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07/03/2005 - 09h44

Melhor saída para a Febem é a extinção, defende psicóloga

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VICTOR RAMOS
da Folha de S.Paulo

A Febem deveria ser extinta para que uma nova instituição, baseada em outros fundamentos e com uma nova mentalidade, abrigasse os adolescentes acusados de ato infracional. A opinião é da psicóloga Maria de Lourdes Trassi Teixeira, doutora pela PUC-SP na área de adolescência e violência.

Para a psicóloga, a reestruturação pela qual passa a Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), determinada pelo governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), é insuficiente para recuperá-la, em razão do histórico de violência contra os internos que há na instituição.

Teixeira também afirmou ter havido demora e omissão do governo Alckmin e de seus antecessores na busca de solução para a Febem, que nas últimas semanas enfrentou uma seqüencia de fugas e rebeliões depois do anúncio da demissão de 1.1751 funcionários. Leia abaixo a entrevista concedida pela psicóloga à Folha, em seu escritório em Perdizes.

Folha - Como a senhora avalia a reestruturação da Febem, com a demissão de 1.751 funcionários e a separação das funções de segurança e de educador?
Maria de Lourdes Trassi Teixeira
- A reestruturação é muito importante, mas não suficiente. A demissão dos funcionários é uma medida de força que, considerando a história da instituição, eu penso que não daria para ser diferente. Este ano o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] completa 15 anos e a Febem continua distante daquilo que ele propõe com relação ao autor de ato infracional em cumprimento de medida de internamento.

Folha - O que é necessário como complemento das medidas já tomadas na reestruturação?
Maria de Lourdes
- Só substituir o pessoal não é suficiente. É necessário que as pessoas que estão assumindo tenham qualificação e que todos trabalhem de acordo com uma proposta única. Nesse momento de crise há informações de que houve demissões, outras de que alguns funcionários voltarão.
Isso cria um clima de instabilidade e insegurança que contamina os adolescentes. Agora, a questão da segurança é fundamental para conter, inclusive, essas expressões mais ousadas e violentas dos adolescentes, que também se aproveitam da situação. Mas é necessário um projeto de médio e longo prazo. Para onde vai essa instituição? Ou é possível pensar em outra instituição?

Folha - A senhora acredita que a extinção da Febem é o caminho?
Maria de Lourdes
- Penso que sim e defendo isso. Essa instituição carrega a estrutura, o modo de funcionar e a sua história. É um peso muito grande para haver uma reformulação radical. Eu penso que não vale a pena reformar aquilo que existe. Já foram feitas várias tentativas nesse sentido e fracassaram. Na década de 70, início de 80, tivemos várias rebeliões. No governo Montoro, uma grande equipe entrou na Febem, desde a presidência passando por diretores e educadores, numa tentativa de reformular, aperfeiçoar. Mas tem um caldo de cultura da violência que acaba permanecendo. E ao longo da década de 90 isso tem ficado cada vez mais grave. O sindicato dos funcionários foi adquirindo muita força. E o sindicato, que na sua origem tinha uma posição muito avançada em relação ao estatuto, foi perdendo essa qualidade e acabou se instrumentalizando, atuando, por exemplo, na indústria da hora extra.
Tomaram posse do sindicato e, mais de uma vez, quando colocada pela Febem a possibilidade de corte de horas extras, os funcionários avisavam que teria rebelião. Nesse aspecto, as rebeliões acabam sendo de interesse de setores dos próprios trabalhadores. Isso constitui um quadro muito grave. Eu diria que hoje é uma instituição furiosa.

Folha - Existem exemplos de outros países a serem seguidos?
Maria de Lourdes
- Nem precisa ir para outros países. Poderia ver o exemplo do Rio Grande do Sul e o processo de desmontagem da instituição e a montagem de uma nova, a partir de um novo paradigma, desde os fundamentos. Claro que com os 6.000 adolescentes (em São Paulo) não é possível fazer de uma hora para outra, mas é algo que se pode ir criando, dando um estatuto jurídico e ir repassando os meninos para essa outra instituição. Um reordenamento dessa ordem não se faz por decreto. Dizem que não dá para comparar porque no Rio Grande do Sul eram 800 adolescentes, aqui são 6.000, mas o valor dessa experiência é mostrar que é possível, assim como certas unidades de São Paulo também mostram.

Folha - É preciso diminuir o tamanho das unidades?
Maria de Lourdes
- Com certeza, isso está inclusive no ECA. São várias condições necessárias para constituir essa passagem. Um novo paradigma, baseado no estatuto, outra mentalidade, que seja progressiva. Isso não quer dizer que não tenha que ter segurança. Os meninos, até por conta de todas essas histórias, das torturas, estão cada vez mais bravos e perigosos. É preciso um projeto, qualificação de pessoal, unidades pequenas. Separar melhor os adolescentes por idade, por infração cometida. E trabalhar com os desejos, os sonhos dos adolescentes nos projetos sócio-educativos. Em relação ao pessoal, é importante dizer que troca-se o presidente da instituição e o educador lá do pátio. Mas entre os dois tem muitos trabalhadores: coordenares, pedagogos, assistentes sociais, psicólogos, diretores. Precisa prestar atenção em quem são esses personagens.

Folha - Quando o ECA completou dez anos, a senhora escreveu que a Febem era um sistema prisional. Cinco anos depois, continua sendo?
Maria de Lourdes
- Neste momento ainda se caracteriza por um sistema carcerário. Até porque no momento não dá para esses adolescentes que estão sendo estimulados, incitados pela manipulação de informação, discutirem as regras de uma unidade. O que dá neste momento de transição é assegurar a dignidade. Erradicar a tortura já é um passo. Garantir a dignidade é pedagógico, terapêutico. No momento de crise, tem que garantir o básico: alimentação, sono, saúde, vestuário.

Folha - Alguns funcionários reconvocados tinham registro de tortura. Houve precipitação?
Maria de Lourdes
- A Febem já estava treinando pessoas para entrar lá. Uma medida dessas, mesmo pensada sem precipitação, sempre corre o risco de equívocos e injustiças, que podem ser reparados. Não podemos dizer peremptoriamente se foi equivocado ou não, mas chama a atenção que torturadores tenham sido reconvocados. Quem colocou na lista? Eu não acredito que todos os torturadores tenham saído da Febem. A varredura não deve ter sido completa. Afinal, como se justificam tantas rebeliões agora?

Folha - Existem suspeitas de que funcionários que ainda estão na instituição estejam incitando as rebeliões. A senhora acredita nisso?
Maria de Lourdes
- Acredito que seja possível. Eu não tenho a informação, mas tudo aponta nessa direção. Na minha experiência dentro da Febem nas décadas de 70 e 80, vivi muitas rebeliões, dirigindo unidades. E já existia isso de que uma demissão de funcionários comprometidos não só com práticas de violência, mas também com tráfico de drogas e armas para os adolescentes, provoca distúrbios. Há muito corporativismo.

Folha - Existem elementos que se repetem na origem de uma rebelião ou de uma fuga? Nessa transição, por exemplo, os adolescentes devem estar sentindo uma certa fragilidade por parte dos funcionários novos.
Maria de Lourdes
- Para o menino que está em privação de liberdade, o "mundão" é sempre o seu desejo maior. Tendo isso como pressuposto, os desencadeadores de uma rebelião são: alguma perspectiva mais concreta que ele tem, como a fragilidade de novos funcionários, uma falha na vigilância ou uma situação de terror, de que eles vão ser espancados, torturados. Há também situações em que são insuflados. É preciso perceber que os meninos estão cada vez mais violentos. O adolescente de 2005 não é o menino com quem eu trabalhei na década de 70 nem na de 80. As condições estão mais duras para eles sobreviverem dentro e fora da instituição. Não é só a tortura física. Há a humilhação, que vai transformando o adolescente de fato no personagem perigoso que a gente supõe que ele seja.

Folha - Às vezes parte da opinião pública associa os defensores dos direitos dos adolescentes a uma certa permissividade dada a eles. Como a senhora avalia isso?
Maria de Lourdes
- Eu sou radicalmente adepta da dignidade humana. Não é possível nenhuma neutralidade, nenhuma conivência com qualquer forma de violência, física ou psíquica. Mas, ao mesmo tempo, eu penso que esses adolescentes cometeram ato infracional e devem ser responsabilizados. A medida de privação de liberdade é séria e grave. Para conseguir tratá-los, são necessários limites muito claros, adultos que saibam lidar com a questão da autoridade, que tenham manejo dos grupos, controle sobre eles. E, neste momento de crise, penso que a segurança fica mais rígida. Tem que ter autoridade, sim.

Folha - A senhora acredita que o governo do Estado demorou em tomar medidas em relação à Febem?
Maria de Lourdes
- Com certeza, não só esse como os anteriores. Com certeza o governo (Alckmin) demorou e isso é indesculpável. Mas estão demorando há décadas, não foi só o Alckmin. É uma responsabilidade histórica. Nós temos, toda a sociedade, de aproveitar essa hora para fazer a virada. Se a gente não aproveitar, nós vamos demonstrar a mais profunda incompetência política, técnica, ética, de toda a ordem.

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