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13/03/2005 - 10h05

Manuscritos antigos são analisados como se fossem fósseis

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REINALDO JOSÉ LOPES
da Folha de S.Paulo

Não adianta muito o esforço dos historiadores revisionistas, sempre prontos a colar um "não é bem assim" em qualquer lugar-comum: a Idade Média continua levando a fama de ter sido a era em que a ciência naufragou num mar de obscurantismo.

Mas parece que a reputação científica medieval está sendo redimida por uma disciplina que seria condenada como sacrílega por qualquer monge do período: a paleontologia. Os manuscritos medievais, sugere o autor da idéia, não são muito diferentes de fósseis --e guardam um registro bastante completo do conhecimento científico dessa era.

A idéia, à primeira vista um tanto amalucada, vem do paleobiólogo
americano John L. Cisne, da Universidade Cornell. "Talvez eu devesse
tentar estudar múmias primeiro, mas simplesmente não consegui es­
capar do fascínio da palavra escrita", brinca o pesquisador, cujo trabalho sobre o "registro fóssil" dos manuscritos medievais saiu recentemente no periódico científico Science"".

Na verdade, a analogia que Cisne traça entre as obras dos "scriptoria"
(as "redações" dos mosteiros medievais) e os fósseis vai muito além do
fato de ambos estarem ressecados e em frangalhos. Assim como os trilo­
bitas (parentes de 400 milhões de anos de insetos e crustáceos) que o
pesquisador costumava estudar, os manuscritos só conseguem se multi­
plicar quando são copiados individualmente. Mas, quanto mais deles
existem, mais eles se multiplicam --simplesmente porque há mais indi­
víduos capazes de se reproduzir ou de ser copiados.

E, assim como uma trilobita ou um dinossauro, não há meio de um manuscrito se multiplicar indefinidamente: chega um momento em que a capacidade de sustentação daquela espécie ou livro --o número máximo de indivíduos que conseguem sobreviver em dado ambiente, ou de manuscritos que encontram leitores --alcança um limite. Em re­sumo, é como se o pesquisador lidasse com a dinâmica populacional de uma espécie extinta.

A intenção inicial de Cisne é responder à mesma pergunta que atormenta os historiadores interessados em mostrar que a Idade Média não era um deserto de idéias: afinal, quanta ciência os copistas dos monastérios conseguiram preservar?

"Como é que sabemos como as populações biológicas crescem, e co­
mo conseguimos prever o curso desse crescimento em organismos co­
mo micróbios ou mamíferos? O jeito é desenvolver modelos preditivos
realistas e depois testar essas predições", diz Cisne.

Já que está só come­çando a aplicar a idéia aos manuscritos científicos medievais, ele nem fez questão de grandes refinamentos: seu modelo matemático considera que o ambiente é constante, que não há imigração ou emigração na população, que a resposta dela a condições novas é praticamente instantânea e que, em mais um toque ligado aos fósseis, todos os indivíduos são equivalentes.

"Um editor de hoje normalmente contaria uma cópia completa, um
trecho de um florilégio [como eram chamadas as antologias medievais] e
uma página isolada como manuscritos individuais", diz ele. "Portanto,
ao contrário dos organismos vivos, mas tal como os fósseis, pedaços
preservados valem como itens intei ros num censo."

Venerável obra

Cisne decidiu testar seu modelo matemático com quatro livros "técnicos" do Venerável Beda (673-735), monge e erudito que inaugurou uma verdadeira era de ouro intelectual nos mosteiros da Inglaterra, seu país natal. Aliás, um dos livros, "De Temporum Ratione" (Da Contagem do Tempo, em latim), foi o manual mais popular de cronologia e aritmética da Europa até o século 16, ensinando a fazer cálculos com a ajuda dos dedos.

Além do mais, os livros eram bastante comuns, ideologicamente neutros e sua tradição manuscrita (a relação "genealógica" entre as diferentes cópias ao longo do tempo) é bem conhecida.

A partir daí, o que Cisne fez foi comparar as projeções "populacionais" que o seu modelo previa com a distribuição de cópias de cada obra ao longo do tempo (o ponto final da análise foi o século 16, quando a tecnologia da impressão se firmou). As previsões do modelo seguiam de perto os dados do mundo real.

"Casos mais ou menos ideais, como esses quatro, provavelmente são
muito mais a exceção do que a regra", reconhece o paleobiólogo.
"Mesmo assim, tanto para populações biológicas quanto de manuscri­
tos, são esses casos que nos dão as primeiras indicações de que o nosso
pensamento está na pista certa."

Se esse for mesmo o caso, as estimati­
vas do pesquisador mostram que entre uma e duas em cada sete có­
pias dos livros sobreviveram ao ataque do tempo. No geral, ele estima
que grande parte, ou até a maioria, dos textos científicos e técnicos em
latim do começo da Idade Média ou do fim da Antigüidade devem ter
chegado até os leitores de hoje.

"De fato, eu diria que os textos populares do período carolíngio [por
volta da época em que Beda estava ativo] provavelmente sobrevivem
em pelo menos um manuscrito, e freqüentemente em muitas cópias",
diz a historiadora Florence Eliza Glaze, da Universidade Costeira da
Carolina (EUA), que comentou o estudo de Cisne para a "Science" junto
com a colega Sharon Gilman. "A utilidade prática parece ser a prova dos
noves para a sobrevivência desses textos científicos e médicos."

A dupla, embora tenha elogiado a perspectiva inovadora que o pesqui­
sador traz para o estudo de manuscritos, faz questão de ressaltar que,
ao longo da Idade Média, as coisas foram bem mais complicadas do
que o modelo dele supõe. Só para citar dois exemplos, séculos de guer­
ras destruíram coleções inteiras, aumentando muito a taxa de "morte"
na população de tempos em tempos; e o contato com os árabes, a partir
do século 11, trouxe levas e mais levas de "migrantes" para dentro dos
"scriptoria" europeus.

"E, para o fim da Antigüidade, teria de discordar da avaliação bastante ingênua dele: Cisne nem começou a entender o que determinou a so­
brevivência de um texto naquele período turbulento", afirma Glaze.

"Ao ler as respostas delas, não consigo evitar a impressão de que já ouvi
tudo isso antes há uma geração, dos geólogos que se opunham à teoria
da tectônica de placas [a idéia de que os continentes se movem pelo globo
carregados em 'balsas' de rocha]: o mundo é complicado demais para
ser explicado por modelos simples", rebate Cisne.

Ele diz que pretende investir mais nesses estudos: "O entusiasmo da
descoberta é viciante. Isso é que é sensacional nas ciências da terra:
elas me dão a chance de mexer com tudo --até com manuscritos".
 

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