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18/04/2004 - 07h12

Ciclone Catarina pode indicar mudança irreversível do clima da Terra

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Carlos Nobre
Reinaldo Haas
especial para a Folha de S.Paulo

Algum tempo há de transcorrer até que a ciência possa entender claramente e classificar o acontecimento popularmente denominado "fenômeno Catarina", que afetou partes da costa de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul nos dias 27 e 28 de março. Ventos de até 180 km/h causaram destruição sem precedentes naquela faixa costeira: 1.468 construções destruídas (várias delas de alvenaria), mais de 40 mil construções danificadas, prejuízo de mais de R$ 1 bilhão. Nunca um fenômeno natural tão violento havia sido observado no Brasil.

O fato de ter ocorrido no Atlântico Sul um fenômeno meteorológico jamais observado deve nos fazer refletir. Lembremos que o primeiro trimestre de 2004 foi repleto de extremos climáticos no país: verão atipicamente frio no Sudeste, seca pronunciada no interior da Região Sul, chuvas excepcionalmente abundantes e inundações em muitas regiões do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste e parcialmente no Sudeste, além do estranhíssimo fenômeno Catarina.

O clima está mudando?

Tudo isso suscita automaticamente a pergunta: o clima está mudando em decorrência do progressivo aquecimento global causado pelo aumento do efeito estufa atmosférico? Ainda que uma andorinha só não faça verão --ou seja, não se pode afirmar conclusivamente que os extremos climáticos estejam se tornando mais freqüentes--, é fato que uma das projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) indica que, num planeta mais aquecido, os extremos climáticos se tornarão mais freqüentes, em virtude de a atmosfera estar mais aquecida, com mais vapor d'água, isto é, mais energética.

A condensação do vapor d'água nas nuvens, ao se formarem as gotas de chuva, libera calor a vários quilômetros de altura. É a principal fonte de energia da atmosfera tropical e o modo de transferência da energia solar usada na evaporação para a energia dos ventos. Por outro lado, a sociedade industrial, ao continuar a injetar na atmosfera bilhões de toneladas dos gases do efeito estufa, todos os anos, alterou sua composição até um ponto como a atmosfera do planeta Terra não via há milhões de anos.

Estamos entrando em terreno totalmente desconhecido, em termos da máquina climática planetária, e devemos esperar surpresas e comportamentos estranhos, até mesmo bizarros, do sistema climático em busca de um novo equilíbrio. Não é ser alarmista imaginar que o fenômeno Catarina possa ser um pequeno aviso do que nos espera no futuro.

Estejamos preparados e vamos torcer para não estarmos inadvertidamente colocando nosso planeta numa trajetória irreversível, para além dos limites de habitabilidade da Terra. Trata-se de ocorrência hipotética, de baixa probabilidade, mas que não pode ser descartada. 0 Fatalidades Surpreendentemente, o número de fatalidades foi de apenas uma pessoa no continente e de duas mortes e sete desaparecidos no mar (segundo o site da Defesa Civil em Santa Catarina em 8 de abril), ou de até quatro mortes, segundo relatos da imprensa local.

São números incrivelmente baixos, se considerarmos a inaudita violência do fenômeno meteorológico, que atingiu em cheio o continente durante a madrugada, isto é, com as pessoas dentro de suas casas. A mesma conclusão se impõe, também, se considerarmos que eventos de menor severidade causam usualmente mais mortes nas periferias das grandes cidades e em regiões serranas do país, todos os anos, com os deslizamentos de encostas e as enxurradas causados pelas chuvas de verão, devido à conhecida vulnerabilidade de populações de países em desenvolvimento a desastres naturais --vulnerabilidade que também é um subproduto da pobreza.

A razão para esse pequeno número de mortes advém de rara combinação de acerto em difícil previsão meteorológica com o trabalho da Defesa Civil em Santa Catarina, uma história que vale a pena lembrar.

Ciclone X furacão

Para complicar as coisas, não houve unanimidade dos meteorologistas na previsão da violência do fenômeno. Respeitáveis centros de meteorologia do Brasil previram que se tratava de um "ciclone extratropical", conhecido fenômeno meteorológico do Atlântico Sul, responsável por ressacas na costa sul e sudeste brasileira, mas nem de longe afetando o continente com a força registrada no Catarina.

Por seu lado, meteorologistas norte-americanos, com os olhos treinados em detectar e monitorar os mais de 70 furacões que ocorrem anualmente no planeta, alertaram que aquilo era um furacão, com ventos fortíssimos de cerca de 120 km/h ainda sobre o oceano no dia 27 de março, sábado pela manhã, e trajetória certeira em direção ao continente. Como poderia ser um furacão, se qualquer livro-texto de meteorologia afirma, categoricamente, que furacões não ocorrem no Atlântico Sul? As condições para sua formação --águas suficientemente quentes, acima de 26C, ventos não muito fortes e não em sentido contrário ao movimento do furacão a cerca de 10 km de altura, entre outras-- simplesmente não existem nesse oceano.

De fato, nunca havia sido observado, no Atlântico Sul, algo que mesmo remotamente se parecesse com um furacão. Para as populações na rota de impacto do fenômeno e para a ação da Defesa Civil, porém, a nomenclatura e a classificação do sistema meteorológico eram totalmente irrelevantes. Tornava-se crítico prever se e quando o sistema iria atingir o litoral e a intensidade dos ventos.

Nesse momento, começou a pesar o trabalho de meteorologistas catarinenses e da Defesa Civil naquele Estado. Desde sexta-feira, 26 de março, meteorologistas catarinenses perceberam que aquele sistema sobre o Atlântico Sul não seguia o figurino clássico de ciclones extratropicais.

Em realidade, pelo menos na aparência sugerida pelas imagens de satélites, se assemelhava, isso sim, a um furacão em formação e com trajetória perigosamente direcionada para a costa. O alarme foi dado e a Defesa Civil em Santa Catarina entrou em ação.

Prontidão e acaso

Dois fatos foram determinantes para evitar uma tragédia de grandes proporções. Desde as devastadoras inundações de 1983 em Santa Catarina (devido a um forte episódio El Niño), e também de 1984, com centenas de mortes, equipes de Defesa Civil nacional, estadual e dos municípios se prepararam diligentemente para enfrentar desastres naturais. O resultado se traduz provavelmente no sistema de defesa civil mais bem-preparado do país, confirmado pela resposta ao Catarina.

Um fato fortuito veio se somar a isso. Por mera casualidade, um técnico da Defesa Civil em Santa Catarina havia recebido recentemente, nos Estados Unidos, improvável e útil treinamento para atuação em situações de furacão. As informações recebidas foram bem aplicadas, com algumas improvisações, conseguindo minimizar as perdas humanas, e sem gerar pânico, trabalho facilitado pela divulgação repetida das instruções da Defesa Civil pelas rádios locais e disseminadas pela internet.

Mesmo no Balneário Arroio do Silva, onde o "olho do furacão" atingiu a costa, a população não entrou em pânico, seguindo disciplinadamente orientações da Defesa Civil sobre como se proteger. Surpreendentemente, na hora em que os ventos fortes chegaram a essa localidade, ouviram-se vários fogos de artifício, talvez indicando o estado de alerta da população para enfrentar o fenômeno. A quase perfeita sincronia entre ações de órgãos públicos de defesa civil e a resposta da população em face de um fenômeno inusitado merecem um estudo aprofundado, inclusive em seus aspectos sociológicos.

Casualidade, sorte, ou seria Santa Catarina um modelo de organização para o Brasil?

Carlos Nobre é pesquisador titular do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTec), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)

Reinaldo Haas é professor do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
 

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