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20/01/2002 - 10h23

Atividades feitas por macacos podem manifestar cultura

RAFAEL GARCIA
da Folha de S.Paulo

Não é de hoje que a ciência se pergunta quais são, afinal, as diferenças estruturais entre os cérebros de homens e os de macacos que tornam únicos os primeiros. Para alguns primatologistas, porém, essa é a pergunta errada.

Descobertas recentes sobre a inteligência de símios tidos como menos evoluídos -como o macaco-prego- podem dar rumos novos às pesquisas sobre semelhanças e diferenças entre os humanos e os outros primatas. A procura de estruturas cerebrais que sejam exclusivas do homem cada vez mais esbarra em coincidências, enquanto a habilidade dos macacos de mostrar comportamento social complexo ataca a visão antropocêntrica pelo outro lado.

A polêmica não é nova. Vem desde o século 19, quando a teoria da evolução de Charles Darwin (1809-1882) sugeriu pela primeira vez que seres humanos e chimpanzés têm ancestrais em comum.

Isso tudo é aceito hoje, com poucas restrições entre leigos, mas chegou ao limite na outra ponta. Alguns grupos de defesa dos primatas nos EUA reivindicam que os chimpanzés adquiram status de humanos sob tutela. "Quando deixa de ser antropocêntrica, a pessoa vira primatocêntrica", ironiza o pesquisador Eduardo Ottoni, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, especialista em comportamento animal.

O estudo dos chamados hominóides não-humanos, as quatro espécies de macacos evolutivamente mais próximas do homem, converge para uma conclusão: boa parte do repertório comportamental que era tido como exclusivamente humano na verdade surgiu antes da marca de 6 milhões de anos atrás, quando o homem começou a se diferenciar de chimpanzés, gorilas, orangotangos e bonobos, os macacos do Velho Mundo.

A tentativa de limitar a observação de traços "humanos" a essas quatro espécies, porém, está indo por água abaixo. Um grupo de brasileiros está entre os culpados por essa reviravolta. Pesquisadores da USP observaram animais em semiliberdade no Parque Ecológico do Tietê, em São Paulo, e descobriram que um dos macacos do Novo Mundo é capaz de utilizar ferramentas na natureza com uma habilidade vista anteriormente apenas entre os hominóides.

Invasão cultural O demolidor de paradigmas é o macaco-prego (Cebus apella), mais conhecido por invadir cozinhas e roubar comida nas áreas rurais próximas de florestas. Um grupo liderado por Ottoni vem observando o modo como esses animais quebram frutos secos com pedras e, sobretudo, a maneira de cada indivíduo aprender a técnica observando outro, um tipo de transmissão cultural.

"Tecnologia era uma daquelas coisas tratadas assim: "Isso é humano, os animais usam só suas garras e seus dentes". Até que, por volta dos anos 70, a pesquisadora Jane Goodall começou a descrever o uso de ferramentas pelos chimpanzés", conta Ottoni. "Mas alguém pode dizer: "Isso é normal, porque o chimpanzé é quase humano". Aí entra a graça da nossa pesquisa com macaco-prego, que está muito longe dessa família. O ancestral comum viveu há 40 milhões de anos."

Para Ottoni, parte do tabu construído em torno das características "humanas" dos macacos caiu com o reconhecimento de que chimpanzés também possuem sua cultura. Em outras palavras, esses macacos transmitem conhecimento através de gerações. Foi mais um limite derrubado na diferenciação entre os homens e seus parentes mais próximos.

"Limite é uma coisa meio cristã, ligada a esse tipo de maniqueísmo da cultura ocidental. Dizem "aqui é o bem, aqui é o mal". Da mesma maneira, se diz "ali é o animal, aqui é o humano". Isso não existe. A ciência natural se delicia em chutar cada um desses limites." Com o entusiasmo de quem está ajudando a fazer isso, Ottoni descreve a principal atividade tecnológica do macaco-prego, a quebra de coquinhos: "Ele põe uma pedra embaixo, lisa, depois põe o coco e golpeia com outra".

A descoberta chegou à comunidade científica, com algum atraso, após a revista especializada "Internacional Journal of Primatology" publicar um trabalho de Ottoni em junho de 2001. "Mas qualquer mateiro do interior que more perto de macacos-pregos provavelmente já sabia disso. A ciência é que não sabia."

Antes disso, os pesquisadores só tinham visto o animal usar ferramentas em laboratório. "É diferente. No laboratório, o bicho não tem nada para fazer, está posto à força num espaço exíguo. Poderia ser que, num contexto mais naturalístico, isso não acontecesse." Mas acontece.

As habilidades mostradas pelo macaco-prego colocam no tabuleiro a questão sobre quanto o tamanho do cérebro influencia na inteligência. Entre os primatas originários do Novo Mundo, o macaco-prego tem o maior neocórtex cerebral em relação ao restante do cérebro. Se sua habilidade de elaborar raciocínios mais complexos vem somente daí, pode ser que finalmente se chegue à conclusão de que tamanho é mesmo documento, já que humanos e chimpanzés possuem neocórtex ainda mais desenvolvido.

Linguagem Além do uso de ferramentas por macacos, cientistas andam às voltas com o problema de encontrar os mecanismos do cérebro que tornam a linguagem humana tão complexa. A teoria mais conhecida, e também um pouco desgastada, é a que foi proposta pelo linguista norte-americano Noam Chomsky. Ele acredita que a capacidade humana de criar línguas tenha suporte em uma estrutura cerebral única.

Recentemente, o pesquisador William Hopkins, da Universidade Emory, em Atlanta (EUA), causou um dos inúmeros abalos que a hipótese já teve, revelando que o cérebro de diversos primatas também possui a área de Broca, à qual se atribui a habilidade da fala. "A visão geral de que a linguagem é exclusiva dos humanos e tem uma anatomia exclusiva no cérebro não passa de uma simplificação grosseira ou está errada", diz Hopkins. "Macacos mais evoluídos têm as áreas clássicas de linguagem no cérebro. Então, não dá para concluir que só os humanos tenham esse substrato neurológico".

Inteligência e sociedade Apesar de as questões de linguagem e tecnologia ainda serem fruto de discussões intermináveis, outras áreas da etologia de primatas já têm teorias mais consolidadas. Uma delas é a noção de que a inteligência é fruto de uma pressão evolutiva criada pela vida social.

Essa hipótese ganhou fôlego nos anos 80 com o holandês Frans de Waal, autor do livro "Chimpanzee Politics" (Política dos Chimpanzés). "Entre os chimpanzés, não adianta muito o cara ser o fortão para ser o dominante. O cara que é capaz de manter a posição de macho alfa [líder do grupo" por muito tempo é o cara que é capaz de fazer alianças", diz Ottoni. "Para isso, não existe um limite de esperteza. O negócio é você ser o mais esperto."

Talvez essa necessidade tenha criado hábitos pouco louváveis entre os hominóides, como a dissimulação e a demagogia. De Waal descreve, por exemplo, como chimpanzés distribuem comida a outros do grupo em troca de apoio para o posto de macho alfa. Não é preciso estar em ano eleitoral para se lembrar de que isso é feito também pelo "bicho homem".

Para o primatologista Christophe Boesch, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, Alemanha, entender os macacos a fundo é mais importante do que buscar obsessivamente aquilo que os homens têm de único.

"A complexidade humana é construída em traços sociais semelhantes [aos dos macacos". Negar as semelhanças entre as duas espécies leva apenas a dar respostas imprecisas sobre as diferenças. E ainda é necessário muito trabalho para entender os chimpanzés e para responder questões sobre as semelhanças", diz Boesch.
 

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