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08/12/2002 - 09h45

Vencedor de Nobel leva ciência para café em Nova York

SÉRGIO DÁVILA
da Folha de S.Paulo, em Nova York

O exterior prenuncia um café normal, daqueles que inundam o ex-bairro boêmio de Greenwich Village, desde que essa parte do sul da ilha de Manhattan foi invadida por turistas, câmeras, flashes e crianças, não necessariamente nessa ordem, não necessariamente em ordem alguma. Realmente, o Cornelia Street Cafe, no número 29 da rua que lhe dá o nome, parece o que é, pelo menos no andar térreo: mesinhas espalhadas, toalhas de linho, cardápios bem dispostos, garçons atenciosos. É no subsolo, no entanto, que tudo acontece.

Você desce a escada torta e apertada, vira à direita (dobrando à esquerda, cuidado, o destino são os banheiros e o telefone público) e bate numa porta. Dentro, uma salinha, um miniteatro que há mais de 20 anos faz o improvável: reúne artistas alternativos para as mais diferentes performances.

O conceito de "artista", aqui, é elástico. Vai desde leituras de inéditos de escritores greco-americanos e árabe-americanos, que acontecem todos os primeiros sábados à noite, até A Piada Cósmica Coletiva apresentando "A Performance Egomaníaca" (um grupo multimídia), cartaz de uma segunda-feira pinçada ao acaso.

Mas a surpresa ocorre sempre aos domingos, o primeiro domingo de cada mês, como nesta noite de outubro. É quando o palco é tomado por um senhor baixo, grisalho e sorridente, que fala baixo e pausado, olha por cima dos óculos de grau e lembra de alguma maneira o cômico inglês Peter Sellers (1925-1980).

Esse senhor é o criador e apresentador do "Entertaining Science", ou "Ciência que Entretém", o evento dessas noites. Obcecado pela inter-relação entre as disciplinas científicas, ele acredita que a química deve tanto a Linus Pauling e Ernest Rutherford quanto a Martha Graham, David Bowie e Luciano Pavarotti.

Trata-se de Roald Hoffmann, 65, ganhador (com o japonês Kenichi Fukui) do Nobel de Química de 1981 por suas teorias sobre o transcurso das reações entre os compostos, um renomado professor da Universidade Cornell (EUA). Para o público brasileiro, ou pelo menos para os cientistas brasileiros, ele é mais conhecido como o principal responsável pela repetida indicação do bioquímico tcheco-brasileiro Otto Richard Gottlieb ao famoso prêmio sueco.

O que o Nobel estaria fazendo nesse momento, no meio do palquinho de menos de três metros por dois de profundidade? Apresentando sua amiga, a poetisa Ellen Goellner, que vai ler um texto de sua autoria, sobre o movimento entre partículas e os corpos de um casal.

Na platéia, na verdade dez mesinhas com duas ou três pessoas cada uma, todos os olhos estão muito atentos, como numa aula ou numa peça muito interessante. Bebe-se vinho tinto em taças, os homens usam cardigã e calças de veludo, e as mulheres, vestidos largos e coloridos. A faixa etária deve estar por volta dos 50 anos. Na mesinha ao lado da entrada descansam folhetos anunciando eventos futuros e/ou paralelos, como "Mosaico - Fragmentos de uma Vida Judaica", que se define como um "ciclo de performances", e "A Garota Mais Perigosa do Mundo", apresentado como "uma mistura de performances fictícias com jazz".

No palco, na noite de hoje, a poetisa está acabando sua leitura, é aplaudida, e então entra um casal de dançarinos. Eles interpretam uma coreografia de Dianne Sichel, que depois subirá para explicar os movimentos, principalmente a parte em que os dois, ao se chocar, fingem se jogar contra a parede. De uma das mesas, levantam dois cantores líricos, que fazem o fundo musical, um trecho de "La Bohème", de Puccini.

Mundo das proteínas
Perto de 20 minutos depois, é a vez da estrela da noite. Roald Hoffmann sobe ao palquinho e começa: "Hoje vou falar das proteínas. Elas são o que comemos e o que somos, mas elas fazem muito mais coisas". Senta-se e então começa a apontar para slides projetados num telão. O tema da noite -não poderia ser diferente- é "Restrição e Movimento no Mundo das Proteínas".

"Lembram-se dos dois dançarinos?", continua o químico. Por mais sofisticados que sejam o tema, o palestrante, a platéia e até o ar local, o clima é irremediavelmente de aula de cursinho. "Pois então, para que eles se movimentem daquela maneira, é necessária uma operação intricada e complexa." Ele vai das proteínas à teoria da evolução. "O darwinismo depende de um mecanismo de isolamento." Mais slides. Mais projeção. Comparação com a voz dos músicos e o processo do ar nas cordas vocais. Citação à atração e à repulsão que simbolizavam os dançarinos ("Daí o choque na parede, entenderam?" -pergunta).

Fim. Aplausos. Muitas questões. Acabou a primeira parte de "Entertaining Science", a tentativa solitária de um idealista de levar a química para as massas, mesmo que as massas dessa noite sejam menos de 50 pessoas. Respondidas as dúvidas, ele passeia pelas mesas cumprimentando as pessoas e trocando cinco minutos de conversa. Alertado por um amigo, o repórter da Folha não fotografa sua palestra -Hoffmann detesta ver máquinas fotográficas e flashes.

O químico nasceu Roald Safran em Zloczov, Polônia (hoje Zolochëv, Ucrânia), chegou aos EUA em 1949, naturalizou-se e ganhou fama na comunidade científica nos anos 60 e 70, ao elaborar regras matemáticas que prediziam quando e onde uma reação química particular resultaria em um produto mais estável que os reagentes originais, o que lhe valeria um dia o Nobel.

Defensor desde sempre da divulgação da ciência, apresentou pela emissora pública PBS um curso que teve um certo culto de seguidores em 1990. Era "The World of Chemistry" (O Mundo da Química), minissérie de 26 episódios de meia hora cada um, que depois formariam a base do "Entertaining Science". O evento começou no primeiro domingo de janeiro de 2002, com o tema "A Termodinâmica e o Sentido da Vida".

Hoffmann e seus colegas fizeram mais para testar as águas, para ver se alguém aparecia. Vieram 70 pessoas, várias tiveram de voltar sem entrar. Sucesso. Desde então, ele passa boa parte do mês que separa as performances pensando nos temas, elaborando as listas de convidados (como o neurologista popstar Oliver Sacks) e suas relações, separando slides e avisando os amigos. O lema, segundo o químico, é "ensinar um pouco de ciência e ainda assim se divertir".

Oxigênio nos palcos
Essa não é sua primeira incursão pelas artes. Hoffmann assina a co-autoria da peça "Oxigênio", que estreou em Londres e já teve leitura pública no Brasil no ano passado. É uma ficção sobre o centenário da criação do Nobel (2001) e a decisão de seus organizadores de dar um prêmio retroativo de química a ser escolhido por quatro cientistas.

Hoffmann conta ainda que, embora tenha passado a escrever poemas ele próprio só no meio dos anos 70, começou a se interessar por poesia já em 1950, logo depois de chegar a Nova York, quando teve aulas com o renomado e premiado Mark Van Doren (1984-1972) na Universidade Columbia.

(O poeta e crítico literário, aliás, ganharia fama involuntária em 1959 ao ver revelado que seu filho, Charles, havia participado de um esquema fraudulento para ganhar um programa de teste de conhecimento na TV, escândalo que depois viraria tema de filme dirigido por Robert Redford, "Quiz Show", de 1994.)

O primeiro poema do químico foi publicado em 1984, e desde então ele lançou três livros de poesia, entre eles "Gaps and Verges - Poems" (Universidade da Flórida, 1990) e "Memory Effects" (Calhoun Press, 1999). Alguns foram inclusive traduzidos para o português. O tema é quase sempre o mesmo: a química e as artes.

Quando o repórter vai embora, a segunda sessão do "Entertaining Science" de hoje já está na metade. No fundo da sala, projetado no telão improvisado, um slide do que parece ser o mapa das linhas de metrô de São Paulo. "Estão vendo isso?", Hoffmann pergunta. "É a estrutura molecular de uma lágrima."
 

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