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05/09/2004
-
05h48
FLÁVIA MARREIRO
da Folha de S.Paulo
Geografia, no caso da pobreza, pode ser destino. Pobres com a mesma renda, no centro expandido de São Paulo ou no Jardim Ângela (zona sul), têm horizontes de vida diferentes --com larga vantagem para o primeiro grupo.
Quem sustenta o diagnóstico é o sociólogo Eduardo Marques, pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e professor da USP. Ele prepara com Haroldo Torres o livro "São Paulo: Segregação, Pobreza e Desigualdades Sociais".
Marques defende que o território é um dos fatores de reprodução da pobreza e deve ser critério na escolha dos alvos das políticas sociais.
Há pontos, diz ele, onde investimento deve ser maciço para ter efeito --mesmo que isso custe deixar fora, momentaneamente, potenciais beneficiários em outras áreas.
Folha - O sr. defende que se use um critério territorial para alocar programas sociais. Por quê?
Eduardo Marques - Baseado em um diagnóstico complexo, de que a pobreza não apenas se espacializa, se espraia como um tapete, mas tem no território uma de suas facetas. É possível comprovar isso estatisticamente e também com estudos qualitativos: grupos igualmente pobres em locais diferentes têm horizontes diferentes. Isso tem a ver com contato. A segregação muito intensa causa uma homogeneidade muito grande, faz com que não tenha contatos. São os contatos que trazem o emprego, a troca entre modos de vida, a intensidade das relações sociais, o fluxo de riqueza para dentro de comunidades pobres. Um dos elementos constitutivos da pobreza é sua dimensão territorial. Defendemos que não só as políticas de renda mas as políticas sociais em geral tenham o território como lógica. Assim consegue-se combater essa faceta de reprodução da pobreza que tem a ver com o próprio território: concentrando recursos em lugares, que, pela cumulatividade das precariedades, tendem a sorver dinheiro. Qualquer coisa que você coloque em lugar muito precário, os "hot spots", desaparece. Para tirar o lugar daquela situação, você tem de fazer um esforço concentrado.
Folha - Mesmo que essa escolha signifique deixar pessoas nas mesmas condições fora do programa?
Marques - Sim. Na verdade, a política social é sempre assim: pode-se fazer isso implicitamente ou explicitamente. O cientista Wanderley Guilherme dos Santos diz que a política social é um conjunto de escolhas trágicas porque sempre há hierarquia de um problema em relação ao outro, e dentro do problema um grupo social em relação a outro. A questão é se se controla o critério de hierarquização, de maneira a fazer da forma mais eficiente e poder aplicar, depois, em outro lugar.
Folha - Como se situa a escolha territorial no debate universalização versus focalização das ações?
Marques - Esse é um falso debate. Existem dois sentidos possíveis para a palavra focalização. O primeiro deles é ser o inverso da universalização no sentido dos direitos: reduzir o escopo dos beneficiários de uma política universal, ligada às discussões sobre neoliberalismo. A outra dimensão é constitutiva de qualquer política: o estabelecimento de prioridades. Em qualquer ação pública, o gestor indica o que ele vai fazer naquele ano. Ele não está negando o direito das pessoas que estão fora daquele lugar, só não está fazendo lá agora. E por que o segundo sentido é importante? Porque um dos problemas graves do sistema de proteção social é o erro de mira. Melhorar a mira é absolutamente fundamental. Infelizmente, no debate, essas duas questões ficaram misturadas. Toda vez que se vai falar de estratégias de encontrar o alvo não está se falando de negar direitos. Acertando o alvo, a possibilidade de aplicar bem e sobrar dinheiro é muito maior.
Folha - Nesse argumento está embutida a idéia de restrição orçamentária. Antes de tudo, não é preciso mais dinheiro?
Marques - Sim e não. Se tivesse mais dinheiro, atingiria mais gente. Coisa diferente é conseguir aplicar bem o dinheiro. Por exemplo, fizemos para seis secretarias de Educação de SP estudo de compatibilidade entre oferta e demanda. Há uma dinâmica demográfica muito intensa na população metropolitana. A população está envelhecendo muito e, em alguns lugares, cai a taxa de fecundidade. Há lugares em que há equipamentos para crianças muito pequenas e não há criança pequena e as secretarias não sabem. Se você consegue estudar onde está a demanda e a oferta, consegue sugerir para as secretarias que convertam equipamentos.
Folha - Qual impacto do Bilhete Único e outras ações de transporte na questão da segregação?
Marques - Ninguém tem idéia do quanto é [o impacto]. Ninguém consegue afirmar. A distribuição das atividades no território acontece baseada nos mercados de terra formal e informal --a ilegalidade também tem preço, casa na favela também custa caro. Nos valores da terra estão embutidos custos de transporte. Então quando você muda tão radicalmente os custos de transporte como o Bilhete Único, muda potencialmente a localização de uma enorme quantidade de grupos sociais e atividades econômicas, especialmente as de baixa renda. Em atividades econômicas empregadoras de baixa renda, que é quem usa transporte e que tem esses custos como significativos: é possível que a distância econômica se encurte. Os locais de classe média e de classe média baixa tendem a ficar mais baratos, porque perdem a vantagem que tinham da proximidade. E os de renda baixa tendem a ficar mais caros.
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da Folha de S.Paulo
Geografia, no caso da pobreza, pode ser destino. Pobres com a mesma renda, no centro expandido de São Paulo ou no Jardim Ângela (zona sul), têm horizontes de vida diferentes --com larga vantagem para o primeiro grupo.
Quem sustenta o diagnóstico é o sociólogo Eduardo Marques, pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e professor da USP. Ele prepara com Haroldo Torres o livro "São Paulo: Segregação, Pobreza e Desigualdades Sociais".
Marques defende que o território é um dos fatores de reprodução da pobreza e deve ser critério na escolha dos alvos das políticas sociais.
Há pontos, diz ele, onde investimento deve ser maciço para ter efeito --mesmo que isso custe deixar fora, momentaneamente, potenciais beneficiários em outras áreas.
Folha - O sr. defende que se use um critério territorial para alocar programas sociais. Por quê?
Eduardo Marques - Baseado em um diagnóstico complexo, de que a pobreza não apenas se espacializa, se espraia como um tapete, mas tem no território uma de suas facetas. É possível comprovar isso estatisticamente e também com estudos qualitativos: grupos igualmente pobres em locais diferentes têm horizontes diferentes. Isso tem a ver com contato. A segregação muito intensa causa uma homogeneidade muito grande, faz com que não tenha contatos. São os contatos que trazem o emprego, a troca entre modos de vida, a intensidade das relações sociais, o fluxo de riqueza para dentro de comunidades pobres. Um dos elementos constitutivos da pobreza é sua dimensão territorial. Defendemos que não só as políticas de renda mas as políticas sociais em geral tenham o território como lógica. Assim consegue-se combater essa faceta de reprodução da pobreza que tem a ver com o próprio território: concentrando recursos em lugares, que, pela cumulatividade das precariedades, tendem a sorver dinheiro. Qualquer coisa que você coloque em lugar muito precário, os "hot spots", desaparece. Para tirar o lugar daquela situação, você tem de fazer um esforço concentrado.
Folha - Mesmo que essa escolha signifique deixar pessoas nas mesmas condições fora do programa?
Marques - Sim. Na verdade, a política social é sempre assim: pode-se fazer isso implicitamente ou explicitamente. O cientista Wanderley Guilherme dos Santos diz que a política social é um conjunto de escolhas trágicas porque sempre há hierarquia de um problema em relação ao outro, e dentro do problema um grupo social em relação a outro. A questão é se se controla o critério de hierarquização, de maneira a fazer da forma mais eficiente e poder aplicar, depois, em outro lugar.
Folha - Como se situa a escolha territorial no debate universalização versus focalização das ações?
Marques - Esse é um falso debate. Existem dois sentidos possíveis para a palavra focalização. O primeiro deles é ser o inverso da universalização no sentido dos direitos: reduzir o escopo dos beneficiários de uma política universal, ligada às discussões sobre neoliberalismo. A outra dimensão é constitutiva de qualquer política: o estabelecimento de prioridades. Em qualquer ação pública, o gestor indica o que ele vai fazer naquele ano. Ele não está negando o direito das pessoas que estão fora daquele lugar, só não está fazendo lá agora. E por que o segundo sentido é importante? Porque um dos problemas graves do sistema de proteção social é o erro de mira. Melhorar a mira é absolutamente fundamental. Infelizmente, no debate, essas duas questões ficaram misturadas. Toda vez que se vai falar de estratégias de encontrar o alvo não está se falando de negar direitos. Acertando o alvo, a possibilidade de aplicar bem e sobrar dinheiro é muito maior.
Folha - Nesse argumento está embutida a idéia de restrição orçamentária. Antes de tudo, não é preciso mais dinheiro?
Marques - Sim e não. Se tivesse mais dinheiro, atingiria mais gente. Coisa diferente é conseguir aplicar bem o dinheiro. Por exemplo, fizemos para seis secretarias de Educação de SP estudo de compatibilidade entre oferta e demanda. Há uma dinâmica demográfica muito intensa na população metropolitana. A população está envelhecendo muito e, em alguns lugares, cai a taxa de fecundidade. Há lugares em que há equipamentos para crianças muito pequenas e não há criança pequena e as secretarias não sabem. Se você consegue estudar onde está a demanda e a oferta, consegue sugerir para as secretarias que convertam equipamentos.
Folha - Qual impacto do Bilhete Único e outras ações de transporte na questão da segregação?
Marques - Ninguém tem idéia do quanto é [o impacto]. Ninguém consegue afirmar. A distribuição das atividades no território acontece baseada nos mercados de terra formal e informal --a ilegalidade também tem preço, casa na favela também custa caro. Nos valores da terra estão embutidos custos de transporte. Então quando você muda tão radicalmente os custos de transporte como o Bilhete Único, muda potencialmente a localização de uma enorme quantidade de grupos sociais e atividades econômicas, especialmente as de baixa renda. Em atividades econômicas empregadoras de baixa renda, que é quem usa transporte e que tem esses custos como significativos: é possível que a distância econômica se encurte. Os locais de classe média e de classe média baixa tendem a ficar mais baratos, porque perdem a vantagem que tinham da proximidade. E os de renda baixa tendem a ficar mais caros.
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