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29/12/2003 - 08h09

Cozinha muda biologia da espécie humana

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CLAUDIO ANGELO
da Folha de S.Paulo, em Cambridge (EUA)

A humanidade pode ter bem mais que um pé na cozinha. Para um pesquisador dos EUA, o uso do fogo para preparar alimentos foi um fator central na evolução do gênero humano e deixou marcas tão profundas na biologia dos nossos ancestrais que hoje o homem moderno não pode sobreviver sem cozinhar.

Richard Wrangham, professor de antropologia evolutiva na Universidade Harvard, afirma que a invenção da comida assada, há cerca de 2 milhões de anos, disparou a humanização dos antecessores do Homo sapiens. A inovação culinária explicaria desde a estrutura da sociedade humana, organizada em famílias nucleares (diferentemente de outros primatas), até certos traços distintivos da anatomia da espécie, como o sistema digestivo curto e a semelhança de tamanho entre homens e mulheres.

A hipótese é arriscada e difícil de testar, especialmente porque os cozinheiros primordiais não estão mais por aí para testemunhar a história. "Mas, quando você põe todas as evidências juntas e olha para elas, fica difícil pensar de modo diferente", diz Wrangham, um britânico que estuda chimpanzés em Uganda desde a década de 1970, em busca de pistas sobre a evolução da natureza humana, e que deve publicar suas idéias paleoculinárias num livro previsto para sair em 2004.

As evidências a que o pesquisador se refere vão desde diferenças no formato dos dentes dos humanos, reduzidos em relação aos dos chimpanzés, até o número de horas gastas pelas duas espécies com suas refeições. Crudistas inveterados, os macacos africanos passam uma média de seis horas por dia mastigando. Seres humanos geralmente levam um sexto disso --o que alguns amantes de fast food poderão considerar já um tanto exagerado.

Num estudo publicado neste ano na revista "Comparative Biochemistry and Physiology" (www.elsevier.com/locate/cbpa), Wrangham e uma colega de Harvard, NancyLou Conklin-Brittain, sugerem que os humanos desenvolveram adaptações genéticas para comer alimentos cozidos ou assados e que cozinhar, hoje, é obrigatório para a espécie. Nenhum grupo caçador-coletor conhecido vive sem cozinhar, e quem escolhe deliberadamente uma dieta de comida crua sofre de carência energética.

Ao tornar a comida mais digerível por meio do rompimento de fibras em vegetais e do amaciamento da carne, o fogo permite extrair mais energia da dieta mais rapidamente. Num cálculo feito pela dupla, uma mulher de 54,5 quilos e estilo de vida urbano e sedentário precisaria comer 5 quilos de vegetais crus para suprir suas necessidades diárias de 2.000 calorias. Com vegetais cozidos, essa quantidade cai para a cifra mais razoável de 1,9 quilo.

O hábito faz o gene

Segundo Wrangham, a influência do fogo na evolução humana tem sido ignorada pelos antropólogos, em grande parte, pelo fato de que o hábito de cozinhar é considerado recente demais. Tem 250 mil anos, no máximo, pouco tempo para ser incorporado (inscrito nos genes) pela seleção natural.

O grupo de Harvard acredita que o fogo tenha sido dominado e usado para cozinhar há cerca de 1,9 milhão de anos. A época é crucial na história da humanidade, porque marca o surgimento do Homo erectus, o primeiro primata a descer totalmente das árvores nas savanas da África e a andar ereto sobre duas pernas por longas distâncias sem se cansar.

"Nesse período nós perdemos as adaptações para a vida nas árvores", diz Wrangham. "Passamos a ter de dormir no chão, o que é complicado porque o lugar está cheio de predadores", afirma. "Uma vez dominado o fogo, isso fica fácil, e cozinhar deve ter surgido como consequência."

O cru e o roubado

A partir daí, teorizam os pesquisadores, um mundo novo se abriu para os hominídeos. Em vez de todos os membros de um grupo passarem o dia inteiro procurando folhas, frutas frescas e pequenos mamíferos para abater, os primatas cozinheiros puderam se dar o luxo de reduzir o tempo das refeições e armazenar comida.

Isso possibilitou a divisão sexual do trabalho, com os homens encarregados de providenciar alimentos escassos e de alto valor nutricional (pela caça) e as mulheres responsáveis pela base do cardápio (coleta). Tal divisão persiste entre humanos modernos. A inovação trouxe outro problema: o roubo dos estoques de comida das fêmeas por machos famintos ou outras fêmeas.

A hipótese de Wrangham e seus colegas é que a seleção natural resolveu o problema da proteção dos recursos com o sistema de acasalamento humano. Ao mesmo tempo em que ficaram maiores, diminuindo a diferença de tamanho em relação aos homens --fêmeas de outros grandes primatas são muito menores--, as mulheres deram um jeito de ter sempre um homem por perto para vigiar a despensa.

Isso explicaria por que elas são sexualmente atraentes em todas as fases do ciclo menstrual, enquanto fêmeas de gorila e chimpanzé só excitam os machos no período fértil.

Hipótese problemática

Wrangham reconhece que a hipótese tem problemas. Inferências sobre o comportamento de populações extintas sempre são imprecisas. E faltam evidências no registro arqueológico.

"A arqueologia tem estado silenciosa até agora. Nenhum vestígio de fogueira de 1,9 milhão de anos foi encontrado", diz. Por outro lado, testes genéticos que comparem os sistemas digestivos de humanos e chimpanzés podem esclarecer até que ponto cozinhar é um traço biológico.

"Há um estudo recente mostrando que o fígado humano teve mais mudanças no padrão de expressão de proteínas [ou seja, na forma como os genes são ativados] do que o cérebro", anima-se. "Seria notável que algo tão grande tenha acontecido sem nos alterar biologicamente."
 

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