 - 09h21

Mídia exagera contra conselho, diz intelectual

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MARTA SALOMON
da Folha de S.Paulo, em Brasília

O cientista político Fábio Wanderley Reis, 66, já animou um encontro de empresários com o então presidente Fernando Henrique Cardoso três anos atrás por escrever que Luiz Inácio Lula da Silva, caso eleito, poderia não terminar seu mandato, tão grandes as turbulências.

Surpreendido com o desempenho de um ano e meio de governo Lula, o doutor por Harvard (EUA) e professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) vê agora exagero nas reações às propostas de controlar a imprensa e a produção cultural do país, desde que o controle se limite a conter eventuais abusos dos jornais e a garantir qualidade aos produtos culturais financiados com verba pública.

"Não há como escapar de um esforço de construção institucional complexo", afirma.

Folha - O sr. está entre os que vêem inspiração autoritária nas recentes propostas do governo?
Fábio Wanderley Reis -
Eu acho que há um pouco de exagero na reação. Não descarto a possibilidade de que pela cabeça desta ou daquela liderança petista mais apegada à inspiração ideológica inicial do partido, o socialismo etc., haja lá seus laivos autoritários. Mas há matizes muito importantes no assunto. O ponto sensível da coisa tem a ver com até que ponto a liberdade de imprensa é cerceada. Obviamente existe algum perigo quanto a isso. O valor que representa uma imprensa livre, independente, afirmativa, aguerrida e combativa obviamente é algo da maior importância, como parte de um arsenal de garantias institucionais da democracia. Mas existe a possibilidade de a imprensa também de repente atropelar direitos civis.

Folha - Na sua opinião, a imprensa livre não seria um valor absoluto, como disse o ministro Luiz Gushiken (Secretaria de Comunicação e Gestão Estratégica)?
Reis -
Não, estou querendo dizer que existem justificativas para a busca de algum tipo de controle, algum tipo de regulação da imprensa. Basta pensar no que aconteceu no caso Alceni Guerra (ex-ministro da Saúde do governo Collor, acusado de corrupção) ou da Escola Base (cujos donos, em 94, foram alvo de falsa acusação de abusar sexualmente dos alunos). São casos de erros dramáticos. E não há uma ressonância correspondente na correção, é natural que seja assim.

Folha - A Justiça não dá conta de lidar com erros como esses?
Reis -
Acho que fica muito claro que não basta o recurso à Justiça contra eventuais abusos ou erros da imprensa. Ora, se falamos em controlar até o Judiciário, por que não tratar de que haja algum tipo de controle também da imprensa?

É possível fazer paralelo com a autonomia da universidade. A gente tem uma briga perene pela autonomia da universidade, para assegurar a chamada liberdade de cátedra, que o Estado não interfira no que é ensinado. Mas não significa que o Estado deva estar fora do controle de qualidade.

Folha - No caso da criação da Ancinav (Agência Nacional de Cinema e Audiovisual), com supostos poderes sobre o conteúdo da produção cultural do país, o sr. também encontra justificativa para a mão mais forte do Estado?
Reis -
Isso aí certamente é menos justificado do que no caso da preocupação com eventuais erros da imprensa e suas conseqüências. Na melhor das hipóteses, eu conseguiria imaginar como algo positivo do ponto de vista doutrinário, filosófico etc., que houvesse algum controle de qualidade no caso de haver financiamento público. O Estado põe dinheiro público, sei lá, para financiar um filme ou o que quer que seja, é natural que haja algum exame, algum acompanhamento, alguma garantia de que você tenha produção de boa qualidade. É algo muito diferente disso e perigoso a tentativa de orientar quanto ao conteúdo e há um pouco disso no projeto, uma certa preocupação nacionalista, de conteúdo social, algo dificilmente defensável.

Folha - Há uma mesma lógica para as duas propostas e outras igualmente recentes, como aquela que proíbe a divulgação do conteúdo de grampos telefônicos?
Reis -
Quanto aos grampos, a preocupação de que não haja divulgação precoce de investigações vai na mesma direção do que eu dizia a respeito dos eventuais erros da imprensa. Eu acho que a denúncia da tentativa de mordaça envolve um certo exagero porque aí sim haveria um perigo. Os direitos civis estão sendo afetados, sem a menor dúvida, quando precipitadamente, este ou aquele membro do Ministério Público sai divulgando indícios.

Em geral, juntando as iniciativas, a agência, o conselho, a única maneira de ver uma intenção comum seria naquela direção de que eu falei no início. A idéia de que você teria num governo petista pessoas imbuídas de uma ótica autoritária, de inspiração socialista stalinista, buscando o exercício de alguma coisa que acabaria sendo totalitária. Mas é difícil pretender que isso seja o caso da agência, tendo em vista o conjunto de pessoas que estão envolvidas.

Folha - Pessoas, no caso, é o ministro Gilberto Gil?
Reis -
Eu acho difícil atribuir ao Gil, por exemplo, esse tipo de motivação. Eu definitivamente não quero excluir a possibilidade, inclusive isso é um fato, existe esse tipo de mentalidade em muita gente ligada ao PT. A gente tem experiência de ver certas práticas com relação à educação. Houve denúncias de totalitarismo. Provas de seleção de professores por múltipla escolha em que a resposta certa era uma resposta percebida como ideologicamente certa pelos autores do teste. Coisas desse tipo, algo inaceitável. Pode haver um pouco dessa motivação nas iniciativas, mas é bom atentar para os matizes e não dá para jogar tudo no mesmo saco.

A coisa acaba podendo ser resumida em algo que pegue a essência da coisa. No geral, você teria necessidade para garantir a democracia, os direitos civis etc, não há como escapar de um esforço de construção institucional complexo. A idéia dos freios e contrapesos, em que você cria entidades diversas, contrapõe um poder ao outro etc etc e cria uma séria de instâncias em que umas controlam as outras.

Folha - Entrariam aí tanto a agência como o conselho?
Reis -
Claro, como parte desse jogo institucional complexo.

Folha - E pode servir para impor censura?
Reis -
Pois é, existe risco por aí. Mas a maneira de neutralizar isso seria ver a coisa debatida de maneira apropriada, eventualmente o conselho ter representação diversificada. O que dá para dizer num nível genérico é que não se pode abdicar de um esforço de construção institucional complexo. A coisa é a complicada e a resposta tem de ser necessariamente complicada também.

Folha - Não haveria contradição entre a política econômica liberal do PT e a ação intervencionista no domínio cultural e da opinião?
Reis -
Acho que na verdade isso acaba sendo parte de uma certa síndrome a que um governo petista estaria necessariamente exposto nessas circunstâncias. Por um lado, ele evidentemente é suspeito aos olhos da direita, dos setores mais conservadores da sociedade, inclinados a ver totalitarismo em muita coisa, porque afinal de contas o PT é o herdeiro das suspeitas que havia anteriormente com relação ao risco de revolução. Por outro lado, cobra-se do PT, no espectro da esquerda, a fidelidade a um certo ideário da esquerda. Então o PT acaba preso por ter cão e por não ter cão.

Folha - Três anos depois de pensar que Lula poderia não terminar o mandato caso eleito, o sr. se surpreendeu com o desempenho de um ano e meio de gestão petista?
Reis -
Eu te confesso que sou surpreendido positivamente. Porque eu tinha muito temor em relação a que um desses lados dessas suspeitas em relação ao PT, o lado mais à direita, prevalecesse, e a gente tivesse muito mais turbulência. Nesse sentido, a moderação que o PT mostrou em aplacar as suspeitas dos meios financeiros está sendo bem-sucedida. Bem ou mal há alguma perspectiva de o Brasil ter crescimento estável.

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