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12/07/2005 - 10h24

Ex-editor de revista médica diz que farmacêuticas manipulam periódicos

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REINALDO JOSÉ LOPES
da Folha de S. Paulo

Um tanto constrangido, o britânico Richard Smith, 53, confessa que passou quase 25 anos como editor de uma das maiores revistas médicas de seu país, a "British Medical Journal", sem atinar para a influência que as empresas farmacêuticas estavam tendo sobre as publicações do ramo.

Dois anos atrás, em plena Veneza, ele teve tempo de ler o que havia sido publicado sobre a relação entre essas publicações e a indústria. Smith percebeu que, por meio de estratégias discretas, as empresas fazem seus remédios parecerem muito melhores do que realmente são. Além disso, atrelariam as revistas a seus interesses comprando milhões em artigos reimpressos e distribuindo-os para médicos do mundo todo.

Por isso, num artigo publicado em maio na revista científica "PLoS Medicine" (que pertence a um grupo de periódicos de acesso gratuito do qual Smith é um dos diretores), ele defendeu um passo radical: cancelar toda e qualquer publicação de testes clínicos de medicamentos nos periódicos científicos. Só assim pesquisadores e médicos seriam capazes de examinar com um olhar mais crítico o potencial e os perigos de cada remédio para as pessoas. De seu escritório em Londres, Smith falou à Folha por telefone.

Folha - Como o sr. passou a tomar consciência da influência negativa da indústria farmacêutica sobre as publicações médicas?

Richard Smith
- No começo de 2003, eu consegui dois meses de licença sabática [do "British Medical Journal"] num "palazzo" do século 15 em Veneza, onde eu estava escrevendo um livro sobre ética de publicação e revistas científicas. Foi meio que um tempo para olhar as coisas de outra perspectiva e também de ler uma batelada de coisas.

Eram coisas que eu ainda não tinha lido, e que provavelmente deveria ter lido, como o artigo que citei no meu texto. Nele, os pesquisadores examinaram todos os testes clínicos de drogas antiinflamatórias contra artrite e descobriram que não havia um só cujos resultados não fossem favoráveis à empresa patrocinadora. E isso meio que me atingiu. Eu pensei: "Minha nossa, 58 testes e nem unzinho não-favorável!".

E foi então que a ficha caiu. Logo depois disso nós publicamos um número do "BMJ" sobre médicos e companhias farmacêuticas, com uma revisão sistemática desse tipo de estudo, investigando se normalmente os patrocinadores conseguiam resultados favoráveis. E, de novo, conseguiam. E de repente pensei: "Meu Deus! Aqui estamos nós em meio ao processo de decidir quais testes clínicos publicar, mas a realidade é que praticamente todos são favoráveis às empresas".

Não é que elas estejam mexendo nos resultados, não é fraude. Não é que elas estejam enterrando os resultados desfavoráveis, embora eu ache que isso exista. É mais o fato de que elas são espertas em relação às perguntas que fazem. Então a ficha realmente caiu enquanto eu lia aquele artigo.

Folha - Além da questão da eficácia das drogas propriamente dita, o sr. afirma que os estudos com avaliações econômicas de determinados medicamentos costumam ser ainda mais favoráveis aos fabricantes. A que eles se referem?

Smith
- Eles tratam da relação custo-benefício de um remédio. Publicávamos muitos no "BMJ", não apenas com avaliações econômicas de drogas mas também de outras coisas. O significado deles é o seguinte: se você prescrever essa e essa droga --que muitas vezes são caras--, as pessoas podem dizer que não são capazes de pagar por elas. Mas as avaliações econômicas vão mostrar que há benefícios substanciais em termos de reduzir hospitalizações, ou reduzir visitas ao médico. Assim, embora seja caro prescrever a droga, o gasto final é menor.

Em tese, acredito nisso, mas aí fico preocupado ao ver que, em todo santo caso, as avaliações econômicas favorecem a empresa.

Folha - Em seu trabalho, o sr. menciona o caso de dois remédios, a risperidona [para tratar esquizofrenia] e o odansetron [usada contra náuseas], como emblemático do procedimento de "fazer as perguntas certas" da indústria. Como os testes mostram isso?

Smith
- No caso da risperidona, foi um artigo publicado no "Lancet" [importante revista médica britânica], e o que ele demonstrava era o seguinte. Se você examinasse os testes clínicos, vários dos quais haviam sido publicados em revistas diferentes, a maioria demonstrava que a risperidona era bem eficaz. Mas, quando contava os pacientes daqueles testes, descobria que muitos deles tinham sido publicados mais de uma vez.

Poderia parecer que eram uns 20 testes diferentes, mas na verdade é um número muito menor, fatiado e servido de maneiras diferentes. Isso permite um monte de possibilidades. Vamos publicar um teste com todos os pacientes, vamos publicar o estudo que foi feito no Brasil numa revista brasileira, vamos pegar todos os estudos feitos na Europa e juntá-los... Então, a evidência que parece sugerir que o remédio é bom não é tão substancial assim.

No caso do odansetron, o que eles demonstraram foi, mais uma vez, essa sobreposição de pacientes. Onde havia testes com resultados positivos, eles tendiam a ser publicados mais de uma vez.

Existe um conceito conhecido como "número de pacientes necessário para tratar" uma doença --o número necessário para se conseguir um ataque do coração a menos, um derrame a menos ou seja lá o que for. No caso do odansetron, parecia haver menos pessoas ficando doentes. E, claro, quanto menor o número de pacientes necessário para tratar, melhor. E o que o estudo mostrou é que esse número é maior se você eliminar a sobreposição.

Folha - Quando estudos clínicos são publicados numa revista médica, normalmente eles são produzidos por cientistas independentes ou pelas próprias empresas?

Smith
- Cada vez mais esses testes são feitos por coisas conhecidas como organizações de pesquisa por contrato, ou CROs. São empresas independentes, pagas pelas companhias farmacêuticas para fazer o teste. É cada vez mais comum elas fazerem isso, e não contatarem um grupo acadêmico.

Na verdade, a maior parte dos grupos acadêmicos vai acabar dizendo: "Bem, não é uma coisa cientificamente muito criativa de se fazer". Meu conselho para um grupo acadêmico seria: vocês nunca devem assinar um contrato no qual outras pessoas decidem sobre a publicação. Por outro lado, uma CRO iria aceitar isso.

Folha - E quanto ao chamado "ghost-writing" [no qual uma pessoa contratada escreve o artigo e outro pesquisador é convidado a assiná-lo]? É um problema significativo no momento?

Smith
- Eu acho que é difícil saber quão grande é o problema, quase por definição você não sabe muito bem. Mas eu acho que pode ser bastante comum a publicação de artigos escritos por pessoas cujos nomes não aparecem. Eu não vejo realmente um problema no fato de que um profissional escreva um artigo --desde que esteja declarado. Assim como você tem um estatístico para te aconselhar na área dele, não vejo por que não possa pedir para que um escritor profissional faça o texto, desde que todo mundo seja listado como autor ou contribuinte.

O problema é quando essas pessoas não aparecem, e acho que é particularmente um problema em textos opinativos e editoriais. Um amigo meu é decano de uma faculdade de medicina aqui em Londres e, há algumas semanas, recebeu um artigo escrito por outra pessoa dizendo "você estaria disposto a colocar seu nome aqui?". Não sei o quanto isso acontece, mas acontece mesmo.

Folha - O sr. acha que há algum defeito no próprio sistema de "peer-review" [revisão por pares, na qual cientistas da mesma área que os autores de uma pesquisa dão parecer anônimo sobre ela] que favoreça essas distorções?

Smith
- De fato, quando você examina o "peer-review", há uma série de problemas com ele. É lento, caro, enviesado, está sujeito a abusos, não acha erros. Fizemos um estudo no qual pegamos um artigo de 600 palavras com 38 erros e o mandamos para 400 revisores. Ninguém achou mais que cinco erros, 20% dos revisores não achou nenhum e o número médio encontrado foi apenas ligeiramente superior a dois.

Folha - Como seus colegas reagiram à proposta de uma moratória na publicação de estudos clínicos?

Smith
- Acho que a maioria das pessoas considerou que era um passo radical demais. Mas acho que, da maneira que as revistas são hoje, se você tirasse os grandes testes, o valor delas cairia dramaticamente. Não apenas em termos de não conseguir vender mais as reimpressões, mas essa também é uma das principais razões que levam as pessoas a assinar as revistas.

Eu sou da escola que acredita que tudo deveria ser aberto para todo mundo e gostaria de ver os testes disponíveis numa base de dados. O papel das revistas seria descobrir quais eram realmente importantes, comentá-los, criticá-los e apresentar seus resultados a médicos e pacientes.

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