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22/12/2002 - 09h48

Faculdade da linguagem é compartilhada entre humanos e animais

CLAUDIO ANGELO
Editor-assistente de Ciência da Folha de S.Paulo

João amava Teresa, que amava Raimundo, que amava Maria, que amava Joaquim, que amava Lili, que não amava ninguém. A capacidade de montar estruturas aparentemente banais, como esse trecho do poema "Quadrilha", de Carlos Drummond de Andrade, pode ser o único elemento da linguagem realmente exclusivo dos seres humanos.

A idéia é do psicólogo americano Marc Hauser, 43, que estuda animais como macacos para tentar entender como a linguagem evoluiu e por que ela se tornou tão fundamental para o homem. Professor da Universidade Harvard, Hauser defende que os outros bichos têm exatamente o mesmo hardware cerebral que, segundo alguns cientistas, faz a balança da evolução linguística pesar para o lado do Homo sapiens.

A diferença, segundo Hauser, está num detalhe: a habilidade de montar uma gama infinita de significados a partir de um conjunto discreto de elementos. Em um artigo publicado no dia 22 de novembro na revista científica americana "Science", Hauser e seu colega Tecumseh Fitch se juntaram a ninguém menos que Noam Chomsky para propor que essa habilidade --conhecida como recursividade-- aplicada ao domínio da comunicação é possivelmente a única peça exclusivamente humana no mosaico da linguagem. E que o desenho completo desse mosaico só surgirá depois que os campos da biologia, da linguística e da etologia (o estudo do comportamento animal) saírem do estado de guerra em que sempre estiveram e passarem a cooperar.

"Há muita gente que se aferra aos aspectos únicos da linguagem e quer defendê-los de qualquer forma", diz. Isso é ruim quando se estuda evolução. "É claro que há coisas únicas aos humanos e coisas únicas aos macacos com que eu trabalho. Nenhum humano consegue se mover entre as árvores como os meus macacos. E daí?"

Para o pesquisador, é preciso ouvir o que os animais têm a dizer. Em março de 2000 ele deu esse recado com a publicação do livro "Wild Minds" (Mentes Selvagens), no qual propõe que todos os animais nascem equipados com um "kit" cognitivo básico que inclui a capacidade de distinguir quantidades, a orientação espacial e reconhecer objetos. "Nós compartilhamos o planeta com animais pensantes", diz. Até mesmo a recursividade pode estar presente nos não-humanos, só que aplicada a outros domínios, como matemática --saguis são capazes de contar até quatro com precisão-- e relações sociais. "A questão é por que ela evoluiu entre humanos para a comunicação, e por que só em humanos, já que é uma ferramenta tão poderosa."

De seu escritório em Cambridge, EUA, Hauser concedeu a seguinte entrevista à Folha:

Muita gente diz que a linguagem é o principal fator de distinção entre humanos e não-humanos. O sr. argumenta que a coisa não é exatamente assim. Por que não?
A questão que eu realmente levanto não é se a linguagem em geral é um traço distintivo, mas o que é a faculdade da linguagem, em que sentido nós a compartilhamos com outros animais e em que sentido não compartilhamos. Há duas partes da faculdade da linguagem que parecem ser compartilhadas entre humanos e animais, que têm a ver com como você produz som e como o percebe.

Quando se trata do sistema conceitual e intencional, há de novo muitas sobreposições, com uma possível exceção sendo a capacidade de referência. E, finalmente, a capacidade para recursividade, e nós propomos como hipótese que isso parece ser exclusivamente humano. Mas não está claro se isso é verdade, se essa capacidade evoluiu para a linguagem ou para alguma outra coisa.

O sr. acha que pode haver uma estrutura cerebral que evoluiu para a recursividade? Ou nós só estamos usando o nosso hardware de outra forma?
Certamente deve haver circuitos do cérebro envolvidos. Se se trata de peças de outros circuitos fazendo isso, ou se há um sistema dedicado à recursividade, eu não sei. Mas deve ser algo que possa ser usado em tarefas outras que a linguagem, porque nós o utilizamos o tempo todo --em matemática, por exemplo.

No artigo, vocês lançam a hipótese de que mesmo a recursividade pode não ser exclusiva de seres humanos.
Nós argumentamos que a recursividade pode estar operando parcialmente dentro do sistema de navegação dos animais, parcialmente operando nas capacidades matemáticas dos animais. Os animais têm um grau razoável de sofisticação para números. O que nós não sabemos é se eles podem recursivamente operar sobre as representações de números que eles parecem usar. Essa é uma questão aberta. Muito do trabalho na evolução da linguagem tem sido especulativo, com muitas hipóteses, mas poucos dados empíricos. O que tentamos mostrar no artigo na "Science" é que há um enorme mundo empírico lá fora que nós apenas começamos a descobrir. Esperamos abrir essa porta. Há muita animosidade entre linguistas e biólogos, eles não trabalham juntos.

A que o sr. atribui essa animosidade?
Há muita gente que se aferra muito a aspectos únicos da linguagem e quer defendê-los de qualquer forma. E, em vez de trabalhar com pessoas que fazem outras coisas, trabalham contra elas. Eu não me importo que algumas coisas sejam iguais e outras diferentes: se você se interessa por evolução, está igualmente interessado no que torna espécies únicas e no que as torna iguais. É claro que haverá coisas únicas aos humanos e coisas únicas aos macacos com que eu trabalho. Nenhum humano consegue se mover entre as árvores como os meus macacos. E daí?

Então, o sr. não vê diferenças qualitativas entre essas capacidades?
Não. São coisas totalmente diferentes, mas ambas são importantes para tarefas que tenham a ver com sobrevivência. Quando as nossas capacidades de linguagem evoluem a ponto de que eu e você possamos expressar o que estamos fazendo agora, isso é extremamente vantajoso. Mas, do mesmo jeito, quando animais como os primatas desenvolvem mecanismos para pular entre as árvores rapidamente, isso dá a eles uma vantagem em sobrevivência que nós não teríamos se estivéssemos sob a mesma pressão. Então, não dá para comparar o que é mais sofisticado ou mais complicado. O interesse para as pessoas que estudam evolução é ver o que é compartilhado e o que é diferente. O problema é que muita gente que trabalha com humanos fica buscando o que é único.

Como foi a recepção à idéia de que todos os animais são equipados com um "kit" cognitivo básico?
Eu acho que a reação foi relativamente favorável. A idéia básica de que há especializações distintas no cérebro é uma visão predominante na ciência cognitiva, então, o que eu sugeria para animais não era repugnante para as pessoas em ciência cognitiva. Desde que eu publiquei o livro, um dos estudantes que trabalhavam comigo [Brian Hare] mostrou, agora em chimpanzés, evidências muito mais fortes para uma capacidade que eu disse que faltava em animais, que é a de atribuir crenças e desejos a outros indivíduos, a chamada teoria da mente.

Como foi o experimento de Hare?
Na primeira etapa, você tinha um animal dominante numa jaula, um subordinado na outra e, no meio, entre eles, dois pedaços de banana. Quando você abre a porta de cada jaula o que acontece, claro, é que o dominante sai, apanha os dois pedaços e o subordinado não se mexe. Na segunda etapa, que é a interessante, você põe num compartimento no meio duas telas opacas. No lado do subordinado, você põe uma banana, de modo que o dominante não possa vê-la. No meio, entre as duas telas, você põe outro pedaço de banana. Ambos podem ver o que está no meio, mas só o subordinado pode ver o pedaço que está do seu lado. Então, a previsão é: se o subordinado pode ver o que vê e o que o dominante não pode ver, portanto, o que não sabe, ele deveria ir direto para o pedaço de banana que está escondido. E é exatamente o que ele faz na primeira tentativa.

O sr. tem alguma hipótese sobre por que a recursividade evoluiu em humanos da forma como a conhecemos?
Não há argumento claro para a seleção de pressões. O que sabemos é que qualquer sistema desenhado para criar uma gama aberta de possibilidades de expressão, seja ele linguagem matemática, química ou genética, requer recursividade, quando você tem elementos discretos que podem ser operados e recombinados para criar um conjunto infinito de expressões. Mas por que acontece, e quando acontece, é um completo mistério. Se os animais falharem em mostrar recursividade nos próximos 20 anos de buscas em outros domínios além da comunicação, é porque eles simplesmente não a têm. O registro fóssil nunca vai mostrar quando ela evoluiu.

E a genética, não pode resolver o problema?
Acho que não. Estamos ainda muito longe de achar as bases genéticas da recursividade. Nós não estamos nem perto de achar as bases anatômicas da recursividade. Peguemos a linguagem da dança das abelhas, por exemplo. Vamos assumir que seja uma linguagem simbólica, com signos que fazem referência a coisas etc. O que nós sabemos sobre como o cérebro das abelhas gera as representações para a dança? Basicamente nada! E é um sistema bem simples. Não vou dizer que seja impossível; em algum ponto, talvez não durante a minha vida, alguém vai matar a charada. Mas estamos muito, muito, muito longe.

De que lado o sr. se coloca no debate entre natureza ["nature"] e aprendizado ["nurture"]?
Eu sou definitivamente mais "naturista" ["naturist"] que "aprendizacionista" ["nurturist"]. Em "Wild Minds", defendo uma visão muito significativa em etologia, o instinto do aprendizado. É uma visão que Steven Pinker [neurocientista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts] disseminou no livro "O Instinto da Linguagem" e muito popular em etologia nos últimos 60 anos. Agora estou trabalhando num livro que pega a abordagem chomskiana da linguagem e vendo o quão longe se pode ir com a moral. Pensar a existência de uma faculdade da moralidade restringe o número possível de sistemas morais.

Os animais têm algo parecido com moral?
Eu acho que não. Acho que essa é uma mudança evolutiva única, que evoluiu como resposta à explosão cultural que atingiu o comportamento humano. Acho que a explosão cultural foi a pressão para a evolução da moral.

Os estudos comparativos mostram, até agora, que só humanos e golfinhos parecem ter um sistema que se pode chamar de sintaxe. É realmente algo único?
Eu acho que os trabalhos feitos até agora com sintaxe em animais não são realmente evidência para sintaxe em animais. Mostram um sistema baseado em regras que não é sintaxe. Eu acho que não há evidências para sintaxe, e, se há uma recombinação, é uma recombinação sem sentido. Pássaros têm a capacidade de recombinar elementos de seu canto para criar novos cantos, mas não têm novos significados. Isso é interessante, porque pássaros canoros têm aprendizado vocal, algo central para a faculdade da linguagem, porque é assim que aprendemos palavras. Isso surge não necessariamente como uma homologia, isto é, como evolução por descendência, mas como convergência. Você pode encontrar peças do maquinário em outras espécies.

O sr. defende que animais têm consciência?
Depende de que aspecto da consciência. Se você estiver falando de consciência de acesso, que eles têm acesso a algumas coisas que sabem, creio que há evidências claras disso. Agora, o outro aspecto, que é a autoconsciência, a "sensciência" ["sentience"], acho que não temos evidência de jeito nenhum. E a questão passa a ser: podemos obtê-la? Eu acho que testes como o da teoria da mente são o começo disso.
 

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