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17/02/2004 - 06h30

Genética transforma rato em "superatleta"

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REINALDO JOSÉ LOPES
enviado especial da Folha de S.Paulo a Seattle (EUA)

Experiências com ratos anunciadas ontem nos Estados Unidos abrem a possibilidade de transformar atletas em algo mais que humanos, por meio da manipulação genética. O objetivo dos cientistas, embora nobre (combater doenças musculares degenerativas), pode ter como subproduto uma forma de doping mais eficaz e hoje impossível de detectar.

A nova ameaça ao esporte se chama IGF-1 (fator de crescimento semelhante à insulina-1, na abreviação em inglês). É uma das moléculas envolvidas no crescimento e no reparo de células e fibras musculares que respondem, em grande parte, pela potência do chute de Ronaldinho ou das braçadas de Fernando Scherer.

Lee Sweeney, da Universidade da Pensilvânia (EUA), apresentou os efeitos do IGF-1 em ratos durante a 170ª Reunião Anual da AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência, na sigla em inglês), que terminou ontem em Seattle, no noroeste dos EUA.

Atenção indesejada

Embora os resultados só devam ser publicados oficialmente na edição do mês que vem da revista científica "Journal of Applied Physiology" (www.jap.org), o trabalho original de Sweeney com ratos já havia atraído uma atenção indesejada, conta o pesquisador: "Em geral, metade dos e-mails que recebemos vêm de pacientes com distrofia e atrofia musculares, e a outra metade, de atletas".

"As coisas que estamos desenvolvendo tendo doenças em mente podem um dia ser usadas para incremento genético do desempenho atlético", disse.

A equipe usou um tipo de vírus conhecido como adeno-associado, comum nos vários testes de terapia genética feitos até hoje. Ele funcionou como um táxi de DNA, encarregado de levar e instalar no organismo do roedor o gene cuja seqüência de "letras" químicas especifica a receita para produzir o IGF-1.

O vírus, injetado diretamente nos músculos das patas traseiras que os cientistas queriam estimular, inseriu a seqüência do IGF-1 no genoma (coleção completa dos genes) das células dos animais, que passaram a produzir o IGF-1.

Os pesquisadores se puseram então a examinar os efeitos da transferência gênica nos roedores que eram sedentários e nos que faziam exercícios (numa daquelas típicas rodinhas de andar comuns em gaiolas de "hamsters" ou camundongos de estimação).

Mesmo para os mais preguiçosos dos ratos, a manipulação genética foi capaz de criar um aumento da massa e da força musculares que ia de 15% a 30%, afirma Sweeney. Quando os bichos, no entanto, eram postos para malhar, a melhora resultante foi quase o dobro do que se verificava num animal não-modificado. Além disso, a alteração se mantinha durante todo o (curto) ciclo de vida dos ratos e não diminuía significativamente com a idade.

As repercussões de uma mudança dessas num atleta humano são consideráveis. Para começar, ele poderia se recuperar de forma muito mais rápida de grandes esforços em treinos ou competições, já que o IGF-1 também influi na capacidade de auto-reparo das fibras musculares.

Doping perfeito

Mais que isso: se injetado diretamente no músculo, o vírus não deixa traços (nem do fator de crescimento) na corrente sangüínea ou na urina, de forma que o único modo de flagrar esse superdoping seria invasivo: fazer uma biópsia muscular do atleta. "Eles [os esportistas] basicamente seriam capazes de escapar do antidoping", avalia Sweeney.

Segundo Richard Pound, da Agência Mundial Antidoping e da Universidade McGill, no Canadá, as regras antidoping atuais já proíbem o uso de manipulação genética para melhorar o desempenho esportivo. Com uma técnica aparentemente indetectável como a de Sweeney, a legislação correria, aparentemente, o risco de virar letra morta.

"Nós gostaríamos de acompanhar [a pesquisa] desde cedo e de ajudar a regulamentá-la", disse Pound, da agência antidoping. "Vamos arranjar um jeito."

A coisa toda é, na verdade, muito mais complicada, diz o fisiologista da Filadélfia. "Essa não é uma intervenção que o atleta seria capaz de fazer na sua própria garagem", afirma Sweeney. A tecnologia e o controle biológico necessários para realizar a modificação são complicados, e os resultados beiram o imprevisível.

Ainda que os ratos geneticamente "bombados" tenham mostrado saúde perfeita, as experiências recentes com técnicas de geneterapia mostram que os vírus usados como vetores podem alojar o trecho de DNA que carregam nos lugares mais desastrosos.

Foi o que aconteceu no ano retrasado na França. Meninos geneticamente tratados contra uma séria deficiência do sistema de defesa do organismo (os chamados meninos da bolha) acabaram adquirindo uma leucemia por efeito de uma malfadada inserção do gene-remédio em seu DNA.

Além disso, Sweeney disse que a técnica pode acarretar risco de problemas cardíacos e, talvez, de câncer. "Não está claro quais os riscos que estão associados com tal uso [doping]."

Questão ética

Outra questão, se a técnica se mostrar segura nas próximas décadas: haveria mesmo algo de inerentemente imoral em usá-la? Afinal, disse um dos jornalistas presentes à apresentação de Sweeney, algumas pessoas nascem com músculos naturalmente mais potentes. Por que seria injusto dar aos competidores uma chance de se igualar a elas?

"Isso realmente tem a ver com o tipo de esporte e de sociedade que queremos ter", filosofou o bioeticista Thomas Murray, do Centro Hastings (EUA). "É um divisor de águas para definir os valores de superação e de talento individual que fazem do esporte essa coisa que nos fascina."

Para Sweeney, quando a segurança do tratamento estiver comprovada para pacientes, será difícil conter sua disseminação pela população sadia: "Nessa altura é provável que a posição de nossa sociedade sobre a questão do aperfeiçoamento genético seja muito diferente da de hoje".
 

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